Todo filme de ficção científica que se preze
invariavelmente apresenta altas doses de ambição. Explorar as possibilidades
infinitas de um futuro possível é um arriscado, nem por isto menos estimulante,
exercício de pretensão. É justamente a imponderabilidade do tempo futuro que
estimula a imaginação dos escritores do gênero. Dentre eles o nome de H. G.
Wells se destaca. Não só pela qualidade da obra, mas pelo fato de ser um dos
autores mais adaptados pelo cinema. Livros, contos e novelas de Wells são fonte
de inspiração de filmes desde 1919, com uma primeira versão de The First Men in the Moon, até hoje,
incluindo uma anunciada nova adaptação de O
Homem Invisível, a ser lançada em 2018, com Johnny Depp no elenco.
Umas das primeiras obras de H. G. Wells utilizadas
no cinema foi Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936), longa-metragem dirigido
por William Cameron Menzies (Os Invasores
de Marte), um reconhecido Diretor de Arte que eventualmente se arriscava na
direção de filmes. Neste trabalho Menzies contou com uma colaboração de luxo. O
próprio Wells foi autor do roteiro, uma experiência única na sua carreira. O
filme foi baseado no livro “The Shape of Things to Come”, publicado em 1933,
que faz uma crônica da civilização humana até o ano de 2106.
Daqui
a Cem Anos, apesar do que diz o título
brasileiro, não conta a história de um século. Mas apenas 96 anos (!).
Explica-se: a narrativa inicia em 1940 e encerra em 2036. Aqui, já temos uma
peculiaridade. A história do filme tem seu ponto de partida apenas quatro anos
à frente da época em que foi realizado (1936). No mundo real, a Guerra Mundial
era uma possibilidade real naquele momento histórico, que, infelizmente, acabou
por se confirmar em 1939. Este mesmo clima de ameaça à paz dá o tom inicial do
filme, que se passa na fictícia “Everytown”, claramente inspirada em Londres. A
cidade vive a iminência do início da Guerra, que já havia eclodido na Europa, mas
tenta esquecer temporariamente os problemas para viver os dias de alegria que
antecedem o Natal de 1940. Nesta sociedade organizada e próspera, a crença nos
valores da família e a fé inabalável nas possibilidades da ciência garantem a
prosperidade. Esta é a visão de mundo do personagem central, John Cabal
(Raymond Massey). Segundo seu entendimento, somente uma guerra seria capaz de
romper aquele equilíbrio social. E ela vem, com todo seu poder de destruição e
desagregação familiar. Vidas sucumbem, esperanças morrem e a cidade de
“Everytown” se transforma em ruínas após duas décadas de conflito.
Corte. Somos jogados no futuro, no ano de 1966. A
guerra acabou. Mas as cidades e suas populações foram duramente castigadas. Os
recursos e a prosperidade são coisas do passado. A nova realidade impõe um
cenário de miséria, fome e destruição. Quase uma volta ao tempo das cavernas.
Uma das mais nefastas consequências da guerra foi a temível “Doença dos
Errantes” que leva as pessoas a ficarem vagando sem rumo (zumbis?). Os
contaminados eram abatidos a tiro, sem compaixão. A peste extermina metade da
população.
Mais um pulo no tempo. Estamos em 1970. A “peste”
foi erradicada. A civilização começa a dar sinais de estar saindo da época das
trevas. No entanto, naquela nova sociedade rural que começa a se formar, ainda
não há a noção de Estado e Governo. No vácuo de poder logo o instinto de
dominação dos homens se manifesta com o surgimento de um pequeno tirano local que
domina com mão de ferro a região de “Everytown”, transformada num pequeno reino
particular. Porém tudo muda com o retorno de John Cabal à cidade, após lutar no
front de batalha da guerra. Ele vem com ideias progressistas, ainda com a fé
inabalável nos poderes transformadores da ciência e da tecnologia. Dá-se então
o inevitável embate entre a barbárie (o tirano) e a civilização (o
progressista), e o mundo mergulha na nova ordem mundial que promete tempos de
prosperidade.
Uma última viagem no tempo. Vamos parar em 2036, no
admirável mundo novo, altamente tecnológico, onde todas as necessidades
materiais do homem estão supridas. Mas, nem tudo
é um mar de rosas. Em certo momento um dos personagens diz: “Progresso não é
viver. É a preparação para viver”. Não há mais desafios pessoais, a ciência
dá todas as respostas. A questão de fundo é: Será este o mundo que realmente
desejamos?
Daqui
a Cem Anos é uma típica alegoria
progressista que já foi tema de muitas histórias de H. G. Welles. Há, porém, um
componente adicional: o humanismo. Além do grande e ambicioso painel histórico
que a história retrata, não foram deixados de lado os pequenos dramas pessoais
que movem as grandes revoluções. A utopia das sociedades perfeitas e mundos
idealizados é tema de fundo das primeiras obras de ficção científica produzidas
nos anos iniciais do século 20. E Daqui a
Cem Anos é um inestimável exemplo do que de melhor já se fez no gênero.
Vale lembrar que ele surge apenas uma década após a obra-prima Metrópolis, de Fritz Lang, com a qual,
aliás, possui alguns pontos de contato pela abordagem do totalitarismo nas
sociedades altamente tecnológicas.
Em termos eminentemente artísticos o filme de William
Cameron Menzies é um espetáculo à parte por sua deslumbrante cenografia
(lembrando, o filme é de 1936, em preto-e-branco), elaborados sets e eficientes
trucagens de maquetes. Como exercício de especulação de possibilidades
científicas, Daqui a Cem Anos traz
muitos acertos em termos de imaginação de tecnologias que surgiriam no futuro.
O filme apresenta pioneiras TVs planas, telas de LED, tablet, celular de pulso,
projeção holográfica e uso regular de helicóptero como transporte civil (que
era apenas um projeto em desenvolvimento naquela época).
Daqui
a Cem Anos faz parte da coleção
“Clássicos Sci-Fi – Volume 3”, lançamento da Versátil Home Vídeo.
Assista o trailer: Daqui
a Cem Anos
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em outubro de 2016)
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