segunda-feira, 9 de outubro de 2017
quarta-feira, 4 de outubro de 2017
“Blade Runner 2049”: ser ou não ser
As notícias sobre uma provável sequência de Blade Runner sempre apavoraram os fãs
mais ardorosos do clássico de 1982 dirigido por Ridley Scott, mas por razões
diversas os projetos nunca seguiam adiante. O maior temor da legião de
admiradores era macular a memória de um estimado objeto de culto
cinematográfico, apresentando como resultado final uma aventura tola e
inconsequente que não fizesse jus às qualidades inquestionáveis do filme
original. O histórico de inúmeras sequências desastrosas justificava o receio.
A paz entre os fãs só foi restabelecida quando o nome do diretor canadense Denis Villeneuve (Sicário e A Chegada) foi anunciado
como o diretor da produção que agora chega às telas, 35 anos após o lançamento
do primeiro Blade Runner. Ridley
Scott desta vez atua apenas como produtor executivo.
Situado na mesma Califórnia um tanto distópica e super
povoada do primeiro filme, Blade Runner 2049 transcorre 30 anos
depois dos acontecimentos originais. Neste meio tempo aconteceu o “blecaute” da
Terra, que estabeleceu uma nova ordem no planeta. A Corporação Tyrell, criadora
dos replicantes da série Nexus 6, faliu e foi incorporada pelas indústrias do
poderoso empresário Niander Wallace (Jared Letto), que desenvolve uma novíssima
geração de replicantes, os Nexus 8. Um deles é o policial blade runner “K” (Ryan
Gosling) que atua como caçador de replicantes rebeldes foragidos para a polícia
de Los Angeles. Ao cumprir uma missão, “K”
acaba se deparando com um segredo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade.
Em sua jornada de descobertas, “K” busca
as resposta com um antigo blade runner,
desparecido há três décadas: Rick Deckard (Harrison Ford).
Ao surgir no início da década de 80, Blade Runner estabeleceu novos padrões
para a ficção científica no cinema. Seja em termos estéticos, seja em aspectos
conceituais, ou mesmo por sua ousada abordagem de narrativa policial de “filme
noir” com ambientação futurista retro, o filme de Ridley Scott, num primeiro
momento não foi devidamente considerado e percebido. Pagou o preço, por vários
anos, de um fracasso de crítica e bilheteria por ter sido um filme a frente de
seu tempo. Mas, este mesmo tempo só fez bem ao filme. Ao longo dos anos o filme
foi reavaliado e hoje ocupa o status de obra absolutamente referencial no
gênero.
O novo Blade
Runner chega, portanto, sem a obrigação de ser necessariamente inovador –
este trabalho já foi feito. Denis Villeneuve é
apenas o herdeiro deste legado, e seu compromisso foi apenas expandir o
conceito original e explorar as possibilidades que a computação gráfica
oferece. Isto possivelmente explique porque Blade
Runner 2049 seja mais explicitamente uma aventura de ficção científica hard
do que uma narrativa policial de pretensões existenciais como o primeiro filme.
As facilidades da tecnologia digital facilitam este caminho, pois, virtualmente
tudo é possível. Lembremos que o filme de Ridley Scott foi uma das últimas
produções do gênero realizadas ainda de forma analógica, sem efeitos de CGI.
Questões filosóficas tipo “quem
somos”, “de onde viemos”, “para onde iremos”, presentes no primeiro filme,
voltam aqui, de maneira mais profunda, com acréscimo de especulações sobre as
consequências do desenvolvimento da inteligência artificial para o futuro da
humanidade. A autonomia e o livre arbítrio das criaturas “humanas” criadas por
manipulação genética podem fugir do controle dos seus criadores? Este é um tema
de fundo que faz o tecido narrativo de Blade
Runner 2049.
O policial interpretado por Ryan
Gosling carrega todos os clássicos questionamentos de quem busca sua verdadeira
identidade. O aforismo grego diz: “Conhece-te a ti mesmo”. É este
questionamento que move as ações do blade
runner “K”, nem que para isto tenha que quebrar os níveis de hierarquia e
agir por conta própria. Neste aspecto, significativos são os acordes da
composição “Pedro e o Lobo” (de Sergei Prokofiev) que acompanham “K”. Esta
clássica história infantil conta a história de Pedro, que, ao contrariar os
conselhos do avô, se depara com um lobo feroz na floresta. Uma quebra de regra
que pode custar sua vida.
Apesar de suas quase três horas de duração, Blade Runner 2049 deixa a impressão de que
havia muita história para contar, mas nem todas suas pontas foram suficientemente
bem resolvidas. O personagem de Niander Wallace é um destes pontos nebulosos.
