sexta-feira, 11 de agosto de 2017

“O Estranho que Nós Amamos”: jogo de conquista e sedução


As duas versões de O Estranho que Nós Amamos estão separadas no tempo por 46 anos. De 1971, quando foi lançada a primeira versão dirigida por Don Siegel, até 2017, quando o remake de Sofia Coppola chega às telas, os tempos definitivamente são outros. O mundo mudou bastante e novos comportamentos foram assimilados. Todo este caldo de cultura social está presente neste novo olhar feminino sobre uma história de desejo, manipulação e exercício de poder.

Vamos aos fatos. A história de O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled) se passa na Virginia (EUA) em 1864, no período da Guerra Civil. Um cabo das tropas da União, John McBurney (Colin Farrell), é ferido em combate e encontrado em um bosque, à beira da morte, pela jovem Amy (Oona Laurence). Ela o leva para a casa onde mora, uma internato de mulheres gerenciado por Martha Farnsworth (Nicole Kidman). Inicialmente a contragosto as mulheres decidem cuidá-lo até que se recupere e seja entregue às autoridades. No período em que se recupera, McBurney, na condição de único homem da casa, começa a despertar interesses e desejos nas mulheres, especialmente na professora Edwina (Kirsten Dunst), na aluna adolescente Alicia (Elle Fanning) e também na própria Martha. Um jogo de conquista e sedução se estabelece entre as moradoras da casa e o soldado ferido.


Somos introduzidos no universo privado daquelas mulheres como se estivéssemos entrando num conto de fadas. A jovem que percorre os bosques para colher cogumelos seria a chapeuzinho vermelho que encontra o lobo sedutor que haverá de romper o equilíbrio daquele mundo à parte representado pelo internato. Um santuário imune e intocado pela violência da guerra que explode além dos muros que cercam a propriedade. Aquelas mulheres confinadas vivem um simulacro da alegoria da Caverna de Platão na qual a inesperada presença de um homem liberta sentimentos reprimidos por um ambiente opressivo.

Uma diferença fundamental e determinante entre as duas versões de O Estranho que Nós Amamos é a variação do foco narrativo. A produção original de Don Siegel era manifestamente centrada e conduzida a partir da personagem masculina (interpretada por Clint Eastwood). Já na versão de Sofia Coppola o protagonismo do olhar e das ações é inteiramente do coletivo das mulheres (não há o protagonismo destacado de nenhuma delas). Esta alteração de registro redefiniu a significação original de uma passagem decisiva da história: o episódio da amputação que assume a conotação metafórica de uma castração.


Mais uma vez Sofia Coppola exibe sensibilidade para criar ambientes esteticamente muito bem fotografados utilizando com talento a alternância de luz e sombra, que aproxima seu trabalho da técnica do ‘chiaroscuro’ (claro-escuro), muito utilizada na pintura renascentista do século XV. Apesar de seus 46 anos, pode-se dizer que Sofia é uma espécie de cineasta barroca em pleno século XXI.


Outra opção de risco da diretora, que se mostrou adequada, foi a decisão de não explicitar graficamente as sequências mais sensuais. Se na versão de 1971 Don Siegel foi assumidamente carnal nas relações do soldado com as mulheres (especialmente na sequência de sexo entre Clint Eastwood e Geraldine Page), na refilmagem Sofia Coppola foi mais indireta e sutil, amenizando o potencial erótico das sequências.

Comparações entre filme original e refilmagem são inevitáveis. Mas com O Estranho que Nós Amamos estamos diante de um caso onde as duas versões são admiráveis. Cada uma em seu tempo, são retratos de uma época.

Assista o trailer: O Estranho que Nós Amamos

Jorge Ghiorzi

O 3º Homem (1949)



quinta-feira, 3 de agosto de 2017

“O Filme da Minha Vida”: memórias de cinema


Terceiro longa-metragem dirigido por Selton Mello, O Filme da Minha Vida chega às telas confirmando as virtudes e os vícios do realizador, que demonstra especial predileção por histórias minimalistas centradas em personagens sufocados por crises pessoais, narradas com sensibilidade e apuro técnico. Assim como em O Palhaço, lançado em 2011, mais uma vez a figura do pai volta a ocupar importante papel na dramaturgia da história. A coincidência foi meramente circunstancial tendo em vista que o próprio autor da obra original, o escritor chileno Antonio Skármeta, escolheu Selton para dirigir a versão cinematográfica do livro “Um Pai de Cinema”. Se naquele trabalho de seis anos atrás o realizador tratou da temática paterna com um olhar de comédia e eventuais toques dramáticos, desta vez virou a chave, assumindo o drama intimista com ocasionais escapes cômicos.

