quinta-feira, 24 de abril de 2025

Until Dawn – Noite de Terror: jogo de vida ou morte

 

Um dilema comum enfrentado por adaptações cinematográficas de videogames é como cativar não apenas os fãs do jogo original, mas também o público leigo. Diferentemente das adaptações literárias, filmes baseados em jogos carregam um imaginário visual já consolidado — cenários, personagens e mecânicas de narrativa interativa que definem sua essência. O grande desafio, portanto, é reinventar esse universo sem trair suas raízes. A adaptação Until Dawn – Noite de Terror consegue escapar parcialmente dessa armadilha ao abraçar seu tom autoirônico, optando pela diversão em vez do rigor narrativo. O resultado é um filme que, embora não ofereça algo exatamente original, entrega exatamente o que o gênero promete: um massacre cheio de estilo.

Um ano após o desaparecimento misterioso de sua irmã mais velha, Melanie (Maia Mitchell), a jovem Clover (Ella Rubin) decide reunir seus amigos — o cético Derek (Ji-young Yoo), a impulsiva June (Odessa A’zion) e o inseguro Danny (Anthony Ramos) — para uma viagem até uma hospedagem nas montanhas. O local, cercado por florestas densas e lendas sobre assassinatos não resolvidos, guarda uma pista perturbadora: assinaturas repetidas de Melanie no livro de visitas, todas datadas após seu sumiço. O que começa como uma investigação descontraída logo se transforma em um pesadelo quando o grupo percebe que não está sozinho. Encurralados por forças sobrenaturais e um assassino mascarado, os amigos precisam enfrentar não apenas o perigo iminente, mas também segredos do próprio passado — onde cada decisão errada pode desencadear um destino pior que a morte.

Inspirado no aclamado videogame Until Dawn (2015), o longa-metragem se passa no mesmo ambiente isolado e sombrio do jogo, mas expande a mitologia em torno do chamado "efeito borboleta" — conceito que gira em torno da ideia de que pequenas ações no presente determinam desfechos radicalmente diferentes no futuro. Essa premissa, que no jogo se traduzia em escolhas do jogador, no filme se transforma em uma sequência de reviravoltas calculadas, nem sempre sutis, mas eficazes para manter o espectador envolvido.

Dirigido por David F. Sandberg (conhecido por Shazam!, 2019, e Annabelle 2, 2017), o filme acumula clichês do terror: vilões brutais, personagens descartáveis e uma narrativa que não se afasta muito do arquétipo de "garotas em perigo". Clover, como a típica final girl, carrega o peso emocional da trama, enquanto os coadjuvantes preenchem os estereótipos do gênero — desde o alívio cômico até a vítima sacrificada.

Como uma versão sanguinolenta de Feitiço do Tempo (aquele onde o personagem de Bill Murray fica preso em um eterno recomeço de um dia que se repete sem fim), o roteiro se diverte ao apresentar mortes criativas — e repetitivas — para o elenco. O filme não economiza em carnificina: facadas, explosões e espancamentos se sucedem com um ritmo quase lúdico, como se Sandberg estivesse brincando com os tipos do gênero. A violência excessiva, longe de ser gratuita, torna-se parte do charme, ainda que o humor negro nem sempre atinja o equilíbrio ideal entre horror e comédia.

Until Dawn – Noite de Terror funciona melhor quando joga com o desconhecido. A mitologia, ainda que pouco explorada, serve como pano de fundo para cenas de tensão eficazes — como um close-up em uma fotografia antiga que, aos poucos, revela uma figura onde antes só havia vulto. O filme não precisa de monstros totalmente expostos; basta a promessa de que eles estão lá, esperando. Esta adaptação não é uma obra-prima do terror, mas também não pretende ser. Sua força está justamente em reconhecer suas limitações e apostar no entretenimento puro, sem pretensões profundas. Embora recicle clichês e dependa de uma mitologia já conhecida dos jogadores, o filme compensa com um ritmo ágil e um elenco carismático o suficiente para tornar a jornada divertida. Para fãs do jogo, é uma homenagem digna; para os novatos, um filme slasher competente que sabe brincar com as expectativas. No fim, cumpre seu papel: fazer o público rir, gritar e, quem sabe, conferir o jogo depois.

