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quinta-feira, 25 de julho de 2024

O Enigma de Kaspar Hauser: o indivíduo e a sociedade

 


Lançado há 50 anos, O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen all, 1974) continua impressionando por sua história intrigante e sua abordagem segue provocando profunda reflexão sobre os mecanismos sociais que atuam na construção do comportamento do ser humano em sua interação com os semelhantes. A realização de Werner Herzog foi selecionada para o Festival de Cannes de 1975, onde recebeu o Grand Prix do Júri Oficial e foi escolhido como Melhor Filme pelo Júri Ecumênico e também pelo Júri da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema). O título original em alemão quer dizer algo como “Cada um por si e Deus contra todos”, que carrega elementos poéticos e existências. O título internacional, por sua vez, é mais direto e objetivo por definir de antemão o nome do protagonista, até então pouco reconhecido fora da Alemanha. 

Kaspar Hauser foi um jovem (supostamente de 15 anos de idade) encontrado em uma praça de Nuremberg em 1828. Perdido, sem conseguir falar e andar, ele portava uma carta que explicava em parte sua história. O jovem havia passado toda a vida aprisionado em uma masmorra, sem contato com ninguém, simplesmente sendo alimentado com pão em água. Pelo fato de não conviver com outras pessoas, Kaspar Hauser não desenvolveu a capacidade da fala, bem como nenhuma capacidade de convivência com seres humanos. Criado por tutores e outras famílias da cidade, aos poucos Kaspar Hauser aprende a falar e se comunicar, da mesma maneira que uma criança. Com o tempo Hauser torna-se o centro das atenções sendo recebido como celebridade na alta sociedade de Nuremberg. Nunca foi descoberta efetivamente a origem do jovem, ainda que à época tenham surgido rumores de que Kaspar Hauser seria ser o príncipe herdeiro da família real de Baden, que havia sido roubado do berço em 1812.


A partir desta matéria prima como premissa em O Enigma de Kaspar Hauser o realizador Werner Herzog propõe um misto de recriação histórica e filme de tese, com um subtexto crítico à impositiva influência da sociedade na formatação do comportamento dos indivíduos no meio coletivo. A obra reproduz na trajetória de Hauser o processo de socialização de um ser humano vazio, sem desejos, sem objetivos, sem perspectivas. Enfim, em essência sem vida, apenas existência. 

De um momento para outro ele é obrigado a se relacionar com outros, reagir sem conhecer os limites dos próprios sentimentos e mergulhar em regras e comportamentos de um jogo social que não domina. Neste ponto o filme expõe a teoria sociológica de que não é o indivíduo que molda a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade, representada pela união predominante das partes, que formata o indivíduo. O psicólogo, filosófico e sociólogo francês Émile Durkheim afirmou que “os fatos sociais moldam a maneira de agir das pessoas pela influência que eles exercem sobre elas”.


Kaspar Hauser não desenvolveu inteligência emocional e demonstrava um conhecimento precário do funcionamento das coisas e das engrenagens sociais. Ele próprio se via como um estranho, um deslocado, um estranho no ninho, impotente e submetido a uma realidade que não conseguia compreender e alcançar. Curiosa, neste aspecto, é a reação que ele provoca na alta sociedade da cidade alemã da época. Tratado como um animal em exposição, um “homem-elefante”, Hauser, em seu processo de humanização forçada foi pretexto para a exposição de virtudes da elite virtuosa e culpada. 

O longo período afastado do convívio social privou Hauser da elaboração de conceitos e raciocínios lógicos. Em razão disto ele tinha dificuldades de diferenciar sonho de realidade. Herzog por vezes insere passagens com imagens abstratas, representações audiovisuais de imagens aleatórias que povoam a mente de Kaspar Hauser. Ele não possuía o poder da abstração e tampouco a habilidade funcional de tarefas elementares do dia. Esta confusão mental, que torna difusas as fronteiras sensoriais, fica explícita nas sequências quando ele tenta, por mais de uma vez, contar uma história (uma reinterpretação da sua própria existência?), porém, Hauser sabe apenas como a história inicia, mas desconhece qual seria o fim.


A importância das relações sociais na formação do ser humano já havia sido tratada em filme cinco anos antes desta obra de Werner Herzog. Em 1969 François Truffaut dirigiu O Garoto Selvagem, que conta uma história em essência muito semelhante a de Kaspar Hauser. Um menino vivia sozinho, no meio da floresta com um bando de lobos, sem nenhum contato com a sociedade, no final do século XVIII. Ele não falava, não lia ou escrevia. Resgatado, o garoto é levado à Paris e tratado por um médico (interpretado pelo próprio Truffaut). 

O Enigma de Kaspar Hauser é um filme rico de interpretações, seja no campo da filosofia, da sociologia, da ética e, evidentemente, como a obra cinematográfica admirável que é. Werner Herzog exerce amplo domínio sobre todos os aspectos da narrativa e realiza uma obra radical e profunda.

Assista ao trailer: O Enigma de Kaspar Hauser


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

 

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com