O Filme da Minha Vida é o filme das memórias afetivas do narrador que revisita seu passado para refletir sobre os significados e valores de sua existência. O passado pode ser um velho filme preto e branco de John Ford, ou talvez uma velha Maria-fumaça percorrendo os trilhos de bucólicas paisagens. Estas são metáforas que evocam o passado do protagonista. Filho de pai francês (Vincent Cassel) e mãe brasileira, Tony Terranova (Johnny Massaro) é um jovem professor de francês no colégio de uma pequena cidade do interior na fronteira gaúcha. Um dia seu pai some de casa, abandona a família sem deixar nenhuma explicação. Enquanto sofre pela repentina ausência do pai, Tony precisa lidar com a passagem para a vida adulta. Seu grande companheiro de jornada, e ombro amigo nas horas difíceis, é Paco (Selton Mello), que faz às vezes a função de mentor e pai substituto. Enquanto aguarda o improvável retorno do pai, Tony se dedica às suas grandes paixões: o cinema, a poesia e as mulheres.


Filmado em locações na serra gaúcha, O Filme da Minha Vida exibe uma exuberante paisagem natural lindamente fotografada pelo mestre Walter Carvalho, esmero que também se verifica caprichada direção de arte que reproduz com riqueza de detalhes o modo de vida, os figurinos e os ambientes de uma pequena cidade do interior nos anos 60.

Neste novo trabalho Selton Mello volta a exibir um cinema sensível e poético, mais interessado em examinar personagens do que propriamente contar uma história. Algo que vai completamente na contramão da imensa maioria da produção do cinema nacional. Há, portanto, uma ambição artística que se manifesta num forte desejo do realizador em assegurar uma marca pessoal de estilo.


A pretensão estética é uma das fragilidades de O Filme da Minha Vida, que parece excessivamente preocupado em seduzir a sensibilidade do espectador a cada sequência, cena e enquadramento. Esta escolha do realizador em valorizar mais as partes em desfavor da integridade do todo resulta em sequências gratuitas e exibicionistas que pouco significam no contexto geral, particularmente do personagem Paco (uma egotrip do ator-diretor) com suas tiradas supostamente cômicas, frases de efeito e aforismos quase infantis. Isto sem falar em alguns personagens secundários mal resolvidos, como o garoto que quer conhecer a zona, a jovem miss, a mãe de Tony e até mesmo o próprio Paco, que não agregam em suas pequenas tramas paralelas, não chegam a lugar algum e somem da trama sem qualquer resolução.

O Filme da Minha Vida se ressente de um roteiro frágil e dispersivo que só encontra seu eixo no ato final. Selton Mello demonstra estar por demais apaixonado por seus personagens, a ponto de não dar a devida atenção à história do filme da vida deles.

Assista o trailer: O Filme da Minha Vida

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 31 de julho de 2017

“Planeta dos Macacos – A Guerra”: civilização em jogo


Quem é o verdadeiro selvagem? O homem ou o macaco? Esta é uma questão recorrente em praticamente todos os filmes da série. Particularmente deste Planeta dos Macacos – A Guerra (War for The Planet of Apes, 2017) terceiro título da série reiniciada com grande estilo em 2011 graças aos ilimitados recursos que a tecnologia digital pode oferecer. Após a peste símia que devastou grande parte da população humana, o planeta Terra se oferece como um terreno livre para uma nova raça dominante tomar conta. No sentido inverso dos homens, decadentes, fragilizados, sob o risco de perder o dom da fala e o conhecimento acumulado geração após geração, os macacos ganham consciência de grupo, conquistam o poder das palavras e da comunicação entre seus iguais. As forças se equilibram como nunca antes na história do planeta. Homens e macacos lutam por seu espaço, sem ceder ao jugo do oponente. Mas os desejos de poder e conquista, intrínsecos ao ser humano racional, colocam em risco uma convivência pacífica e harmônica entre as raças.

