Inspirado na história real de dois ex-detentos que em
1959 assassinam uma família no interior do Kansas (EUA), o escritor e
dramaturgo Truman Capote escreveu em 1966 o livro “A Sangue Frio”. O romance
marcou época por desenvolver uma fórmula inovadora de escrita mesclando
jornalismo com literatura. O livro, produzido após um longo processo de
reveladoras entrevistas com os protagonistas do episódio, é basicamente uma grande
e minuciosa reportagem romanceada, que valeu à Truman Capote o título de
criador do “romance-verdade” (nonfiction
novel). O livro marcou época, revolucionou o mercado editorial e
influenciou fortemente uma nova geração de escritores.
O impacto do romance-verdade foi tamanho que
inevitavelmente acabou atraindo também o interesse do cinema. O formato
narrativo da obra de Truman Capote era muito próximo a de um roteiro de cinema.
O livro se mostrava perfeito para virar um filme. E assim ocorreu. Apenas um
ano após o lançamento da publicação, o filme chegou às telas. No entanto,
apesar de Capote também escrever para o cinema (roteirizou, por exemplo, “Os
Inocentes” em 1961, baseado na obra de Henry James), na adaptação do seu
próprio livro ele não consta como roteirista.
A Sangue Frio (In cold blood) foi escrito e dirigido por Richard Brooks, realizador
de filmes como Sementes da Violência
(1955); Gata em Teto de Zinco Quente
(1958); Os Profissionais (1966); À Procura de Mr. Goodbar (1977), com
Diane Keaton e O Homem com a Lente Mortal
(1982), com Sean Connery. Filmado em austero e sóbrio preto-e-branco, com
locações na região onde ocorreu o crime, a adaptação cinematográfica apresenta
uma atmosfera semi-documental, bastante próxima à proposta original da obra
literária de Capote. Reforçando ainda o enfoque realista, a produção contou com
apoio da própria força policial do Kansas, na reconstituição dos fatos, e
consultoria profissional de psiquiatras que auxiliaram na abordagem e
construção dos perfis psicológicos dos assassinos retratados no filme. A maior
veracidade possível orientou a realização de A Sangue Frio.
Dois ex-condenados, em liberdade condicional, Perry
Smith (Robert Blake) e Dick Hickock (Scott Wilson) decidem invadir a casa da
família Clutter, numa cidadezinha do Kansas, em busca de um suposto cofre com
10 mil dólares. A dica foi dada por um antigo parceiro de cela. Seria um
trabalho fácil e muito rentável. Sem riscos. Ao invadir a casa, descobrem que
não há nenhum cofre, e muito menos dinheiro. Acabam roubando apenas 43 dólares
e, decepcionados pelo desfecho, decidem num impulso matar toda a família que
foi mantida refém. Assassinam cruelmente, a tiros e facadas, o pai, a mãe e o
casal de filhos, sem uma motivação racional. Após um período de pequenos golpes
para conseguir dinheiro para fugirem para o México, a dupla é detida em Las
Vegas por estarem dirigindo um carro roubado.
Os primeiros minutos do filme de Richard Brooks são
conduzidos por uma eficiente montagem paralela que mostra a tranquila rotina da
família Clutter alternada com o encontro, os preparativos e a viagem dos
assassinos rumo ao assalto premeditado, que terminaria num inesperado banho de
sangue. A situação é clássica: dois outsiders,
com antecedentes criminais, tentando o último grande golpe para mudar
definitivamente de vida, deixando para trás seus problemas, frustrações e
fracassos. O que poderia ser a redenção de uma existência sem perspectivas acabou
por selar o destino de dois desajustados sociais. A afinidade de propósitos de Perry
e Dick, que por vezes insinuam uma latente relação homossexual, supre o vazio
existencial dos dois, provenientes de famílias disfuncionais e problemáticas.
Uma chave para a compreensão da atitude dos
criminosos é fornecida em dado momento por um dos personagens envolvidos na
investigação. Ele traz uma teoria psicanalítica do perfil de condenados que
afirma que todo assassino sem motivação clara e definida é fruto de lares com
famílias problemáticas. É esta a tese que embasa o livro de Truman Capote, e
também o filme de Richard Brooks.
Apesar da história ser contada a partir do encontro
da dupla para um último golpe, fica flagrante a predominância do protagonismo
do personagem Perry Smith, magnificamente interpretado por Robert Blake, que
nos anos 70 virou astro da TV ao protagonizar a série policial “Baretta”. Numa
macabra coincidência, que reforça a máxima de que “a vida imita a arte”, o ator
foi acusado de matar a esposa no início dos anos 2000. Robert Blake chegou a
ser detido e posteriormente, em 2005, foi declarado inocente.
Na apresentação de Perry Smith em A Sangue Frio, logo na sua primeira
cena, ele aparece descendo de um ônibus, carregando as bagagens e uma enorme
caixa na costas. Uma apresentação poderosamente gráfica da psicologia do
personagem. Perry carrega metaforicamente sob os ombros o peso de todos seus
problemas, tal uma cruz de penitência que deve conduzir em todo seu calvário. Ambos,
Dick e Perry, são filhos de famílias problemáticas. As relações tormentosas com
seus pais e mães representam origem, fonte e causa de seus fracassos pessoais.
Aos poucos, ao longo da narrativa, são apresentadas pequenas passagens que
explicitam as difíceis relações familiares envolvidas. Por decisão de Richard
Brooks (autor do roteiro, vale lembrar), foi incluída uma longa sequência em
flashback, de forte caráter edipiano, ausente no livro de Truman Capote. Nesta
sequência é mostrado um episódio de conflito familiar de forte impacto
emocional, presenciado por Perry quando criança, que haveria de afetar sua
futura mente criminosa.
Após enfrentar o Júri e a condenação de culpados, a
dupla de assassinos recebe a pena máxima de enforcamento. Já no corredor da
morte, à beira da caminhada para o cadafalso, Perry Smith profere um poderoso monólogo,
quase uma auto-confissão de seu fracasso como ser humano. A fala,
magistralmente construída por Richard Brooks, e interpretada com intensidade por
Robert Blake, acontece em frente a uma janela enquanto chove. As gotas de chuva
correm pela janela e projetam sobras no rosto de Perry, que parece chorar (sem
fazê-lo de fato) enquanto fala. Um momento de humanismo ante o pesadelo do
enforcamento eminente.
A
Sangue Frio é um filme de
estilo clássico, sóbrio, pesado e perturbador. Incômodo por vezes, frio quase
sempre, mas nunca manipulador das emoções.
Assista o trailer: A Sangue Frio
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em dezembro de 2016)
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