domingo, 17 de setembro de 2017

“A Sangue Frio”: crime e castigo


Inspirado na história real de dois ex-detentos que em 1959 assassinam uma família no interior do Kansas (EUA), o escritor e dramaturgo Truman Capote escreveu em 1966 o livro “A Sangue Frio”. O romance marcou época por desenvolver uma fórmula inovadora de escrita mesclando jornalismo com literatura. O livro, produzido após um longo processo de reveladoras entrevistas com os protagonistas do episódio, é basicamente uma grande e minuciosa reportagem romanceada, que valeu à Truman Capote o título de criador do “romance-verdade” (nonfiction novel). O livro marcou época, revolucionou o mercado editorial e influenciou fortemente uma nova geração de escritores.

O impacto do romance-verdade foi tamanho que inevitavelmente acabou atraindo também o interesse do cinema. O formato narrativo da obra de Truman Capote era muito próximo a de um roteiro de cinema. O livro se mostrava perfeito para virar um filme. E assim ocorreu. Apenas um ano após o lançamento da publicação, o filme chegou às telas. No entanto, apesar de Capote também escrever para o cinema (roteirizou, por exemplo, “Os Inocentes” em 1961, baseado na obra de Henry James), na adaptação do seu próprio livro ele não consta como roteirista.


A Sangue Frio (In cold blood) foi escrito e dirigido por Richard Brooks, realizador de filmes como Sementes da Violência (1955); Gata em Teto de Zinco Quente (1958); Os Profissionais (1966); À Procura de Mr. Goodbar (1977), com Diane Keaton e O Homem com a Lente Mortal (1982), com Sean Connery. Filmado em austero e sóbrio preto-e-branco, com locações na região onde ocorreu o crime, a adaptação cinematográfica apresenta uma atmosfera semi-documental, bastante próxima à proposta original da obra literária de Capote. Reforçando ainda o enfoque realista, a produção contou com apoio da própria força policial do Kansas, na reconstituição dos fatos, e consultoria profissional de psiquiatras que auxiliaram na abordagem e construção dos perfis psicológicos dos assassinos retratados no filme. A maior veracidade possível orientou a realização de A Sangue Frio.

Dois ex-condenados, em liberdade condicional, Perry Smith (Robert Blake) e Dick Hickock (Scott Wilson) decidem invadir a casa da família Clutter, numa cidadezinha do Kansas, em busca de um suposto cofre com 10 mil dólares. A dica foi dada por um antigo parceiro de cela. Seria um trabalho fácil e muito rentável. Sem riscos. Ao invadir a casa, descobrem que não há nenhum cofre, e muito menos dinheiro. Acabam roubando apenas 43 dólares e, decepcionados pelo desfecho, decidem num impulso matar toda a família que foi mantida refém. Assassinam cruelmente, a tiros e facadas, o pai, a mãe e o casal de filhos, sem uma motivação racional. Após um período de pequenos golpes para conseguir dinheiro para fugirem para o México, a dupla é detida em Las Vegas por estarem dirigindo um carro roubado.

Os primeiros minutos do filme de Richard Brooks são conduzidos por uma eficiente montagem paralela que mostra a tranquila rotina da família Clutter alternada com o encontro, os preparativos e a viagem dos assassinos rumo ao assalto premeditado, que terminaria num inesperado banho de sangue. A situação é clássica: dois outsiders, com antecedentes criminais, tentando o último grande golpe para mudar definitivamente de vida, deixando para trás seus problemas, frustrações e fracassos. O que poderia ser a redenção de uma existência sem perspectivas acabou por selar o destino de dois desajustados sociais. A afinidade de propósitos de Perry e Dick, que por vezes insinuam uma latente relação homossexual, supre o vazio existencial dos dois, provenientes de famílias disfuncionais e problemáticas.


Uma chave para a compreensão da atitude dos criminosos é fornecida em dado momento por um dos personagens envolvidos na investigação. Ele traz uma teoria psicanalítica do perfil de condenados que afirma que todo assassino sem motivação clara e definida é fruto de lares com famílias problemáticas. É esta a tese que embasa o livro de Truman Capote, e também o filme de Richard Brooks.

Apesar da história ser contada a partir do encontro da dupla para um último golpe, fica flagrante a predominância do protagonismo do personagem Perry Smith, magnificamente interpretado por Robert Blake, que nos anos 70 virou astro da TV ao protagonizar a série policial “Baretta”. Numa macabra coincidência, que reforça a máxima de que “a vida imita a arte”, o ator foi acusado de matar a esposa no início dos anos 2000. Robert Blake chegou a ser detido e posteriormente, em 2005, foi declarado inocente.

Na apresentação de Perry Smith em A Sangue Frio, logo na sua primeira cena, ele aparece descendo de um ônibus, carregando as bagagens e uma enorme caixa na costas. Uma apresentação poderosamente gráfica da psicologia do personagem. Perry carrega metaforicamente sob os ombros o peso de todos seus problemas, tal uma cruz de penitência que deve conduzir em todo seu calvário. Ambos, Dick e Perry, são filhos de famílias problemáticas. As relações tormentosas com seus pais e mães representam origem, fonte e causa de seus fracassos pessoais. Aos poucos, ao longo da narrativa, são apresentadas pequenas passagens que explicitam as difíceis relações familiares envolvidas. Por decisão de Richard Brooks (autor do roteiro, vale lembrar), foi incluída uma longa sequência em flashback, de forte caráter edipiano, ausente no livro de Truman Capote. Nesta sequência é mostrado um episódio de conflito familiar de forte impacto emocional, presenciado por Perry quando criança, que haveria de afetar sua futura mente criminosa.


Após enfrentar o Júri e a condenação de culpados, a dupla de assassinos recebe a pena máxima de enforcamento. Já no corredor da morte, à beira da caminhada para o cadafalso, Perry Smith profere um poderoso monólogo, quase uma auto-confissão de seu fracasso como ser humano. A fala, magistralmente construída por Richard Brooks, e interpretada com intensidade por Robert Blake, acontece em frente a uma janela enquanto chove. As gotas de chuva correm pela janela e projetam sobras no rosto de Perry, que parece chorar (sem fazê-lo de fato) enquanto fala. Um momento de humanismo ante o pesadelo do enforcamento eminente.

A Sangue Frio é um filme de estilo clássico, sóbrio, pesado e perturbador. Incômodo por vezes, frio quase sempre, mas nunca manipulador das emoções.

Assista o trailer: A Sangue Frio

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

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