quinta-feira, 1 de junho de 2017

"A Tortura do Medo": um homem, uma câmera


O cineasta britânico Michael Powell sempre foi reconhecido como um eficiente narrador, cujo elaborado estilo visual se ajustava à perfeição ao tom levemente (ou totalmente) fantasioso de seus melhores filmes. Powell era dotado de uma prodigiosa visão estética vocacionada ao espetáculo visual. Exemplo clássico de seu estilo foi Os Sapatinhos Vermelhos (1948) que capturou a imaginação das plateias com seu clima de sonho e magia. Um dos mais notórios entusiastas deste filme é Martin Scorsese, fã confesso do realizador.

Com uma extensa filmografia de prestígio, nada faria supor que Michael Powell provocasse uma inesperada virada na fase final da carreira. Em 1960 lança o surpreendente A Tortura do Medo (Peeping Tom). Ousado e insanamente incompreendido em seu tempo, o filme foi destruído pela crítica e decretou o assassinato da carreira de Michael Powell, que a partir de então mergulhou em declínio, rumando definitivamente para um precoce ostracismo.


Considerando a perspectiva histórica, parece compreensível a polêmica e o choque que o filme provocou. Claramente a obra de Powell estava à frente de seu tempo nas questões estéticas, narrativas e temáticas. Era um filme insólito que chocou as plateias britânicas bem comportadas da época. Curiosamente, no mesmo período foi lançado outro filme de impacto, com resultado totalmente diverso, embora também inesperado levando-se em conta a carreira do realizador. A Tortura do Medo foi lançado em abril de 1960, e apenas dois meses após, em junho, Psicose de Alfred Hitchcock chegava às telas. Ambos os filmes ousaram no roteiro, avançaram na abordagem da violência, apresentaram protagonistas assassinos (que provocam reações de empatia / rejeição na audiência) e envolviam o espectador num universo de morbidez psicológica. No entanto, os filmes percorreram caminhos distintos. Enquanto um se tornava clássico instantâneo, o outro era esquecido, colocado no limbo da história. Então, surge o catador de pérolas, Martin Scorsese, que vinte anos depois resgata o filme de Michael Powell, exibe em festivais e oportuniza a redescoberta de uma obra-prima, elevada hoje à categoria de “cult movie”.

 “Peeping Tom” é uma expressão inglesa que significa algo como “espiar”, “observar secretamente”, cuja origem remonta a uma lenda anglo-saxã relacionada à Lady Godiva, que cavalgou nua pelas ruas da sua cidade. Ao fazer este passeio (fruto de uma promessa) ela teria instruído ao povo para se fechar em suas casas, para não vê-la sem roupas. Mas, um tal de Tom não resistiu e acabou espiando pela janela. Como punição divina ele teria ficado imediatamente cego.


“Tudo que eu filmo, eu sempre perco”

O personagem protagonista de A Tortura do Medo é Mark Lewis (Karlheinz Böhm, bastante conhecido na época por ter interpretado o imperador Francisco José nos três filmes da série Sissi), um cinegrafista que trabalha como auxiliar do diretor de fotografia de um estúdio de cinema. Nas horas vagas trabalha como fotógrafo de “nus eróticos” em um estúdio clandestino. Seu grande projeto de vida é realizar um documentário, cujo conteúdo desconhecido é eventualmente sugerido ao espectador ao longo da história. No decorrer das filmagens amadoras a verdadeira compulsão deste personagem sexualmente reprimido se revela: assassinar mulheres para captar com a câmera o preciso momento de horror que precede a morte (um precursor dos míticos “snuff movies”).

A origem deste comportamento estaria no passado do protagonista Mark Lewis. Quando criança, seu pai, um psicólogo, o submetia a experiências para explorar os efeitos do medo no sistema nervoso. Estas experiências eram filmadas para posterior análise psicológica das reações da mente de uma criança em formação. Posteriormente, Mark Lewis, já adulto, com uma câmera na mão e uma obsessão na cabeça, segue seu comportamento compulsivo de registrar a verdadeira emoção humana em filme.

Com um roteiro original, de forte caráter freudiano, A Tortura do Medo discute o tema do voyeurismo, que expressa subliminarmente uma carga de perversão. Tímido e recluso, Mark Lewis é frio em suas interações sociais. Manifesta-se apenas pelo olhar da câmera, a cujas imagens captadas atribui significados distorcidos, desconectados da realidade.


No “grand finale” finalmente o cineasta frustrado consegue finalizar sua grande obra documental, uma espécie de acerto de contas definitivo com a figura do pai repressor. Uma libertação registrada em película.

Constantemente tenso e mórbido, o filme de Michael Powell trabalha no registro psicológico de uma mente pervertida. A obsessão do protagonista em registrar a “verdadeira” emoção humana, analogamente pode ser entendida, com todas as ressalvas, ao ato de fazer cinema. Neste sentido, A Tortura do Medo é também um filme de e sobre o cinema, a exemplo de Blow Up, de Michelangelo Antonioni; Oito e Meio, de Federico Fellini; O Desprezo, de Jean-Luc Godard; Um Tiro na Noite, de Brian de Palma e Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock.

Uma aproximação entre Michael Powell e Alfred Hitchcock se dá também pela presença da atriz Anna Massey, que 12 anos depois atuaria na última obra-prima do mestre do suspense, Frenesi, com o qual, aliás, A Tortura do Medo compartilha algumas semelhanças de estilo narrativo.

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)

Jorge Ghiorzi

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