quarta-feira, 20 de setembro de 2017

“Mãe!”: mistérios da criação


A polêmica com o novo filme de Darren Aronofsky surgiu já em sua primeira exibição no recente Festival de Veneza, encerrado há menos de um mês. E só tem crescido onde quer que seja exibido. Mãe! (Mother!) já nasceu com este marco de discórdia. Ou amam, ou odeiam. E na zona cinzenta intermediária as discussões são as mais acaloradas dos últimos anos. De fato o filme mobiliza, incomoda, provoca e subverte expectativas. Nos casos mais extremos, dá um nó mental nos mais desavisados. Portanto, ao encarar a obra, abra a mente e embarque nesta viagem.

Na superfície, no primeiro nível narrativo, Mãe! conta a história de um casal, interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, recém-casados que estão morando num enorme casarão em reforma, isolado, distante da cidade. Ele é um poeta com bloqueio criativo. Ela, grávida, se dedica aos afazeres domésticos. A chegada inesperada de um visitante desconhecido (Ed Harris), em busca de um quarto para alugar, coloca em desequilíbrio a harmonia do casal. A situação se torna realmente incontornável quando aparece também a esposa do visitante (Michelle Pfeiffer, retornando ao cinema) e culmina logo em seguida com a chegada dos filhos adultos. Neste ponto a narrativa rompe todas as amarras que precariamente a mantinham dentro de uma perspectiva minimamente realista. Pelos olhos estarrecidos da personagem de Jennifer Lawrence somos testemunha de episódios surrealistas e caóticos que mostram dezenas de pessoas literalmente invadindo a casa como incontroláveis zumbis, em sequências que muito lembram o clássico A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero.


Apesar da referência ao filme de Romero, Mãe! não é um filme convencional de terror, nem de terror psicológico, como Cisne Negro, do mesmo Aronofsky, ainda que eventualmente possa despertar sensações de genuíno horror. A verdade é que em seus momentos iniciais parece estarmos diante de um drama de suspense, mas logo o espectador abandona esta primeira leitura, pois algo se mostra fora do lugar nas regras do gênero. Mãe! é uma perturbadora e radical fábula que mistura fantasia, delírio e devaneio, com forte apelo religioso e existencial.

Com Mãe! Darren Aronofsky aprofunda e radicaliza a experiência de cinema expressionista já exercida no citado Cisne Negro. Assim como naquele, a expressão dos sentimentos interiores de um personagem altera, distorce e recria a realidade circundante percebida. O novo trabalho de Aronofsky assume deliberadamente uma fantasia metafísica que quebra as leis naturais e subverte as constantes de tempo e espaço. Cabe ao espectador aceitar a proposta antes de mergulhar na imensidão de símbolos e analogias que vão surgindo num ritmo tão intenso que exige esforço redobrado na elaboração dos significados.


Profundamente alegórico e metafórico, Mãe! pode ser encarado como uma parábola com conotações bíblicas e a chave para sua compreensão pode ser uma pequena pista nos créditos finais. Neles o personagem de Javier Bardem é creditado como “Him” (“Ele”, assim mesmo, com letra maiúscula). Se levarmos isto em conta, as coisas começam a fazer algum sentido tangível e ganhar coerência. “Ele” (Bardem), o poeta em sua luta interior para escrever o poema perfeito, seria o Criador. Artista todo-poderoso que inspira veneração de fãs – súditos. A “Mãe” (Jennifer Lawrence), mãe da humanidade, que carrega no ventre o mistério da criação, fruto do Criador, zela pelo bem-estar da família e da paz no lar. E por fim, a “Casa”, imagem símbolo do Paraíso, isolada no Jardim do Éden, a morada do primeiro casal, Adão e Eva. Ponto comum que equilibra este triunvirato simbólico (Criador – Mãe – Paraíso) é a simbologia do Sagrado Coração de Jesus, transubstanciado na imagem de uma pedra/diamante venerada pelo personagem de Javier Bardem.


Darren Aronofsky, que cresceu dentro da cultura judaica, mas não se considera um religioso, já abordou abertamente temas religiosos em dois filmes: A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), uma versão controversa da história bíblica da Arca de Noé que salva da destruição a vida no planeta Terra. Aliás, o ativismo ambiental e ecológico é outra das facetas do realizador, cujos temas subjacentes também são encontrados em Mãe!, uma obra complexa e perturbadora que paga o preço da incompreensão pela ousadia obsessiva do realizador.

Assista o trailer: Mãe!

Jorge Ghiorzi

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