Planeta dos Macacos – A Guerra, mais uma vez dirigido por Matt Reeves, inicia logo após os eventos narrados em Planeta dos Macacos - O Confronto (2014). César (Andy Serkis) e seu grupo de macacos geneticamente evoluídos voltam a ser ameaçados pelos humanos sobreviventes do vírus mortal. O inimigo agora é um coronel enlouquecido (Woody Harrelson) que lidera um exército dissidente com a missão de eliminar a ameaça permanente dos macacos que, de acordo com seu delírio paranoico, colocam em risco a sobrevivência da espécie humana no planeta. Uma batalha sangrenta coloca novamente, frente a frente, homens e macacos.


Mesmo lidando com temas amplos, de grande alcance coletivo e global para o futuro do planeta, a força vital de A Guerra vem de uma história de vingança pessoal conduzida por César contra seu nêmesis, incorporado na figura maligna do coronel. Comportamento ancestral do homem, a retaliação contra o inimigo estabelece um dilema ético do macaco líder frente ao grupo que lidera. É, porém, um chamado da natureza que nem sua recém adquirida consciência moral é capaz de refrear. César, neste sentido, avança mais um estágio em seu processo de “humanização”.

A Guerra traz algumas citações que prestam tributo aos antigos filmes da série, como a caminhada a cavalo na praia, a boneca de pano, os corpos crucificados em “X” e uma explicação para a origem da futura personagem de Nova, vista nos dois primeiros títulos da saga. Mas a mais explícita referência é ao clássico Apocalypse Now. A começar pela careca de Woody Harrelson, que reproduz a imagem icônica de Marlon Brando. E mais, a própria personagem do coronel de Harrelson emula a figura do coronel Kurtz de Brando, enlouquecido nos confins da floresta asiática. Temos até o esquadrão de helicópteros em voo rasante antes do ataque. Só faltou a “Cavalgada das Valquírias” na trilha sonora.


A ideia dos ciclos é uma premissa inspiradora de toda a saga Planeta dos Macacos. Um grade moto-contínuo move a evolução do nosso planeta. Há sempre um recomeço, uma retomada, um novo ciclo a iniciar. Ao ser lançado em 1968 o primeiro filme da série, inspirado na obra de Pierre Boulle, não teve a preocupação (ou a necessidade) de dar todas as respostas. Isto surgiu a partir do momento em que se decidiu fazer uma continuação. Ao avançar a história original as lacunas precisaram ser preenchidas. Entre avanços e recuos o conceito da saga se equilibrou no limite da ciência especulativa e da fantasia escapista. Ora encontrando boas sacadas, ora se perdendo totalmente na coerência da história. A cada novo episódio da antiga franquia (1968 – 1973) mais e mais embaralhado ficava o enredo. Algumas pontas da história eram respondidas ao mesmo tempo em se criavam novas armadilhas para serem resolvidas no filme seguinte. Ou não, conforme o caso.


O fato a ser ressaltado é que desde o reboot lançado há seis anos (esqueça a bizarra versão do Tim Burton de 2001) a saga começou a entrar nos eixos e encontrou uma lógica perdida. Mesmo que não esteja na mesma continuidade temporal dos filmes originais dos anos 60 e 70, os filmes da nova série dão sinais de que buscam uma aproximação com a história original estrelada por Charlton Heston há 50 anos, fechando assim um gigantesco arco narrativo.

Contrariando uma tendência, a nova série vem num crescendo de qualidade a cada novo título lançado. Planeta dos Macacos – A Guerra, assim como a raça símia que retrata, dá um novo salto evolutivo numa das sagas mais estimulantes da atualidade.


Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 26 de julho de 2017

“Dunkirk”: derrota vitoriosa


Inspirado em um dos episódios mais dramáticos, e pouco lembrados, da 2ª Guerra Mundial, o monumental Dunkirk (Dunkirk, 2017), dirigido por Christopher Nolan, traz para as telas um momento trágico da história que reúne uma extraordinária gama de atos de superação, heroísmo e honra protagonizados por soldados, oficiais e população civil. Desenvolvido a partir de um fiapo de enredo, o épico de Nolan se detém em pequenos núcleos narrativos de micro histórias individuais, alternados em tempos e espaços distintos, que nos jogam com vigor diretamente no campo de batalha.

