quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Bom Menino: pelos olhos do medo

 

Imagine um filme de horror e suspense onde tudo que vemos e sentimos é filtrado pela percepção de um cão. Esta é a premissa ousada e genial de Bom Menino (Good Boy, 2025), dirigido por Ben Leonberg. O filme não apenas utiliza um cachorro como protagonista, mas mergulha o espectador por completo em sua subjetividade, criando uma experiência de medo única e profundamente cinematográfica.

A trama segue um homem que, após uma tragédia familiar não detalhada, se refugia na antiga casa de sua família, um local carregado de memórias e suspeito de ser, em algum nível, mal-assombrado. Ele não está sozinho, seu fiel cão, Indy, faz companhia. É através dos olhos e ouvidos de Indy que testemunhamos o tutor passar por uma inquietante transformação, possivelmente ligada a uma maldição hereditária, enquanto ambos são expostos a ameaças invisíveis, mas potencialmente fatais.

A opção narrativa de adotar a perspectiva canina tem implicações formais profundas. A câmera permanece quase sempre em ângulo baixo, e os humanos são retratados de forma fragmentada, apenas torsos, mãos, pernas, etc. Seus rostos raramente são vistos por completo, nunca se constituindo como personagens plenos, mas como "objetos de cena" dentro do mundo sensorial de Indy. A reconhecida sensibilidade canina é traduzida com maestria, nos conduzindo a dimensões sonoras e visuais inacessíveis à percepção humana. Nesse universo, silêncios se tornam eloquentes e ruídos se amplificam, construindo uma tensão constante.

Nesse contexto, há algo de brilhante na expressão neutra de Indy. Ela funciona como uma tela em branco para as projeções do espectador, um princípio que remete diretamente ao famoso Efeito Kuleshov. O cineasta russo Lev Kuleshov demonstrou, nos anos 1920, que uma mesma expressão facial impassível adquire significados diferentes conforme a imagem que a precede ou sucede. Em Bom Menino, o olhar do cão não comunica por si só, mas pelo contexto criado pela montagem. Cada corte, cada novo enquadramento projeta sobre ele uma emoção: medo, alerta, curiosidade. O significado não está intrinsicamente em seus olhos, mas naquilo que o espectador, guiado pelo filme, decide ver neles. Ele nada expressa, mas tudo reflete.

A magia do filme é que essa "atuação" convincente é alcançada sem a dependência de truques digitais, já que a produção é de baixíssimo orçamento. O segredo reside na paciência do realizador e no trabalho magistral de edição. Não é surpresa, então, descobrir que Indy é, na vida real, o cachorro do próprio roteirista e diretor, Ben Leonberg. Essa sintonia real entre dono e animal explica parte do sucesso, com o restante da magia sendo conquistado na sala de corte, onde os fragmentos de comportamento canino são costurados para criar uma performance narrativa.

Apesar da engenhosidade de sua premissa e de sua curta duração (pouco mais de 70 minutos), é inegável que, em certo ponto, as situações de tensão começam a se tornar um pouco repetitivas, sem conduzir a trama para frente com a agilidade que se poderia esperar. No entanto, este é um tropeço menor diante da realização geral.

Por fim, para além de seus méritos como filme de terror, Bom Menino reforça de maneira poderosa e comovente a conexão única entre cães e seres humanos. O filme nos lembra que, por vezes, a lealdade mais pura e a percepção mais aguçada do perigo vêm de uma criatura que, embora não fale nossa língua, nos entende de uma forma que talvez nós mesmos não sejamos capazes. É um testemunho arrepiante e belo do vínculo que desafia até mesmo as sombras mais antigas e assustadoras.

Assista ao trailer: Bom Menino


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela


sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Depois da Caçada: a fragilidade das máscaras morais

 

O mais recente filme do prolífico e contundente Luca Guadagnino, Depois da Caçada (After the hunt, 2025), traz todas as marcas reconhecíveis de sua filmografia: desejo reprimido, moralidade flexível, rebeldia criativa e um certo inconformismo iconoclasta. Ainda assim, é um trabalho que se distancia emocionalmente de obras anteriores, como Rivais, Queer e o subestimado Até os Ossos. Aqui, o diretor parece interessado menos em como amamos e mais em como pensamos sobre o amor, o poder e o julgamento. Depois da Caçada é um filme cerebral, provocativo e, por vezes, deliberadamente desconfortável. 

A história gira em torno de Alma (Julia Roberts), professora de filosofia em Yale, cuja vida pessoal e profissional começam a desmoronar após uma série de pequenas fraturas éticas e afetivas. Casada com Frederik (Michael Stuhlbarg), um intelectual espirituoso que aceita com humor o fato de amar mais do que é amado, Alma atrai o interesse de Hank (Andrew Garfield), colega de departamento e espécie de rebelde acadêmico, além da admiração fervorosa de Maggie (Ayo Edebiri), sua aluna de doutorado. Essas relações, que se iniciam como trocas intelectuais e afetivas, se tornam o epicentro de um jogo de poder que expõe a fragilidade das máscaras morais que sustentam o meio universitário.


Guadagnino transforma esse microcosmo acadêmico num campo de batalha de ideias e ressentimentos. O campus, com seus corredores frios e salas iluminadas por luz difusa, se configura como um cenário quase clínico, onde as emoções são dissecadas com precisão cirúrgica. O filme oscila entre a sátira e o drama psicológico, mostrando personagens que confundem retórica com ética e que se protegem atrás de discursos sofisticados, enquanto suas vidas pessoais se desintegram.

É revigorante ver um filme de Hollywood voltado a adultos, que aborda com seriedade temas como feminismo, cultura do cancelamento, política de identidade e diferença geracional. Mas “Depois da Caçada” é, em muitos momentos, mais admirável do que envolvente. Guadagnino parece tão interessado em discutir as contradições de nosso tempo que esquece de nos fazer sentir o impacto humano dessas contradições. Seu filme quer ser uma radiografia moral do presente, mas por vezes soa como uma tese filmada. Brilhante, provocante, porém emocionalmente árida.


Julia Roberts, no entanto, sustenta todo este peso com uma presença magnética. Ela está em quase todos os 139 minutos, e sua performance é o eixo em torno do qual o caos gira. É um tour de force, daqueles que costumam render indicações a prêmios, e, ainda que o roteiro lhe ofereça mais ideias do que emoções, Roberts encontra humanidade até nas contradições mais duras de Alma.


Com ecos de um ceticismo sofisticado à la Woody Allen, mas sem o alívio da comédia, Depois da Caçada é um filme que pensa demais e sente de menos. É cinema de conceito, não de catarse. Admirável na construção, mas frustrante na entrega. Uma experiência que nos desafia, mas nos toca com pouca paixão.

Assista ao trailer: Depois da Caçada


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela