As casas são elementos utilizados com
frequência como espaços de confinamento onde transcorrem muitos filmes de
terror. Seja como ambiente de manifestação de forças malignas ou como local de
abrigo e refúgio, o fato é que as casas normalmente assumem a condição de
“personagem” ativo das narrativas construídas com o objetivo de provocar o medo
ao confrontar o limite entre o real e o sobrenatural. A ameaça, em última
ordem, se manifesta como um poder sinistro que rompe o equilíbrio e a harmonia
– ainda que aparente – de um lar doméstico. A tal da casa mal-assombrada é um
clássico das histórias de terror.
Pois justamente uma casa –
olha ela aí de novo - é o elemento catalizador de todos os mistérios e
espíritos do além que espreitam uma família no thriller de terror Não
Solte! (Never let go, 2024). O longa-metragem é estrelado e produzido
por Halle Berry, atriz vencedora do Oscar por seu desempenho em A Última
Ceia, de 2002. A direção é de
um especialista do gênero, o francês Alexandre Aja, que já demonstrou sua
identificação com os filmes de gênero nos longas Alta Tensão (2003), a
refilmagem Viagem Maldita (2006), o remake Piranha (2010) e Predadores
Assassinos (2019), aquele dos crocodilos que invadem uma casa inundada por
uma enchente, cuja sequência está em produção, mais uma vez com direção de Aja.
O núcleo narrativo de Não Solte! fica
limitado aos arredores de uma casa isolada em meio a uma densa floresta, ou
pelo menos, até aonde a corda esticada que prende seus moradores pode chegar. A
explicação para esta condição inusitada é o grande mistério da história. Na
casa reside uma família formada por uma mãe e dois filhos gêmeos
pré-adolescentes, órfãos de pai. Segundo um ritual pagão proferido pela mãe,
todos eles só podem sair de casa se estiverem amarrados por uma corda que os
liga diretamente com a moradia, construída com madeira de origem sagrada. A
crença é de que desta forma estariam protegidos dos espíritos e entidades
sobrenaturais que vivem na floresta e rondam ameaçadoramente a casa, sem, no
entanto, invadi-la, porque aquele ambiente familiar seria um refúgio seguro.
Com esta premissa a primeira referência que
nos vem à mente é o conto de fadas “João e Maria”, celebrado na obra dos irmãos
Grimm. Neste clássico infantil os dois irmãos demarcam sua trilha segura de
volta para casa com pedrinhas e migalhas de pão, assim escapando da morte. A
analogia entre as duas histórias é totalmente justificável, ainda que caminhem
por abordagens e desfechos completamente distintos. Enquanto a fábula de “João
e Maria” é uma historinha de fundo moral para fazer as crianças dormirem, o filme
Não Solte! se configura como um sombrio conto infantil de terror.
A casa como elemento simbólico de segurança é
muito presente no conceito de Não Solte!. Outra analogia que o filme parece
propor é a ideia de que as cordas que garantem a vida dos personagens sejam
entendidas como cordões umbilicais não seccionados, que asseguram a garantia da
vida antes do nascimento. No caso específico aqui, o que poderíamos definir
como “nascimento” seria a plena compreensão dos fatos que revela e desperta a
consciência. Romper as cordas (cortar o cordão umbilical), resultaria,
portanto, no processo final de libertação, física e psicológica, da influência
da mãe. Neste aspecto o filme de Alexandre Aja peca por ser tão literal e óbvio
em suas metáforas. Na verdade, não há um problema em si com as analogias, pois
contém um valor narrativo interessante. O ponto que fragiliza o resultado é a
ausência de uma complexidade na apresentação destes elementos. Eles apenas
estão lá, em cena, um tanto gratuitos. Meros artifícios estéticos sem a devida
reflexão crítica que as justifique no contexto geral.
Apesar da forte presença da matriarca zelosa
interpretada por Halle Berry, a história se desenvolve sob a perspectiva dos
filhos. O olhar deles, bem como da sua limitada compreensão dos fatos, conduz
nosso mergulho naquele universo de crenças e mitos. O medo da morte é real. As
ameaças seriam também? Deste impasse se constrói o suspense psicológico no qual
Não Solte! se transforma em seus dois atos finais. Na condição de
espectadores somos conduzidos para um determinado destino até que lá pelas
tantas as dúvidas começam a nos sobressaltar. Será isso mesmo? Há então uma
mudança de percepção sobre tudo que assistimos. Reconsideramos parcialmente os
fatos apresentados e colocamos a narrativa em outra rota. Quando achamos que as
peças todas foram rearranjadas em seu devido lugar, novas ocorrências voltam a
desordenar o conforto da plena compreensão do todo.
Não Solte!, que inicia como um filme de terror raiz, aos poucos se
transforma em um suspense psicológico de pouca inspiração, frustrando todas as boas
expectativas criadas por descontinuar toda a alegoria construída com algum
êxito. Uma análise sobre o poder da crença é um dos ótimos temas desperdiçados
pelo realizador Alexandre Aja, que revela uma indecisão sobre exatamente qual
projeto desejava fazer. Para fãs ou detratores, Não Solte! é um possível
filme de M. Night Shyamalan não realizado por Shyamalan. Para o bem ou para o
mal.
Assista ao trailer: Não Solte!
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com /
jghiorzi@gmail.com
@janeladatela