Mal delineado, com motivações um tanto indefinidas, o personagem interpretado
por Jared Letto não disse exatamente a que veio, e lá pelas tantas desparece da
história. Talvez o personagem tivesse mais sorte, e outro destino, se fosse
interpretado por David Bowie, que foi a primeira escolha para o papel. De
qualquer maneira, Blade Runner 2049
cumpre com muitos méritos – especialmente os técnicos - a tarefa bastante
difícil de suceder a produção original. Não parece estarmos diante de um novo cult, e nem sugere que seja o tipo de
filme que se deseje ardorosamente assistir repetidamente – como o clássico de
Ridley Scott -, mas não resta dúvida que abriu caminho para uma nova franquia
que pode estar se configurando.
terça-feira, 3 de outubro de 2017
segunda-feira, 25 de setembro de 2017
“O Tesouro de Sierra Madre”: maldição do ouro
No final dos anos 30, quando leu o livro “O Tesouro
de Sierra Madre”, do misterioso e recluso escritor B. Traven, John Huston se
encantou com a obra e achou que daria um ótimo filme. A história envolvia temas
muito estimados por Huston: viagem, aventura, um país estrangeiro (México) e
distância das zonas urbanas. Este deveria ser o segundo filme dirigido por ele,
mas problemas legais relacionados à compra dos direitos (incluindo a
dificuldade de negociar com B. Traven apenas por cartas) e também de produção,
acabaram por adiar o filme por vários anos. O projeto só foi retomado em 1946,
após John Huston voltar da Segunda Guerra Mundial, onde serviu ao exército norte-americano.
A história transcorre no ano de 1925, após a
revolução mexicana, quando o México ainda vivia um período de instabilidade
social, com bandoleiros levando terror às populações dos pequenos vilarejos.
Sem trabalho, multidões de mexicanos pobres vagam em busca de oportunidades
para ganhar alguns trocados. Mas, terras “sem esperança” costumam se oferecer
como terras de oportunidade para quem se dispõe a arriscar e ousar.
É neste ambiente de poucas perspectivas no interior
do México que vivem dois forasteiros norte-americanos, Fred Dobbs (Humphrey
Bogart) e Bob Curtin (Tim Holt). Literalmente mendigando pelas ruelas da
pequena cidadezinha empoeirada, os dois ficam sabendo por um antigo garimpeiro
(Walter Huston, pai de John Huston) que há grande possibilidade de existir ouro
em abundância nas montanhas próximas da cidade. Seduzidos por esta
possibilidade de enriquecimento, os três se unem e partem em busca do sonho
dourado.
Prestes a completar 70 anos, O Tesouro de Sierra Madre (The
Treasure of the Sierra Madre) foi lançado em 1948, e apesar de não ter
sido um sucesso de bilheteria em sua época, o filme de John Huston sempre foi
prestigiado pela crítica e pela indústria de Hollywood. No ano seguinte a
produção concorreu ao Oscar e conquistou os prêmios de Diretor, Roteiro
Adaptado e Ator Coadjuvante (Walter Huston). Além de ser reconhecido como um
dos melhores trabalhos da extensa filmografia de John Huston, O Tesouro de Sierra Madre aparece na 30ª
posição da lista do American Film
Institute (AFI) com os 100 melhores filmes norte-americanos de todos os
tempos.
Na trama de Relíquia
Macabra, que tratava da essencialmente da ambição humana, um dos
personagens definiu que a ilusão é a “matéria prima da qual são feitos os
sonhos”. Sob certos aspectos, O Tesouro
de Sierra Madre seguiu uma abordagem semelhante, agregando, entretanto, um
novo e poderoso ingrediente: a ganância. É ela que move o personagem principal,
Dobbs, interpretado por Bogart. O velho garimpeiro, com a sabedoria adquirida
pelos muitos anos vividos, disse que o ouro provoca uma maldição: muda o
caráter dos homens. O cético Dobbs desdenha da afirmação, alegando que é imune à
sedução destruidora do brilho dourado das pepitas de ouro. Tudo o que ele
desejava era conseguir alguns poucos milhares de dólares para viver uma boa
vida até morrer. Nada mais.
O
Tesouro de Sierra Madre é acima de
tudo uma pequena fábula moral contada num espetáculo cinematográfico típico da
Hollywood dos anos 30/40. Narrativa clássica, grandes estrelas, trilha sonora
pomposa, com ação, aventura, tiroteios e suspense. Pacote completo. Ainda que
em certas passagens possa parecer hoje um tanto ingênuo e forçado (a presença
de um bandoleiro meio bufão, e simplificações em determinadas situações
cruciais, como o surgimento de um quarto personagem e seu destino), não fossem
algumas pequenas transgressões, seria um filme absolutamente corriqueiro. Mas
John Huston soube fugir desta armadilha. Em primeiro lugar, filmou quase
totalmente em locações reais no México, o que não era nem um pouco usual na
Hollywood da época. Esta decisão foi fundamental para estabelecer a necessária
verossimilhança da história. Outro acerto do realizador foi a escalação de
Humphrey Bogart num papel totalmente inesperado para um ator reconhecido por
viver galãs durões de bom coração. Com uma interpretação visceral, Bogart
entregou-se totalmente ao personagem, mas foi, no entanto, criminosamente
esquecido no Oscar daquele ano.
