A polêmica com o novo filme de Darren Aronofsky
surgiu já em sua primeira exibição no recente Festival de Veneza, encerrado há
menos de um mês. E só tem crescido onde quer que seja exibido. Mãe!
(Mother!) já nasceu com este marco de discórdia. Ou amam, ou odeiam. E na zona
cinzenta intermediária as discussões são as mais acaloradas dos últimos anos.
De fato o filme mobiliza, incomoda, provoca e subverte expectativas. Nos casos
mais extremos, dá um nó mental nos mais desavisados. Portanto, ao encarar a
obra, abra a mente e embarque nesta viagem.
Na superfície, no primeiro nível narrativo, Mãe! conta a história de um casal,
interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, recém-casados que estão morando
num enorme casarão em reforma, isolado, distante da cidade. Ele é um poeta com
bloqueio criativo. Ela, grávida, se dedica aos afazeres domésticos. A chegada
inesperada de um visitante desconhecido (Ed Harris), em busca de um quarto para
alugar, coloca em desequilíbrio a harmonia do casal. A situação se torna
realmente incontornável quando aparece também a esposa do visitante (Michelle
Pfeiffer, retornando ao cinema) e culmina logo em seguida com a chegada dos
filhos adultos. Neste ponto a narrativa rompe todas as amarras que
precariamente a mantinham dentro de uma perspectiva minimamente realista. Pelos
olhos estarrecidos da personagem de Jennifer Lawrence somos testemunha de
episódios surrealistas e caóticos que mostram dezenas de pessoas literalmente
invadindo a casa como incontroláveis zumbis, em sequências que muito lembram o
clássico A Noite dos Mortos Vivos, de
George A. Romero.
Apesar da referência ao filme de Romero, Mãe! não é um filme convencional de
terror, nem de terror psicológico, como Cisne
Negro, do mesmo Aronofsky, ainda que eventualmente possa despertar
sensações de genuíno horror. A verdade é que em seus momentos iniciais
parece estarmos diante de um drama de suspense, mas logo o espectador abandona
esta primeira leitura, pois algo se mostra fora do lugar nas regras do gênero. Mãe! é uma perturbadora e radical fábula
que mistura fantasia, delírio e devaneio, com forte apelo religioso e
existencial.
Com Mãe!
Darren Aronofsky aprofunda e radicaliza a experiência de cinema expressionista já
exercida no citado Cisne Negro. Assim
como naquele, a expressão dos sentimentos interiores de um personagem altera,
distorce e recria a realidade circundante percebida. O novo trabalho de
Aronofsky assume deliberadamente uma fantasia metafísica que quebra as leis
naturais e subverte as constantes de tempo e espaço. Cabe ao espectador aceitar
a proposta antes de mergulhar na imensidão de símbolos e analogias que vão
surgindo num ritmo tão intenso que exige esforço redobrado na elaboração dos
significados.
Profundamente alegórico e metafórico, Mãe! pode ser encarado como uma parábola
com conotações bíblicas e a chave para sua compreensão pode ser uma pequena
pista nos créditos finais. Neles o personagem de Javier Bardem é creditado como
“Him” (“Ele”, assim mesmo, com letra maiúscula). Se levarmos isto em conta, as
coisas começam a fazer algum sentido tangível e ganhar coerência. “Ele”
(Bardem), o poeta em sua luta interior para escrever o poema perfeito, seria o
Criador. Artista todo-poderoso que inspira veneração de fãs – súditos. A “Mãe”
(Jennifer Lawrence), mãe da humanidade, que carrega no ventre o mistério da
criação, fruto do Criador, zela pelo bem-estar da família e da paz no lar. E
por fim, a “Casa”, imagem símbolo do Paraíso, isolada no Jardim do Éden, a
morada do primeiro casal, Adão e Eva. Ponto comum que equilibra este
triunvirato simbólico (Criador – Mãe – Paraíso) é a simbologia do Sagrado Coração
de Jesus, transubstanciado na imagem de uma pedra/diamante venerada pelo
personagem de Javier Bardem.
Darren Aronofsky, que cresceu dentro da cultura
judaica, mas não se considera um religioso, já abordou abertamente temas religiosos
em dois filmes: A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), uma versão controversa da história
bíblica da Arca de Noé que salva da destruição a vida no planeta Terra. Aliás,
o ativismo ambiental e ecológico é outra das facetas do realizador, cujos temas
subjacentes também são encontrados em Mãe!,
uma obra complexa e perturbadora que paga o preço da incompreensão pela ousadia
obsessiva do realizador.