O poder da memória e sua capacidade de moldar
a trajetória das nossas vidas é a chave que deflagra o processo transformador
dos personagens centrais de A Verdadeira Dor (A Real Pain, 2024).
O filme vem sendo apontado (com toda justiça) como o melhor trabalho de Jesse
Eisenberg como roteirista e diretor, com direito a duas indicações ao Oscar
2025: Roteiro e Ator coadjuvante. Mais conhecido do grande público em sua
faceta ator, com papéis marcantes como Mark Zuckerberg, em A Rede Social,
e Lex Luthor, em Batman vs. Superman: O Origem da Justiça, Jesse
Eisenberg conquista, com este filme, um novo status como artista autoral na
nova formatação da indústria de Hollywood.
O elemento catalisador da
narrativa é o Holocausto, evocado pela memória da recentemente falecida avó dos
primos David (Eisenberg) e Benji (Kieran Culkin). Para reverenciar a figura da
avó, uma sobrevivente dos campos de extermínio da Segunda Guerra Mundial, os
dois partem em uma excursão para a Polônia. Lá visitam marcos históricos da
guerra, pontos turísticos relacionados à sua ascendência familiar, um campo de
concentração e também conhecem a casa onde a avó havia morado no passado
distante, o principal objetivo da viagem da dupla.
A Verdadeira Dor se configura como um clássico road
movie, o filme de estrada, de viagem, repleto de experiências sensoriais e
psicológicas que funcionam como gatilho para a modificação da visão de mundo
dos personagens. Filmes desta natureza ficam essencialmente amparados no arco
narrativo e na jornada interior, exatamente os processos que levam David e
Benji a questionarem seu passado e as perspectivas de futuro. Deslocados em
terra estranha os dois se confrontam com suas inquietações interiores e revelam
abertamente que possuem personalidades antagônicas que se complementam. David é
o cara metódico, pai de família, com perfil retraído que não demonstra seus
sentimentos. Benji é completamente o oposto. Ele é o cara extrovertido, envolvente,
sem freios na língua, sem medo de expressar o que pensa e sente, aquele tipo de
pessoa que “preenche” um ambiente com a simples presença. Ou seja, ambos são as
duas faces de uma mesma moeda, que anseiam recuperar as conexões que já tiveram
no passado.
A viagem à Polônia
conscientiza David e Benji a respeito do verdadeiro papel que ocupam no mundo:
dois jovens judeus, brancos e privilegiados. Nesta condição mostram-se a
princípio anestesiados para as verdadeiras dores do mundo. E que dor coletiva
maior haveria além do Holocausto? Este é o fantasma que assombra o passado dos
protagonistas, descendentes diretos da tragédia. Apesar desta abordagem, não
espere um drama pesado. Surpreenda-se com A Verdadeira Dor que trata do
assunto com muita sensibilidade, alguma irreverencia e um pouco de humor. Os
personagens centrais são desfuncionais, cada um a sua maneira. Além da parceria
e cumplicidade, o principal sentimento que realmente compartilham é o da culpa que
carregam por um passado que realmente não viveram ou sequer presenciaram, mas
determinante para o que são hoje. Um trauma recriado apenas pela lembrança.
Além do roteiro muito bem
construído, com diálogos espirituosos, que fogem da melancolia barata, o maior
destaque de A Verdadeira Dor é o desempenho de Kieran Culkin, nada menos
que exuberante e cativante. Seu personagem, com segredos e dores profundas, é
extremamente verossímil e realista apesar das complexidades que traz dentro de
si.
A Verdadeira Dor é aquele tipo de filme adulto médio –
não pelas qualidades, mas pelo alcance da sua visibilidade – que a indústria de
Hollywood parece ter esquecido de incentivar. Há dois anos Os Rejeitados
de Alexandre Payne ocupou este posto. O filme de Jesse Eisenberg possui uma
superfície de simplicidade, mas o que efetivamente entrega é uma história
profunda de luto e redenção. Uma joia rara que você começa a assistir com um
sorriso no rosto e encerra com um nó na garganta.
Assista ao trailer: A Verdadeira Dor
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com /
jghiorzi@gmail.com
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