terça-feira, 17 de setembro de 2024

Golpe de Sorte em Paris: três é demais


Exibido em première mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 2023, o novo filme de Woody Allen chega às telas brasileiras com um ano de atraso. Não é novidade que a circulação dos trabalhos do realizador vem sendo cada vez mais restrita, bem distante dos tempos de sucesso popular, particularmente nos anos 80 e 90. Um novo filme dirigido por Woody Allen costumava ser um acontecimento. Mas, isto é passado.

Após a virada do século o cineasta passou a receber menos atenção do público. E, por consequência, também dos Estúdios. Esta nova realidade levou Allen a explorar novos territórios, longe de sua amada Nova Iorque. Esta fase da carreira o levou para a Europa, onde encontrou novos financiadores para os projetos, novos cenários e possibilidade de explorar temas mais universais, distantes do contexto da América.

Golpe de Sorte em Paris (Coup de chance, 2023), seu 50º longa-metragem, foi inteiramente filmado em Paris e falado em francês, língua que ele próprio reconhece que não domina totalmente. Este fato, por si só, revela um espírito de desprendimento e ousadia para um cineasta veterano que completa 90 anos em 2025. Há quem diga – ele próprio não desmente – que este poderá ser o seu último filme, encerrando uma carreira cinematográfica de quase 60 anos.


A trama inicialmente romântica de Golpe de Sorte em Paris em algum momento se transforma em um pequeno thriller de mistério e suspense, algo que se aproxima do que vimos em Ponto Final: Match Point, sucesso que Allen dirigiu em 2005. Tudo começa nas calçadas de Paris, quando uma mulher, Fanny (Lou de Laâge), caminha até o trabalho. Em meio aos passantes, um encontro casual. Um homem, Alain (Niels Schneider), reconhece Fanny como uma antiga colega de escola. Conversam, relembram o passado, trocam pequenas confidências. Renasce uma antiga paixão não consumada que se transforma em caso de adultério. Fanny está casada com um rico e poderoso empresário, conhecido por seu caráter controlador e um passado suspeito. Ele a trata como a perfeita “esposa troféu”, apresentada como trunfo nas altas rodas da sociedade parisiense. Surge então o dilema de Fanny: viver todas as possibilidades do novo amor ou permanecer em um estável casamento sem paixão. O destino dos três, por fim, se resolve por um golpe do destino. Ou seria um golpe de sorte?


Marcas indeléveis da marca autoral de Woody Allen estão presentes na narrativa que situa sua trama no alto extrato da sociedade, onde transitam personagens afetadas, hedonistas e niilistas, com seus jogos de poder e aparências. Temperando este universo o realizador insere a usual trilha sonora de jazz. Porém, desta vez, não recorreu ao antigo jazz tradicional. Sua opção foi conceder espaço para o jazz mais moderno. Presentes também estão as citações e referências artísticas e literárias, aqui absolutamente contextualizadas, pois Alain vive um escritor em processo de criação de seu novo romance. Este universo artístico agiu como fator de sedução para Fanny, que identificou uma oportunidade de exercer suas latentes inclinações artísticas sufocadas pelo casamento. O roteiro coloca habilmente em contraste a vida de liberdade do artista em oposição à prisão que as conveniências sociais impõem. A tese colocada aqui indica que apenas a arte permite o pleno exercício da liberdade.

A elegância, no sentido literal e figurativo, é uma marca muito presente em Golpe de Sorte em Paris. Seja pelos ambientes refinados, seja pela apresentação das personagens – principais e secundárias – ou pelos diálogos, sempre precisos, enxutos, afiados e perspicazes. O conjunto funciona maravilhosamente bem em um roteiro escrito com inteligência, sem excessos.

O elenco sem estrelas, formado por atores e atrizes com pouca visibilidade internacional fora da França, está muito à vontade com atuações naturalistas que a direção de Woody Allen costuma imprimir em seus filmes. Um destaque para a protagonista Lou de Laâge (de O Baile das Loucas), cuja fisionomia possui traços de semelhança com a atriz Anna Karina, musa de Jean-Luc Godard.


Caso se confirme que Golpe de Sorte em Paris seja efetivamente o último filme dirigido por Woody Allen podemos afirmar que o encerramento de sua carreira se dá com um trabalho que reúne a essência de alguns dos melhores momentos da obra do cineasta. Seu estilo peculiar vem sendo depurado ano após ano. Aqui, mais uma vez, encontra uma síntese bem equilibrada que assistimos com grande prazer. Não há o humor que marcou fortemente seus primeiros trabalhos. Ele foi substituído por uma abordagem que investe na graça e ironia, com um refinamento que é puro deleite.