O
Tesouro de Sierra Madre é um
clássico estimado da cinematografia norte-americana, que, no entanto, parece
ter perdido um pouco de seu vigor com a passagem das décadas.
(Texto originalmente publicado na coluna
“Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)
Jorge Ghiorzi
quarta-feira, 20 de setembro de 2017
“Mãe!”: mistérios da criação
A polêmica com o novo filme de Darren Aronofsky
surgiu já em sua primeira exibição no recente Festival de Veneza, encerrado há
menos de um mês. E só tem crescido onde quer que seja exibido. Mãe!
(Mother!) já nasceu com este marco de discórdia. Ou amam, ou odeiam. E na zona
cinzenta intermediária as discussões são as mais acaloradas dos últimos anos.
De fato o filme mobiliza, incomoda, provoca e subverte expectativas. Nos casos
mais extremos, dá um nó mental nos mais desavisados. Portanto, ao encarar a
obra, abra a mente e embarque nesta viagem.
Na superfície, no primeiro nível narrativo, Mãe! conta a história de um casal,
interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, recém-casados que estão morando
num enorme casarão em reforma, isolado, distante da cidade. Ele é um poeta com
bloqueio criativo. Ela, grávida, se dedica aos afazeres domésticos. A chegada
inesperada de um visitante desconhecido (Ed Harris), em busca de um quarto para
alugar, coloca em desequilíbrio a harmonia do casal. A situação se torna
realmente incontornável quando aparece também a esposa do visitante (Michelle
Pfeiffer, retornando ao cinema) e culmina logo em seguida com a chegada dos
filhos adultos. Neste ponto a narrativa rompe todas as amarras que
precariamente a mantinham dentro de uma perspectiva minimamente realista. Pelos
olhos estarrecidos da personagem de Jennifer Lawrence somos testemunha de
episódios surrealistas e caóticos que mostram dezenas de pessoas literalmente
invadindo a casa como incontroláveis zumbis, em sequências que muito lembram o
clássico A Noite dos Mortos Vivos, de
George A. Romero.
Apesar da referência ao filme de Romero, Mãe! não é um filme convencional de
terror, nem de terror psicológico, como Cisne
Negro, do mesmo Aronofsky, ainda que eventualmente possa despertar
sensações de genuíno horror. A verdade é que em seus momentos iniciais
parece estarmos diante de um drama de suspense, mas logo o espectador abandona
esta primeira leitura, pois algo se mostra fora do lugar nas regras do gênero. Mãe! é uma perturbadora e radical fábula
que mistura fantasia, delírio e devaneio, com forte apelo religioso e
existencial.
Com Mãe!
Darren Aronofsky aprofunda e radicaliza a experiência de cinema expressionista já
exercida no citado Cisne Negro. Assim
como naquele, a expressão dos sentimentos interiores de um personagem altera,
distorce e recria a realidade circundante percebida. O novo trabalho de
Aronofsky assume deliberadamente uma fantasia metafísica que quebra as leis
naturais e subverte as constantes de tempo e espaço. Cabe ao espectador aceitar
a proposta antes de mergulhar na imensidão de símbolos e analogias que vão
surgindo num ritmo tão intenso que exige esforço redobrado na elaboração dos
significados.
Profundamente alegórico e metafórico, Mãe! pode ser encarado como uma parábola
com conotações bíblicas e a chave para sua compreensão pode ser uma pequena
pista nos créditos finais. Neles o personagem de Javier Bardem é creditado como
“Him” (“Ele”, assim mesmo, com letra maiúscula). Se levarmos isto em conta, as
coisas começam a fazer algum sentido tangível e ganhar coerência. “Ele”
(Bardem), o poeta em sua luta interior para escrever o poema perfeito, seria o
Criador. Artista todo-poderoso que inspira veneração de fãs – súditos. A “Mãe”
(Jennifer Lawrence), mãe da humanidade, que carrega no ventre o mistério da
criação, fruto do Criador, zela pelo bem-estar da família e da paz no lar. E
por fim, a “Casa”, imagem símbolo do Paraíso, isolada no Jardim do Éden, a
morada do primeiro casal, Adão e Eva. Ponto comum que equilibra este
triunvirato simbólico (Criador – Mãe – Paraíso) é a simbologia do Sagrado Coração
de Jesus, transubstanciado na imagem de uma pedra/diamante venerada pelo
personagem de Javier Bardem.
Darren Aronofsky, que cresceu dentro da cultura
judaica, mas não se considera um religioso, já abordou abertamente temas religiosos
em dois filmes: A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), uma versão controversa da história
bíblica da Arca de Noé que salva da destruição a vida no planeta Terra. Aliás,
o ativismo ambiental e ecológico é outra das facetas do realizador, cujos temas
subjacentes também são encontrados em Mãe!,
uma obra complexa e perturbadora que paga o preço da incompreensão pela ousadia
obsessiva do realizador.
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