O grande painel narrativo de Dunkirk relata basicamente o resgate de cerca de 400 mil soldados ingleses, franceses e belgas que ficaram cercados e isolados pelas tropas alemãs na cidade litorânea de Dunquerque, no litoral norte da França. Abandonados, encurralados, expostos ao inimigo na praia, sem chance imediata de fuga, a única esperança era o resgate pela frota da Marinha inglesa.


A história se desenvolve em terra, no mar e no ar por cerca de 10 dias entre os meses de maio e junho de 1940. Alguns poucos aviões de combate da RAF - Força Aérea Real Britânica - assumem o combate ao inimigo no céu sobre o Canal da Mancha e o Estreito de Dover, na tentativa de proteger os soldados indefesos na praia. Enquanto isso, centenas de pequenos barcos conduzidos por militares e civis ingleses preparam uma ação desesperada de resgate, arriscando suas vidas numa corrida contra o tempo para salvar o maior número possível de soldados compatriotas.

A impactante sequência de abertura nos apresenta um dos protagonistas da história, um jovem soldado inglês (Fionn Whitehead) que escapa de ser abatido pelo fogo alemão e chega à praia para juntar-se aos milhares soldados que aguardam o momento de embarque. Para aumentar as chances de escapar com vida daquele pesadelo, estrategicamente ele se une a outros dois companheiros de farda (Aneurin Barnard e Harry Styles, integrante do grupo pop “One Direction” em seu primeiro papel no cinema). As operações de embarque estão sob o comando do almirante da Marinha interpretado por Kenneth Branagh. Outro núcleo narrativo está nos céus, onde um piloto de caça aéreo (Tom Hardy) tenta heroica e solitariamente dar conta de combater os aviões alemães que bombardeiam as tropas na praia e nos navios de resgate. Por fim, há um terceiro centro de interesse em alto-mar onde uma pequena embarcação civil é conduzida por um voluntarioso pai de família (Mark Rylance) decidido a arriscar a vida para salvar por conta própria o maior número possível de soldados. A bordo está um oficial em surto (Cillian Murphy) sobrevivente solitário de um naufrágio, recolhido no caminho.


Manipulando com maestria todos os elementos técnicos, logísticos e humanos envolvidos na recriação do momento histórico que ambicionou resgatar, Christopher Nolan conduz Dunkirk sob uma tensão constante. Para isto valeu-se de um roteiro fragmentado que, ao embaralhar a cronologia dos fatos, provoca no espectador uma sensação de desorientação sensorial, que pretende reproduzir (em termos) a sensação experimentada pelos soldados em meio ao fogo cruzado do campo de batalha.

Contribui também decisivamente para esta sensação a utilização da técnica de quebra do eixo gravitacional que Nolan lança mão em algumas sequências de alto impacto emocional como o naufrágio dos navios e os rasantes dos aviões caça. Recurso este que ele já havia empregado em filmes como A Origem (lembra da luta no corredor do hotel?) e Interestelar.


O uso moderado de efeitos especiais, particularmente da computação gráfica, aproxima Dunkirk de outros grandes épicos do cinema, como Lawrence da Arábia, produção da velha escola, realizada sob as mais adversas condições em pleno deserto. Em certa medida, os desafios e o pesadelo logístico de David Lean nas areias foram reproduzidos por Nolan em alto-mar. O que não deixa de ser uma ousadia em tempos onde as facilidades dos recursos digitais tem acomodado a criatividade de muitos cineastas.

Desde já Dunkirk se insere na lista dos melhores épicos de guerra da história do cinema. Primoroso no que se refere aos aspectos meramente técnicos (montagem, trilha sonora, som), a produção se destaca também pela sensibilidade no trato dos pequenos dramas pessoais em contraste com as grandes causas coletivas. Ainda que Nolan não seja exatamente um cineasta que se deixe levar facilmente pelo sentimentalismo, contrariando a perspectiva racional do seu olhar como realizador que conhecemos, o fato objetivo é que o poder avassalador das imagens de Dunkirk demonstra que nem o próprio diretor resistiu à magnitude dos fatos ocorridos há quase 80 anos.

Assista o trailer: Dunkirk

Jorge Ghiorzi