Era uma vez. Assim iniciam as fábulas, os contos de
fadas e as histórias infantis. A frase remete imediatamente a fatos ocorridos
no passado. Reais ou imaginados. Mas certamente fantasiosos. É neste registro
narrativo que transcorre O Espírito da Colmeia (El espiritu
de la colmena, 1973), de Victor Erice, o estimado cult do cinema espanhol dos anos 70. Alegórico e simbólico, o filme
se passa na Espanha no ano de 1940. Naquele momento a Europa estava conflagrada
pela Segunda Guerra Mundial, e o país, em particular, vivia as consequências do
fim da Guerra Civil espanhola, que durou três anos e instaurou o regime
fascista de Francisco Franco.
Assim como O Labirinto
do Fauno, o filme de Victor Erice também ecoa o terror do período do
general Franco. Menos explícito do que o filme de Guillermo Del Toro, O Espírito da Colmeia envereda por um
caminho mais imagético e trabalha essencialmente com a sugestão de repressão
daquele período político de supressão dos direitos civis.
A ação se passa num pequeno vilarejo no interior da
Espanha. O termo “ação” talvez não seja exatamente adequado no caso, pois a
vida pacata do povoado segue uma rotina de poucas novidades. Os únicos contatos
com o mundo exterior são o trem que chega diariamente à pequena estação local, e
o cinema ambulante que eventualmente visita a cidade e traz um pouco de
diversão lúdica para os moradores. As portas do imaginário coletivo são abertas
para a comunidade quando o clássico Frankenstein
(1931), de James Whale, é projetado no cineminha improvisado do povoado. Na
sessão a plateia é formada por adultos e menores de idade, sem distinção. O
filme impressiona de maneira especial duas pequenas crianças, Ana (Ana Torrent)
e sua irmã, poucos anos mais velha, Isabel (Isabel Telleria). A experiência
desperta dúvidas na pequena Ana. Ela questiona a irmã, querendo saber por que o
“monstro” de Frankenstein matou a garotinha (sequência do lago) e porque a
própria criatura foi morta depois pela população. Isabel responde que é tudo falso,
um truque do filme, que aquilo que assistiram não é verdadeiro. E conta, para
espanto da irmã, a história fantasiosa de um “espírito” de verdade que se
esconde num poço numa área distante da vila. A história estimula a imaginação
da pequena Ana, que passa a visitar o poço em busca do seu “Frankenstein”.
A narrativa muda de rumo quando um elemento do
mundo real invade o universo fantasioso criado na mente da garota. No caso, a
chegada de um soldado desertor que se esconde próximo ao poço. Para Ana, aquele
homem é a corporificação do espírito que povoa sua imaginação, o seu
“Frankenstein” construído por seu desejo. Passa então a cuidar do soldado,
levando alimentos e roupas em segredo, inclusive da própria família. Ana cuida
do seu monstro secreto como se fosse seu “Frankenstein” de estimação,
desenvolvendo com ele uma relação que mescla sentimentos de estranhamento,
fascínio e sedução. Por fim, a descoberta do pequeno segredo dos dois deflagra
o desfecho da narrativa.
A dedicação de Ana a seu amigo secreto expressa, de
certa forma, uma reação ao ambiente familiar pouco amoroso, onde seus pais
vivem uma relação fria e distante. O pai, Fernando (Fernando Fernán Gómez), é
um apicultor, que nas horas vagas escreve textos poéticos sobre a vida das
abelhas. A mãe, Teresa (Teresa Gimpera), é uma mulher um tanto melancólica que
escreve cartas para um desconhecido, que podemos supor que seja um amante ou
amor perdido do passado. Não há praticamente nenhuma interação entre Fernando e
Teresa. A volta deles o mundo das filhas pulsa de desejos, descobertas, medos e
fantasias. A casa da família representa metaforicamente uma colmeia de abelhas,
onde cada membro representa seu papel social submetido a uma hierarquia
estabelecida para uma vida sem surpresas nem sobressaltos. Não por acaso, os
vidros das portas e janelas da casa tem o formato hexagonal, semelhante aos
favos de mel.
O olhar inocente da criança protagonista reordena o
mundo percebido. A fantasia molda a dureza da realidade. A descoberta dos fatos
da vida, de modo especial a morte, revelam uma realidade transformadora. A
entrada em cena do soldado / “espírito”, e sua representação como figura
adulta, alheia ao mundo (re)conhecido, reconfigura a arquitetura mental da
pequena Ana. A colmeia está em desequilíbrio.
Há um clima de tensão e mistério no ar. A
narrativa, lenta e silenciosa, de poucos diálogos, explora primordialmente o
desconhecido, sob a ótica das crianças. Ao abrir mão de um realismo pleno, o
filme de Victor Erice entrega uma narrativa que assume o tom sobrenatural em
diversas passagens. Especialmente no final de forte caráter poético.
O “monstro”, ou espírito, é uma representação
simbólica da situação política vivida pela Espanha naquele período. A jornada
de descoberta da pequena Ana é uma metáfora para a sociedade sufocada no
enfrentamento aos desmandos da ditadura liderada por Franco. Então, Franquismo
é igual a Frankenstein. A sonoridade das palavras só auxilia na associação dos
significados.
Nos aspectos puramente técnicos e artísticos o
filme é um primor. Desde a doce e um tanto climática música de Luis de Pablo,
passando pelo roteiro enxuto do próprio Victor Erice, em parceria com Ángel
Férnandez Santos, até a bela fotografia de Luis Cuadrado, em tons âmbar, a cor
do mel, O Espírito da Colmeia é um
espetáculo que deleita o cinéfilo mais atento.
Assista o trailer: O Espírito da Colmeia
Jorge Ghiorzi
Nenhum comentário:
Postar um comentário