Assista ao trailer: Until Dawn – Noite de Terror


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela


quarta-feira, 16 de abril de 2025

Pecadores: quando o blues encontra o Inferno

 

Após cinco anos moldando o universo de Pantera Negra - que rendeu duas obras de prestígio do cinema de super-heróis (2018 e 2022) -, Ryan Coogler liberta-se das amarras dos blockbusters para assumir as rédeas de seu projeto mais pessoal e arriscado. Pecadores (Sinners, 2025) rompe com a tradição das adaptações, pois trata-se de uma criação original nascida da mente do diretor, produzida por sua produtora Proximity Media. Neste terreno livre de concessões comerciais, Coogler não apenas desafia gêneros como reafirma sua maturidade artística, trocando os trajes heroicos por uma narrativa visceral que beira o confessional.

No calor opressivo do Sul norte-americano em 1932, os irmãos gêmeos Elijah e Isaiah (dupla interpretação de Michael B. Jordan) travam uma batalha dupla: contra a segregação racial e pela realização do sonho de criar um bar/clube de blues. O que começa como um drama histórico de resistência cultural transforma-se radicalmente quando criaturas noturnas - vampiros que personificam, metaforicamente, a Ku Klux Klan em sua essência mais monstruosa - declaram guerra à comunidade negra. Neste universo, o blues transcende sua função musical sendo ao mesmo tempo maldição e redenção, ponte para o inferno e arma contra seus mensageiros.

Pecadores é um experimento de alquimia onde o diretor funde drama de época, filme de gangsters, horror vampiresco, ação pulsante e musical - uma combinação perigosa que em tese flertaria com a tragédia. Coogler, porém, tece essas influências com a uma precisão de mestre. A longa, sinuosa e espetacular sequência da evolução da música negra (encenada no ambiente do bar) é particularmente deslumbrante: um balé cinematográfico que conecta séculos de história através de movimentos coreografados com intensidade quase religiosa. As referências - desde o blues sobrenatural de Um Drink no Inferno até o horror social dos zumbis de Romero - são assimiladas, não meramente copiadas. Até elementos visuais (postes de energia elétrica que simbolizam cruzes e revoadas de corvos como arautos do destino) servem à narrativa com naturalidade.

A primeira metade do filme constrói meticulosamente seu mundo: um drama sócio-histórico que mescla a crueza dos filmes de gangster com a autenticidade do cinema realista. Na segunda metade, quando ocorre a virada para o sobrenatural - onde os vampiros (todos brancos, todos famintos) iniciam seu cerco - é tão abrupta quanto necessária. Coogler aqui reproduz a essência do blues: a ruptura e a dissonância transformada em arte.

Pecadores poderia ter sido apenas mais um manifesto panfletário. Em vez disso, Coogler opta pela sofisticação. Sua crítica ao racismo estrutural é construída através de imagens e símbolos, nunca através de discursos. Os monstros não são meras metáforas, mas extensões lógicas de um mal histórico que nunca foi embora. A trilha sonora - personagem central da trama - não apenas ambienta, mas comenta a ação, criando camadas de significado que se revelam em cada revisitação.

O que Coogler entrega absolutamente não é uma reinvenção do cinema, mas um exercício muito bem-sucedido em elevar o entretenimento de gênero ao status de arte. Cada elemento - da direção, da fotografia, da trilha, da direção de arte - converge para criar uma experiência única. Pecadores é simultaneamente um soco no estômago e um poema visual, um filme que consegue ser intelectual sem perder seu poder de entreter. O diretor celebra a cultura negra não através da idealização, mas da confrontação honesta com seus fantasmas. A mistura de mitologia afroamericana, religiosidade e folclore resulta em um terror gótico sulista. Um alento criativo em um mar de fórmulas preguiçosas.

