sábado, 16 de maio de 2020

“Traídos Pelo Desejo”: o sapo e o escorpião



Indicada em seis categorias do Oscar de 1993 – filme, direção, ator, edição, ator coadjuvante e roteiro original (pelo qual venceu) – Traídos pelo Desejo (The Crying Game, 1992) foi o filme-sensação daquele ano. Dirigido por Neil Jordan (A Companhia dos Lobos, Entrevista com o Vampiro, Nó na Garganta) a produção inglesa inicialmente não conquistou grande repercussão ao ser lançada na Grã-Bretanha. A situação mudou radicalmente quando chegou aos EUA, graças a uma maciça campanha de marketing que estimulou a curiosidade do público para o “segredo” do filme. Se Traídos pelo Desejo fosse lançado hoje, 25 anos depois, o tal “segredo” não resistiria mais do que poucos segundos após a primeira aparição da emblemática personagem central.

Em sua época o filme de Neil Jordan quebrou alguns paradigmas por tratar temas então polêmicos de forma franca e aberta numa produção mainstream. Traídos Pelo Desejo se apresenta inicialmente como uma trama política envolvendo questões separatistas da Irlanda, a bandeira de luta do IRA, o Exército Republicano Irlandês, grupo paramilitar que promovia atentados terroristas contra o governo britânico. O filme inicia justamente com uma destas ações. Um comando armado sequestra um soldado do exército inglês. O objetivo é trocá-lo por um membro da organização preso, caso contrário, ele seria executado no prazo de três dias. No cativeiro o guerrilheiro Fergus (Stephen Rea) é destacado para tomar conta do soldado sequestrado, Jody (Forrest Whitaker), até o desfecho das negociações. Durante a convivência forçada os dois acabam se aproximando e desenvolvem uma cumplicidade, quase uma amizade. Trocam confidências, contam histórias pessoais e revelam segredos. Uma das revelações de Jody é sua paixão pela namorada, a cabeleireira Dil (Jaye Davidson). Prestes a ser executado, Jody pede a Fergus que procure Dil, após sua morte, para lhe dizer o quanto a amava.


No segundo ato de Traídos Pelo Desejo o clima muda completamente e se transforma em um drama repleto de nuances psicológicas. Movido pela culpa, Fergus cumpre o último desejo do soldado. Tempos depois se aproxima de Dil, mas não conta toda a história. E por uma razão bem objetiva: ele também cai de amores pela cabeleireira. Mas, há um segredo a ser superado (não daremos spoiler aqui). Um segredo que vai colocar em xeque seus valores e convicções.

Sabidamente o contato íntimo e prolongado de um prisioneiro com seu algoz por vezes acaba por desenvolver uma curiosa relação de temor/dependência, a chamada Síndrome de Estocolmo, um estado psicológico que provoca sentimentos de amizade, e até amor, da vítima por seu agressor. A convivência de Fergus com Jody no cativeiro demonstra sinais desta patologia, que resultam numa espécie de dívida de consciência do guerrilheiro, abalado pelo trágico destino do refém que tinha a missão de cuidar e, por fim, executar, ainda que profundamente contrariado com o ato final que foi obrigado a cumprir. Fergus, na condição de guerrilheiro, não demonstrava um perfil agressivo que a atividade exigiria. Jody habilidosamente manipulou a mente de Fergus ao perceber sua verdadeira natureza. Fergus era o homem errado, na função errada. Em certa medida, o desaparecimento de Jody representou a libertação de Fergus, rumo à descoberta de seus verdadeiros sentimentos que são despertados quando conhece a sedutora Dil.


Nesta trajetória Fergus refaz um caminho semelhante ao do personagem de James Stewart em Um Corpo Que Cai: apaixona-se pelo objeto da sua busca. Um desejo que se transforma em obsessão, que se concretiza apenas quando aceita o objeto da sua paixão e a transforma na mulher idealizada, subvertendo a realidade dos fatos e da verdadeira natureza de Dil.

Traídos Pelo Desejo (um feliz título brasileiro) é um dos melhores exemplares do poderoso cinema inglês do início dos anos 90, que vivia então um momento de muita inspiração. Aquele era um tempo de produções de alta qualidade e grade visibilidade de uma geração de cineastas como Mike Leigh, Jim Sheridan, Mike Newell, Nicholas Hytner e Allan Parker, nos seus últimos momentos de brilho.


A discussão da verdadeira natureza das pessoas – contra a qual são travadas lutas inglórias – é a verdadeira essência do filme de Neil Jordan. Esta tese fica explicitamente caracterizada pela fábula do sapo e do escorpião, que é contada duas vezes durante o filme, por dois personagens diferentes. A historinha é mais ou menos assim: um escorpião quer atravessar um rio e pede ajuda para que um sapo o leve nas costas. Desconfiado o sapo se recusa, dizendo que será ferroado pelo escorpião durante a travessia. O escorpião diz que isto não vai acontecer. Se ele ferroar o sapo os dois morrerão afogados. O sapo então concorda em ajudar o escorpião. No meio da travessia o escorpião dá uma ferroada no sapo, que muito surpreso pergunta por que ele fez aquilo, afinal, os dois vão morrer agora. E o escorpião responde: “Eu não pude evitar, é a minha natureza”.

Apesar de ser a figura de destaque absoluto em Traídos Pelo Desejo, Jaye Davidson não chegou a desenvolver uma carreira no cinema. Seu único outro papel de destaque aconteceu dois anos após, na ficção científica Stargate – A Chave para o Futuro da Humanidade, dirigida por Roland Emmerich.

Assista o trailer: Traídos Pelo Desejo

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2017)

Jorge Ghiorzi

Nenhum comentário:

Postar um comentário