sábado, 15 de julho de 2017

“O Espírito da Colmeia”: quando a fantasia constrói o real


Era uma vez. Assim iniciam as fábulas, os contos de fadas e as histórias infantis. A frase remete imediatamente a fatos ocorridos no passado. Reais ou imaginados. Mas certamente fantasiosos. É neste registro narrativo que transcorre O Espírito da Colmeia (El espiritu de la colmena, 1973), de Victor Erice, o estimado cult do cinema espanhol dos anos 70. Alegórico e simbólico, o filme se passa na Espanha no ano de 1940. Naquele momento a Europa estava conflagrada pela Segunda Guerra Mundial, e o país, em particular, vivia as consequências do fim da Guerra Civil espanhola, que durou três anos e instaurou o regime fascista de Francisco Franco.

Assim como O Labirinto do Fauno, o filme de Victor Erice também ecoa o terror do período do general Franco. Menos explícito do que o filme de Guillermo Del Toro, O Espírito da Colmeia envereda por um caminho mais imagético e trabalha essencialmente com a sugestão de repressão daquele período político de supressão dos direitos civis.

A ação se passa num pequeno vilarejo no interior da Espanha. O termo “ação” talvez não seja exatamente adequado no caso, pois a vida pacata do povoado segue uma rotina de poucas novidades. Os únicos contatos com o mundo exterior são o trem que chega diariamente à pequena estação local, e o cinema ambulante que eventualmente visita a cidade e traz um pouco de diversão lúdica para os moradores. As portas do imaginário coletivo são abertas para a comunidade quando o clássico Frankenstein (1931), de James Whale, é projetado no cineminha improvisado do povoado. Na sessão a plateia é formada por adultos e menores de idade, sem distinção. O filme impressiona de maneira especial duas pequenas crianças, Ana (Ana Torrent) e sua irmã, poucos anos mais velha, Isabel (Isabel Telleria). A experiência desperta dúvidas na pequena Ana. Ela questiona a irmã, querendo saber por que o “monstro” de Frankenstein matou a garotinha (sequência do lago) e porque a própria criatura foi morta depois pela população. Isabel responde que é tudo falso, um truque do filme, que aquilo que assistiram não é verdadeiro. E conta, para espanto da irmã, a história fantasiosa de um “espírito” de verdade que se esconde num poço numa área distante da vila. A história estimula a imaginação da pequena Ana, que passa a visitar o poço em busca do seu “Frankenstein”.


A narrativa muda de rumo quando um elemento do mundo real invade o universo fantasioso criado na mente da garota. No caso, a chegada de um soldado desertor que se esconde próximo ao poço. Para Ana, aquele homem é a corporificação do espírito que povoa sua imaginação, o seu “Frankenstein” construído por seu desejo. Passa então a cuidar do soldado, levando alimentos e roupas em segredo, inclusive da própria família. Ana cuida do seu monstro secreto como se fosse seu “Frankenstein” de estimação, desenvolvendo com ele uma relação que mescla sentimentos de estranhamento, fascínio e sedução. Por fim, a descoberta do pequeno segredo dos dois deflagra o desfecho da narrativa.

A dedicação de Ana a seu amigo secreto expressa, de certa forma, uma reação ao ambiente familiar pouco amoroso, onde seus pais vivem uma relação fria e distante. O pai, Fernando (Fernando Fernán Gómez), é um apicultor, que nas horas vagas escreve textos poéticos sobre a vida das abelhas. A mãe, Teresa (Teresa Gimpera), é uma mulher um tanto melancólica que escreve cartas para um desconhecido, que podemos supor que seja um amante ou amor perdido do passado. Não há praticamente nenhuma interação entre Fernando e Teresa. A volta deles o mundo das filhas pulsa de desejos, descobertas, medos e fantasias. A casa da família representa metaforicamente uma colmeia de abelhas, onde cada membro representa seu papel social submetido a uma hierarquia estabelecida para uma vida sem surpresas nem sobressaltos. Não por acaso, os vidros das portas e janelas da casa tem o formato hexagonal, semelhante aos favos de mel.

O olhar inocente da criança protagonista reordena o mundo percebido. A fantasia molda a dureza da realidade. A descoberta dos fatos da vida, de modo especial a morte, revelam uma realidade transformadora. A entrada em cena do soldado / “espírito”, e sua representação como figura adulta, alheia ao mundo (re)conhecido, reconfigura a arquitetura mental da pequena Ana. A colmeia está em desequilíbrio.


Há um clima de tensão e mistério no ar. A narrativa, lenta e silenciosa, de poucos diálogos, explora primordialmente o desconhecido, sob a ótica das crianças. Ao abrir mão de um realismo pleno, o filme de Victor Erice entrega uma narrativa que assume o tom sobrenatural em diversas passagens. Especialmente no final de forte caráter poético.

O “monstro”, ou espírito, é uma representação simbólica da situação política vivida pela Espanha naquele período. A jornada de descoberta da pequena Ana é uma metáfora para a sociedade sufocada no enfrentamento aos desmandos da ditadura liderada por Franco. Então, Franquismo é igual a Frankenstein. A sonoridade das palavras só auxilia na associação dos significados.

Nos aspectos puramente técnicos e artísticos o filme é um primor. Desde a doce e um tanto climática música de Luis de Pablo, passando pelo roteiro enxuto do próprio Victor Erice, em parceria com Ángel Férnandez Santos, até a bela fotografia de Luis Cuadrado, em tons âmbar, a cor do mel, O Espírito da Colmeia é um espetáculo que deleita o cinéfilo mais atento.

Assista o trailer: O Espírito da Colmeia

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

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