Assista ao trailer: Golpe de Sorte em Paris


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Não Fale o Mal: viagem de pesadelo

 

Lançada há apenas dois anos, a produção dinamarquesa Não Fale o Mal alcançou grande repercussão no Festival Sundance de 2022 e atraiu a atenção do mercado internacional. Vislumbrando o alto potencial de bilheteria para as grandes massas, Hollywood rapidamente tratou de comprar os direitos para produzir uma refilmagem, retrabalhando o tema e o contexto do filme com elenco e cenários mais identificáveis para os mercados norte-americano e internacionais. Assim surgiu o tenso thriller psicológico Não Fale o Mal (Speak no Evil, 2024) made in USA, com a grife da produtora Blumhouse, especialista em filmes de horror, terror e suspense de baixo orçamento e grande bilheteria como Atividade Paranormal, Corra!, O Homem Invisível e M3gan. A direção ficou a cargo de James Watkins, realizador de Sem Saída (2008) e A Mulher de Preto (2012).

Família (casal e filha) em visita à Toscana, na Itália, acaba se relacionando com outra família (casal e filho) que encontra por acaso no passeio. Aos poucos cresce entre eles uma amizade de ocasião em terra estranha. Tempos depois, após retornarem para suas cidades, uma das famílias convida a outra para passar alguns dias em sua tranquila e isolada casa de campo no interior da Inglaterra. Logo os hóspedes visitantes descobrem, contudo, que o que deveria ser um simples final de semana de descanso e lazer se transforma em um terrível pesado que coloca suas vidas em perigo.



Desde o primeiro minuto sabemos que algo de sinistro e perigoso ressoa com gravidade em Paddy (James McAvoy), o pai da família anfitriã do passeio. Um gesto, um olhar, uma palavra mal colocada, uma fala fora do tom. Assim se constrói o andamento da trama, distribuindo pistas e informações de que algo muito errado não está certo naquela personalidade aparentemente amável e expansiva. Contribui decisivamente para esta sensação de desconforto o desempenho intenso de James McAvoy, operando em um registro assustador, que nos remete inevitavelmente ao seu personagem multifacetado em Fragmentado. A partir deste personagem emblemático, Não Fale o Mal se estabelece como um estudo de personalidade, que examina diferentes níveis de violência psicológica que se materializam em violência física. Sob esta ótica o longa de James Watkins lembra por vezes alguns trabalhos do austríaco Michael Haneke, que exploram questões perturbadoras que se escondem sob o verniz social.


O thriller é admirável na sustentação de uma atmosfera tensa e sufocante por mais de uma hora, com efetivamente poucos fatos significativos ocorrendo em cena. Na verdade, aí está o truque. Não Fale o Mal possui uma construção lenta e consistente, quase minimalista, levando tudo num crescendo até o violento e catártico final. Não força nos clichês, que são quase uma regra de ouro quando se trata de thrillers de suspense, horror, terror e afins. Aliás, neste aspecto, até de maneira um tanto surpreendente, o remake norte-americano é mais sutil em muitos aspectos do que a versão original dinamarquesa. Uma refilmagem de um grande estúdio de Hollywood, usualmente produzida com mais recursos, costuma cair na armadilha de turbinar excessivamente o ritmo e a estética da obra original. Pois é aí que mora o pecado. Aqui, porém, houve um exercício de contenção, ao menos nos dois primeiros atos.


O remake norte-americano trouxe novos elementos e perspectivas em relação à versão dinamarquesa. Dois pontos são particularmente significativos. O Não Fale o Mal de Watkins traz em seu desenvolvimento, como acréscimo de roteiro, uma abordagem sobre a masculinidade desconstruída quando confronta a fragilidade de Ben (o pai da família visitante) em oposição ao macho dominante e confiante representado por Paddy. O outro ponto, que destoa muito em relação ao filme de 2022, diz respeito ao desfecho, que apresenta uma solução totalmente diversa, que acaba por transformar o produto final em algo completamente distinto daquele que o originou. O que o filme dinamarquês omitiu em respostas e explicações, o remake hollywoodiano explica em demasia, particularmente em seu terço final, furtando da plateia o espaço para a fantasia e a imaginação.

Efetivamente Não Fale o Mal é envolvente em seu suspense que se intensifica cena após cena, num jogo psicológico com personagens bem constituídos. Apesar do segmento final abraçar a previsibilidade dos filmes do gênero, o que compromete parcialmente a experiência, o longa tem mais acertos do que erros. É um remake que não supera o original, mas é um remake que ousa com autonomia ao reinterpretar o longa original.


Assista ao trailer: Não Fale o Mal


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela