O cineasta britânico Michael Powell sempre foi
reconhecido como um eficiente narrador, cujo elaborado estilo visual se
ajustava à perfeição ao tom levemente (ou totalmente) fantasioso de seus
melhores filmes. Powell era dotado de uma prodigiosa visão estética vocacionada
ao espetáculo visual. Exemplo clássico de seu estilo foi Os Sapatinhos Vermelhos (1948) que capturou a imaginação das
plateias com seu clima de sonho e magia. Um dos mais notórios entusiastas deste
filme é Martin Scorsese, fã confesso do realizador.
Com uma extensa filmografia de prestígio, nada
faria supor que Michael Powell provocasse uma inesperada virada na fase final
da carreira. Em 1960 lança o surpreendente A Tortura do Medo (Peeping Tom).
Ousado e insanamente incompreendido em seu tempo, o filme foi destruído pela
crítica e decretou o assassinato da carreira de Michael Powell, que a partir de
então mergulhou em declínio, rumando definitivamente para um precoce
ostracismo.
Considerando a perspectiva histórica, parece
compreensível a polêmica e o choque que o filme provocou. Claramente a obra de
Powell estava à frente de seu tempo nas questões estéticas, narrativas e
temáticas. Era um filme insólito que chocou as plateias britânicas bem
comportadas da época. Curiosamente, no mesmo período foi lançado outro filme de
impacto, com resultado totalmente diverso, embora também inesperado levando-se
em conta a carreira do realizador. A
Tortura do Medo foi lançado em abril de 1960, e apenas dois meses após, em
junho, Psicose de Alfred Hitchcock
chegava às telas. Ambos os filmes ousaram no roteiro, avançaram na abordagem da
violência, apresentaram protagonistas assassinos (que provocam reações de
empatia / rejeição na audiência) e envolviam o espectador num universo de
morbidez psicológica. No entanto, os filmes percorreram caminhos distintos.
Enquanto um se tornava clássico instantâneo, o outro era esquecido, colocado no
limbo da história. Então, surge o catador de pérolas, Martin Scorsese, que
vinte anos depois resgata o filme de Michael Powell, exibe em festivais e
oportuniza a redescoberta de uma obra-prima, elevada hoje à categoria de “cult
movie”.
“Peeping
Tom” é uma expressão inglesa que significa algo como “espiar”, “observar
secretamente”, cuja origem remonta a uma lenda anglo-saxã relacionada à Lady
Godiva, que cavalgou nua pelas ruas da sua cidade. Ao fazer este passeio (fruto
de uma promessa) ela teria instruído ao povo para se fechar em suas casas, para
não vê-la sem roupas. Mas, um tal de Tom não resistiu e acabou espiando pela
janela. Como punição divina ele teria ficado imediatamente cego.
“Tudo
que eu filmo, eu sempre perco”
O personagem protagonista de A Tortura do Medo é Mark Lewis (Karlheinz
Böhm, bastante conhecido na época por ter interpretado o imperador
Francisco José nos três filmes da série Sissi),
um cinegrafista que trabalha como auxiliar do diretor de fotografia de um
estúdio de cinema. Nas horas vagas trabalha como fotógrafo de “nus eróticos” em
um estúdio clandestino. Seu grande projeto de vida é realizar um documentário,
cujo conteúdo desconhecido é eventualmente sugerido ao espectador ao longo da
história. No decorrer das filmagens amadoras a verdadeira compulsão deste
personagem sexualmente reprimido se revela: assassinar mulheres para captar com
a câmera o preciso momento de horror que precede a morte (um precursor dos
míticos “snuff movies”).
A origem deste comportamento estaria no passado do
protagonista Mark Lewis. Quando criança, seu pai, um psicólogo, o submetia a
experiências para explorar os efeitos do medo no sistema nervoso. Estas
experiências eram filmadas para posterior análise psicológica das reações da
mente de uma criança em formação. Posteriormente, Mark Lewis, já adulto, com
uma câmera na mão e uma obsessão na cabeça, segue seu comportamento compulsivo
de registrar a verdadeira emoção humana em filme.
Com um roteiro original, de forte caráter
freudiano, A Tortura do Medo discute
o tema do voyeurismo, que expressa subliminarmente uma carga de perversão.
Tímido e recluso, Mark Lewis é frio em suas interações sociais. Manifesta-se
apenas pelo olhar da câmera, a cujas imagens captadas atribui significados
distorcidos, desconectados da realidade.
No “grand finale” finalmente o cineasta frustrado
consegue finalizar sua grande obra documental, uma espécie de acerto de contas
definitivo com a figura do pai repressor. Uma libertação registrada em película.
Constantemente tenso e mórbido, o filme de Michael
Powell trabalha no registro psicológico de uma mente pervertida. A obsessão do
protagonista em registrar a “verdadeira” emoção humana, analogamente pode ser
entendida, com todas as ressalvas, ao ato de fazer cinema. Neste sentido, A Tortura do Medo é também um filme de e
sobre o cinema, a exemplo de Blow Up,
de Michelangelo Antonioni; Oito e Meio,
de Federico Fellini; O Desprezo, de
Jean-Luc Godard; Um Tiro na Noite, de
Brian de Palma e Janela Indiscreta,
de Alfred Hitchcock.
Uma aproximação entre Michael Powell e Alfred
Hitchcock se dá também pela presença da atriz Anna Massey, que 12 anos depois
atuaria na última obra-prima do mestre do suspense, Frenesi, com o qual, aliás, A
Tortura do Medo compartilha algumas semelhanças de estilo narrativo.
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)
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