A experiência de Pecadores só se completa com a sequência pós-créditos - não um mero extra estilo Marvel, mas um epílogo que ressignifica toda a jornada e permanece na memória como o acorde final de um grande blues.

Assista ao trailer: Pecadores


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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quarta-feira, 2 de abril de 2025

Presença: espírito voyeur

 

O diretor Steven Soderbergh surgiu no cinema com o explosivo e polêmico (à época) Sexo, Mentiras e Videotape (1989), um marco do cinema independente que lhe rendeu aclamação precoce. Desde então, construiu uma carreira errática, alternando entre projetos autorais e obras de entretenimento — sempre com traços de inteligência acima da média, mas sem consolidar uma assinatura autoral definitiva. Sua marca, se é que existe alguma a ser destacada, é a versatilidade: um cineasta prolífico que transita entre muitos gêneros, do thriller ao drama, do experimental à comédia, da ficção científica ao policial. Em pouco mais de 40 anos de carreira, Soderbergh já dirigiu mais de 50 filmes, dividindo sua produção entre cinema e TV Neste ano de 2025 já estreou no Brasil seu drama de espionagem Código Preto. Agora, poucas semanas depois, Steven Soderbergh, volta aos cinemas com mais um lançamento: o thriller de horror Presença. (Presence, 2024). Nestes dois trabalhos o diretor repete um de seus vícios mais frequentes: o excesso de estilo em detrimento da substância narrativa.

Com roteiro de David Koepp (também autor de Jurassic Park, O Pagamento Final, Missão: Impossível I e O Quarto do Pânico) o filme apresenta o casal Rebekah (Lucy Liu) e Chris (Chris Sullivan) que se muda para uma nova casa com seus dois filhos Chloe (Callina Liang) e Tyler (Eddy Maday). Uma perda chocante no passado afeta Chloe, que juntamente com os demais membros da família busca restabelecer a normalidade. Aos poucos, porém, começa a perceber que naquela casa há uma “presença” invisível que observa todos os movimentos da família. Na sequência, eventos perturbadores assustam e ameaçam todos moradores da casa.


O filme se apoia em uma história em primeira pessoa, onde a câmera assume o papel de um espírito aprisionado em uma casa vazia. A movimentação peculiar do equipamento não é mero exibicionismo técnico, mas um recurso narrativo que busca fluidez e a ilusão de tempo real — artifício para expressar a percepção da verdadeira protagonista (uma entidade sobrenatural). Diferente de filmes que simulam a ausência do invisível, Presença o torna explícito, quase tangível, guiando a ação como um voyeur ativo. O clima remete a Poltergeist, mas com o adendo de oscilar entre o físico e o metafísico, sem, no entanto, mergulhar profundamente em nenhum dos lados. O que resulta em uma tremenda deficiência do filme de Steven Soderbergh.


A trama também esboça uma crítica ao descompasso entre pais e filhos em um mundo hiperdigitalizado, tema relevante, porém tratado de forma superficial. Como em grande parte da filmografia do diretor, há ideias interessantes, mas executadas com frieza emocional. Os planos-sequência — embora eficazes para imersão — tornam-se repetitivos, e a narrativa perde força por conta de uma trama que não consegue sustentar a curiosidade inicial.


Presença é um filme mediano que não oferece uma efetiva experiência significativa, seja como horror ou seja como suspense. A premissa, que empolga nos primeiros momentos, logo se torna redundante, repetitiva e perde seu apelo. Falta consistência na trama e envolvimento emocional para sustentar o interesse. Apesar da técnica precisa e da proposta conceitual válida, a experiência não empolga: falta tensão genuína, desenvolvimento de personagens e um clímax satisfatório. Soderbergh mais uma vez demonstra habilidade como artesão, mas falha em entregar algo além de um exercício estilístico vazio. O espectador fica com a sensação de ter assistido a um experimento formal interessante, porém esquecível.

Assista ao trailer: Presença


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

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