Em 1946 o cineasta John Huston dirigiu um
documentário de encomenda para o Exército norte-americano. A proposta era
retratar a recuperação dos soldados que voltaram da Segunda Guerra Mundial com
problemas psíquicos, internados num hospital militar. O filme, com pouco menos
de uma hora de duração, chamado Let there
be light (disponível no You Tube), ficou proibido para exibições públicas
até 1980. A alegada razão para a interdição eram as fortes emoções provocadas
pelo impacto das imagens e os tocantes depoimentos dos soldados abalados pela
guerra.
Cerca de quatro anos após a liberação, cenas deste
documentário foram utilizadas na sequência de abertura de Os Amores de Maria
(Maria’s lovers, 1984), dirigido nos EUA pelo russo Andrei Konchalovsky. Faz
todo sentido. Os dois filmes tratam do mesmo tema de fundo: os efeitos da
guerra na sanidade mental dos soldados. Um sob a forma de documentário, outro
com um tratamento de ficção. As imagens em preto e branco mostram sessões de
terapia com os soldados relatando seus problemas para psicólogos militares. Um
a um os depoimentos vão se sucedendo, até que acontece uma passagem de cenas
reais do documentário para cenas encenadas (ainda descoloridas) por John Savage,
interpretando um soldado em recuperação. Assim somos apresentados ao personagem
Ivan Bibic, protagonista da história de Os
Amores de Maria.
Após sobreviver um período detido por japoneses num
campo de prisioneiros, na Segunda Guerra Mundial, Ivan Bibic retorna para a
casa do pai (Robert Mitchum), numa comunidade de imigrantes iugoslavos nos
subúrbios de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA). Durante o tempo em que ficou
preso o soldado jurou amor à sua paixão de infância, a bela e virgem Maria
Bosic (Nastassja Kinski). Na volta, eles reatam a relação interrompida e acabam
casando, contra a vontade do pai, que julga Maria uma mulher inadequada para o
filho. Além do que, ele também demonstra uma paixão recolhida pela jovem, que é
filha de uma antiga amante do passado. Logo após o casamento, a fragilidade de
Ivan se manifesta na impotência psicológica. Bloqueado, ele não consegue fazer
amor com sua esposa, apenas com outras mulheres. Maria permanece virgem, e o
casamento se desmancha no ar. Até que surge na cidade um músico/cantor
andarilho, Clarence Butts (Keith Carradine), que seduz Maria e precipita o
desfecho da história.
Por caminhos um tanto tortuosos, se estabelece, em
algum nível, o clássico triângulo amoroso, mas com nuances mais profundas e
simbólicas. Maria inspira paixões em todos os homens que a conhecem, o que nos permite
uma livre interpretação para uma analogia religiosa. A virgem Maria é objeto de
paixão (idolatria?) do Pai (pai de Ivan), do Filho (o próprio Ivan) e do
Espírito Santo (Clarence Butts). A via-crúcis de Ivan, em busca da redenção, é
a sustentação da narrativa em Os Amores
de Maria.
O retorno de Ivan para casa mostra um descolamento
da realidade em sua mente, uma sensação de não-pertencimento daquela comunidade
que fez parte da sua história de vida. No período de prisão a idolatria à amada
o manteve vivo. Orientou seu retorno. Mas não foi suficiente para a felicidade.
O amor pensado não suportou a realidade do amor vivido. A fantasia da paixão
não encontrou ressonância nos fatos. O romantismo perdeu para a vida real.
O desejo sexual movimenta os personagens protagonistas
do filme de Andrei Konchalovsky. Com resultados distintos para cada um deles,
evidentemente. Enquanto a virgem e ingenuamente sedutora Maria é uma explosão
de hormônios em ebulição, o pobre Ivan sucumbe pela impossibilidade de dar
vazão plena aos desejos carnais pela esposa. Há inclusive, uma sequência exemplar
que explora belamente esta relação que, além de não se concretizar, os afasta
definitivamente. No mesmo enquadramento vemos Ivan e Maria, separados por uma
parede. Ivan está no quarto, sentado em um pequeno triciclo infantil em frente
a um espelho. O retrato perfeito de uma personalidade imatura. Ivan é uma
criança, frágil e indefesa. Maria, por sua vez, está no banheiro, vestindo uma
sexy lingerie preta. A imagem de uma mulher sedutora, poderosa e altiva. Há
mais do que uma parede separando os universos de Ivan e Maria.
O diretor Konchalovsky demonstra um tratamento
carinhoso e compreensivo ao casal. Não há vilões. Apenas vítimas. Ele não
julga, apenas testemunha uma relação tormentosa e conflitada, sem optar por nenhum
dos lados. Isto equilibra a condução da história e proporciona ao expectador a
possibilidade de compartilhar as ações e reações de Ivan e Maria sem
comprometer o engajamento a nenhum dos lados. Aqui o realizador demonstra uma
sensibilidade que, no entanto, foi totalmente desnecessária em seu filme
seguinte, Expresso para o Inferno
(1986), um drama de ação com Jon Voight vivendo um prisioneiro em fuga que se
esconde num trem desgovernado sem controle. Sem falar em Tango e Cash – Os Vingadores (1989), com Sylvester Stallone e Kurt
Russell.
Os
Amores de Maria não se
caracteriza exatamente como um filme romântico. É por demais melancólico, lento
e pesado para quem busca este tipo de experiência. No entanto, possui elementos
típicos do gênero: uma história de amor (ainda que não convencional); um casal
de jovens atores com apelo midiático (particularmente Nastassja Kinski, no auge
da beleza); música marcante (a bela “Maria’s eyes”, composta e interpretada por
Keith Carradine) e fotografia exuberante (de Juan Ruiz Anchía).
Uma curiosidade. Quando lançado no Brasil, o filme recebeu
inicialmente o título de Os Amantes de
Maria. Anos depois, em seu lançamento em home video, o título foi alterado
para Os Amores de Maria, que adotamos
nesta resenha.
Assista o trailer: Os Amores de Maria
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)
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