Após Pobres
Criaturas o realizador grego Yorgos Lanthimos faz um movimento de reversão
de expectativas. Com Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness, 2024)
retoma as narrativas herméticas, marca registrada de sua obra pretérita (O
Lagosta, O Sacrifício do Cervo Sagrado). Aqui ele renega, em termos
relativos, a aproximação com grandes plateias. Seu trabalho anterior venceu
resistências estéticas e temáticas do grande público e conquistou espaço na
Academia. Mas, aparentemente, não cedeu ao canto do cisne. Sua realização
seguinte, logo após o Oscar, não pretende encontrar público fácil, pois
abertamente não é um produto popular.
Tipos de
Gentileza
é um grande painel tríptico que reúne uma antologia de três histórias que podem
ou não estar de alguma maneira relacionadas. A figura misteriosa conhecida
apenas pelas iniciais B.M.F. é um elo que marca presença, de maneira enigmática,
no título das três histórias. Outro ponto de similaridade e aproximação é o
fato de o mesmo elenco atuar, em cada uma das partes, com personagens e
protagonismos distintos.
A primeira
história, intitulada “A morte de B.M.F.”, mostra um homem (Jesse Plemons) que
tem sua vida totalmente controlada pelo chefe (Williem Dafoe), que decide toda
sua rotina: o que comer, como se comportar, quando ter relações sexuais e o que
vestir. A relação entre eles passa a ser questionada quando o homem recebe um
pedido inusitado. Este episódio trata de temas como submissão, subserviência, relações
de poder e livre arbítrio.
Na segunda
história, “B.M.F. está voando”, Jesse Plemons interpreta um policial cuja
esposa (Emma Stone) está desaparecida há meses após um acidente de barco. Um
dia, contra todas as expectativas, ela reaparece sem muitas explicações. Aos
poucos o policial passa a desconfiar que aquela mulher não é realmente sua
esposa. Um tom moderado de suspense tempera toda a trama, que por fim se rende
a um desfecho de apelo selvagem e grotesco.
Por fim, na
terceira história, chamada “B.M.F. come um sanduíche”, Emma Stone e Jesse
Plemons interpretam membros de uma seita de culto espiritualista, obcecada pela
pureza dos corpos. A missão dos dois é encontrar uma mulher profetizada com a
habilidade de reanimar os mortos. Senso de pertencimento, lavagem cerebral, captura
de consciências e sexualidade se apresentam como temas centrais.
Tipos de
Gentileza
reúne três histórias que transitam pelos caminhos aleatórios que regem a
vida e os desafios pessoais de seus protagonistas. A aglomeração de situações
inusitadas transforma-se, em suma, na diversidade dramática que se configuram nos
três atos. Há uma divisão de protagonismos nos episódios desta antologia
dissonante da sociedade contemporânea. O primeiro ato é liderado totalmente
pelo personagem de Jesse Plemons. O segundo, por sua vez, é compartilhado entre
Plemons e Emma Stone. No terceiro ato o brilho solo de Emma Stone é total.
A parceria entre Yorgos
e Emma Stone vem rendendo ótimos frutos para ambos. Já trabalharam juntos, além
do já citado Pobres Criaturas, também em A Favorita (2018), no
curta Vlihi (2022) e em um comercial da Gucci. E vem mais por aí. A
atriz, juntamente com Jesse Plemons, está no projeto em produção, Bugonia,
remake de um filme sul-coreano. O grego
Yorgos descobriu um grande potencial latente na atriz, que se entrega totalmente
sem freios aos delírios artísticos do realizador. Uma clara relação de
confiança entre criador e criatura. Um salto acrobático sem redes de Emma
Stone, que poderia reinar confortavelmente em produtos bem comportados
hollywoodianos.
Há um propósito
subliminar de comédia em Tipos de Gentileza. Amarga, sórdida, por vezes incomoda,
mas ainda assim uma comédia. Seja pelo inusitado das situações, seja por
personagens patéticos, seja por lidar com o absurdo como forma crítica de
pontuar a realidade. O filme claramente não dá respostas, apenas propõe
questões. As três histórias se concluem com desfechos abertos. Um mergulho sem
a certeza do retorno à superfície. Este encargo fica por conta do espectador. Tipos
de Gentileza é um desafio. Um quebra-cabeça que não se completa com
facilidade, ou sequer entrega todas as peças do jogo. Exige mentalmente da
plateia uma disposição para a ousadia provocativa de uma narrativa que
apresenta com trivialidade o excêntrico.
Superadas com
fôlego e disposição as quase três horas de duração, o aspecto impenetrável de Tipos
de Gentileza, provoca, simultaneamente, distanciamento e sedução. A
sensação de estranhamento é palpável. Yorgos Lanthimos propõe um mundo em
crise, sem soluções fáceis. Neste aspecto, o filme traz um olhar pessimista. É
duro e cruel, ainda que satírico e irônico.
Assista ao trailer: Tipos de Gentileza
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com / jghiorzi@gmail.com