Lançado há 50
anos, O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen
all, 1974) continua impressionando por sua história intrigante e sua abordagem segue
provocando profunda reflexão sobre os mecanismos sociais que atuam na construção
do comportamento do ser humano em sua interação com os semelhantes. A
realização de Werner Herzog foi selecionada para o Festival de Cannes de 1975,
onde recebeu o Grand Prix do Júri Oficial e foi escolhido como Melhor Filme
pelo Júri Ecumênico e também pelo Júri da FIPRESCI (Federação Internacional de
Críticos de Cinema). O título original em alemão quer dizer algo como “Cada um
por si e Deus contra todos”, que carrega elementos poéticos e existências. O
título internacional, por sua vez, é mais direto e objetivo por definir de
antemão o nome do protagonista, até então pouco reconhecido fora da Alemanha.
Kaspar Hauser foi
um jovem (supostamente de 15 anos de idade) encontrado em uma praça de
Nuremberg em 1828. Perdido, sem conseguir falar e andar, ele portava uma carta
que explicava em parte sua história. O jovem havia passado toda a vida aprisionado
em uma masmorra, sem contato com ninguém, simplesmente sendo alimentado com pão
em água. Pelo fato de não conviver com outras pessoas, Kaspar Hauser não
desenvolveu a capacidade da fala, bem como nenhuma capacidade de convivência
com seres humanos. Criado por tutores e outras famílias da cidade, aos poucos
Kaspar Hauser aprende a falar e se comunicar, da mesma maneira que uma criança.
Com o tempo Hauser torna-se o centro das atenções sendo recebido como
celebridade na alta sociedade de Nuremberg. Nunca foi descoberta efetivamente a
origem do jovem, ainda que à época tenham surgido rumores de que Kaspar Hauser
seria ser o príncipe herdeiro da família real de Baden, que havia sido roubado
do berço em 1812.
A partir desta matéria
prima como premissa em O Enigma de Kaspar Hauser o realizador Werner
Herzog propõe um misto de recriação histórica e filme de tese, com um subtexto
crítico à impositiva influência da sociedade na formatação do comportamento dos
indivíduos no meio coletivo. A obra reproduz na trajetória de Hauser o processo
de socialização de um ser humano vazio, sem desejos, sem objetivos, sem
perspectivas. Enfim, em essência sem vida, apenas existência.
De um momento
para outro ele é obrigado a se relacionar com outros, reagir sem conhecer os
limites dos próprios sentimentos e mergulhar em regras e comportamentos de um
jogo social que não domina. Neste ponto o filme expõe a teoria sociológica de
que não é o indivíduo que molda a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade,
representada pela união predominante das partes, que formata o indivíduo. O psicólogo,
filosófico e sociólogo francês Émile Durkheim afirmou que “os fatos sociais
moldam a maneira de agir das pessoas pela influência que eles exercem sobre
elas”.
Kaspar Hauser não
desenvolveu inteligência emocional e demonstrava um conhecimento precário do
funcionamento das coisas e das engrenagens sociais. Ele próprio se via como um
estranho, um deslocado, um estranho no ninho, impotente e submetido a uma
realidade que não conseguia compreender e alcançar. Curiosa, neste aspecto, é a
reação que ele provoca na alta sociedade da cidade alemã da época. Tratado como
um animal em exposição, um “homem-elefante”, Hauser, em seu processo de
humanização forçada foi pretexto para a exposição de virtudes da elite virtuosa
e culpada.
O longo período
afastado do convívio social privou Hauser da elaboração de conceitos e
raciocínios lógicos. Em razão disto ele tinha dificuldades de diferenciar sonho
de realidade. Herzog por vezes insere passagens com imagens abstratas,
representações audiovisuais de imagens aleatórias que povoam a mente de Kaspar
Hauser. Ele não possuía o poder da abstração e tampouco a habilidade funcional
de tarefas elementares do dia. Esta confusão mental, que torna difusas as
fronteiras sensoriais, fica explícita nas sequências quando ele tenta, por mais
de uma vez, contar uma história (uma reinterpretação da sua própria
existência?), porém, Hauser sabe apenas como a história inicia, mas desconhece qual
seria o fim.
A importância das
relações sociais na formação do ser humano já havia sido tratada em filme cinco
anos antes desta obra de Werner Herzog. Em 1969 François Truffaut dirigiu O
Garoto Selvagem, que conta uma história em essência muito semelhante a de
Kaspar Hauser. Um menino vivia sozinho, no meio da floresta com um bando de
lobos, sem nenhum contato com a sociedade, no final do século XVIII. Ele não
falava, não lia ou escrevia. Resgatado, o garoto é levado à Paris e tratado por
um médico (interpretado pelo próprio Truffaut).
O Enigma de
Kaspar Hauser é um filme rico de interpretações, seja no campo da filosofia, da
sociologia, da ética e, evidentemente, como a obra cinematográfica admirável que
é. Werner Herzog exerce amplo domínio sobre todos os aspectos da narrativa e
realiza uma obra radical e profunda.
Assista ao trailer: O Enigma de Kaspar Hauser
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com / jghiorzi@gmail.com
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