Exibido em première
mundial no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 2023, o novo filme de
Woody Allen chega às telas brasileiras com um ano de atraso. Não é novidade que
a circulação dos trabalhos do realizador vem sendo cada vez mais restrita, bem
distante dos tempos de sucesso popular, particularmente nos anos 80 e 90. Um
novo filme dirigido por Woody Allen costumava ser um acontecimento. Mas, isto é
passado.
Após a virada do
século o cineasta passou a receber menos atenção do público. E, por
consequência, também dos Estúdios. Esta nova realidade levou Allen a explorar
novos territórios, longe de sua amada Nova Iorque. Esta fase da carreira o
levou para a Europa, onde encontrou novos financiadores para os projetos, novos
cenários e possibilidade de explorar temas mais universais, distantes do
contexto da América.
Golpe de Sorte em
Paris
(Coup de chance, 2023), seu 50º longa-metragem, foi inteiramente filmado em
Paris e falado em francês, língua que ele próprio reconhece que não domina
totalmente. Este fato, por si só, revela um espírito de desprendimento e
ousadia para um cineasta veterano que completa 90 anos em 2025. Há quem diga –
ele próprio não desmente – que este poderá ser o seu último filme, encerrando
uma carreira cinematográfica de quase 60 anos.
A trama inicialmente
romântica de Golpe de Sorte em Paris em algum momento se transforma em
um pequeno thriller de mistério e suspense, algo que se aproxima do que vimos
em Ponto Final: Match Point, sucesso que Allen dirigiu em 2005. Tudo
começa nas calçadas de Paris, quando uma mulher, Fanny (Lou de Laâge), caminha
até o trabalho. Em meio aos passantes, um encontro casual. Um homem, Alain (Niels
Schneider), reconhece Fanny como uma antiga colega de escola. Conversam,
relembram o passado, trocam pequenas confidências. Renasce uma antiga paixão não
consumada que se transforma em caso de adultério. Fanny está casada com um rico
e poderoso empresário, conhecido por seu caráter controlador e um passado
suspeito. Ele a trata como a perfeita “esposa troféu”, apresentada como trunfo
nas altas rodas da sociedade parisiense. Surge então o dilema de Fanny: viver todas
as possibilidades do novo amor ou permanecer em um estável casamento sem
paixão. O destino dos três, por fim, se resolve por um golpe do destino. Ou
seria um golpe de sorte?
Marcas indeléveis
da marca autoral de Woody Allen estão presentes na narrativa que situa sua
trama no alto extrato da sociedade, onde transitam personagens afetadas,
hedonistas e niilistas, com seus jogos de poder e aparências. Temperando este universo
o realizador insere a usual trilha sonora de jazz. Porém, desta vez, não
recorreu ao antigo jazz tradicional. Sua opção foi conceder espaço para o jazz
mais moderno. Presentes também estão as citações e referências artísticas e
literárias, aqui absolutamente contextualizadas, pois Alain vive um escritor em
processo de criação de seu novo romance. Este universo artístico agiu como
fator de sedução para Fanny, que identificou uma oportunidade de exercer suas latentes
inclinações artísticas sufocadas pelo casamento. O roteiro coloca habilmente em
contraste a vida de liberdade do artista em oposição à prisão que as
conveniências sociais impõem. A tese colocada aqui indica que apenas a arte permite
o pleno exercício da liberdade.
A elegância, no
sentido literal e figurativo, é uma marca muito presente em Golpe de Sorte
em Paris. Seja pelos ambientes refinados, seja pela apresentação das
personagens – principais e secundárias – ou pelos diálogos, sempre precisos,
enxutos, afiados e perspicazes. O conjunto funciona maravilhosamente bem em um
roteiro escrito com inteligência, sem excessos.
O elenco sem
estrelas, formado por atores e atrizes com pouca visibilidade internacional
fora da França, está muito à vontade com atuações naturalistas que a direção de
Woody Allen costuma imprimir em seus filmes. Um destaque para a protagonista Lou
de Laâge (de O Baile das Loucas), cuja fisionomia possui traços de
semelhança com a atriz Anna Karina, musa de Jean-Luc Godard.
Caso se confirme
que Golpe de Sorte em Paris seja efetivamente o último filme dirigido
por Woody Allen podemos afirmar que o encerramento de sua carreira se dá com um
trabalho que reúne a essência de alguns dos melhores momentos da obra do
cineasta. Seu estilo peculiar vem sendo depurado ano após ano. Aqui, mais uma
vez, encontra uma síntese bem equilibrada que assistimos com grande prazer. Não
há o humor que marcou fortemente seus primeiros trabalhos. Ele foi substituído por
uma abordagem que investe na graça e ironia, com um refinamento que é puro
deleite.
Assista ao trailer: Golpe de Sorte em Paris
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com /
jghiorzi@gmail.com
@janeladatela
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