terça-feira, 12 de setembro de 2017
terça-feira, 5 de setembro de 2017
“Os Amores de Maria”: desejo e paixão
Em 1946 o cineasta John Huston dirigiu um
documentário de encomenda para o Exército norte-americano. A proposta era
retratar a recuperação dos soldados que voltaram da Segunda Guerra Mundial com
problemas psíquicos, internados num hospital militar. O filme, com pouco menos
de uma hora de duração, chamado Let there
be light (disponível no You Tube), ficou proibido para exibições públicas
até 1980. A alegada razão para a interdição eram as fortes emoções provocadas
pelo impacto das imagens e os tocantes depoimentos dos soldados abalados pela
guerra.
Cerca de quatro anos após a liberação, cenas deste
documentário foram utilizadas na sequência de abertura de Os Amores de Maria
(Maria’s lovers, 1984), dirigido nos EUA pelo russo Andrei Konchalovsky. Faz
todo sentido. Os dois filmes tratam do mesmo tema de fundo: os efeitos da
guerra na sanidade mental dos soldados. Um sob a forma de documentário, outro
com um tratamento de ficção. As imagens em preto e branco mostram sessões de
terapia com os soldados relatando seus problemas para psicólogos militares. Um
a um os depoimentos vão se sucedendo, até que acontece uma passagem de cenas
reais do documentário para cenas encenadas (ainda descoloridas) por John Savage,
interpretando um soldado em recuperação. Assim somos apresentados ao personagem
Ivan Bibic, protagonista da história de Os
Amores de Maria.
Após sobreviver um período detido por japoneses num
campo de prisioneiros, na Segunda Guerra Mundial, Ivan Bibic retorna para a
casa do pai (Robert Mitchum), numa comunidade de imigrantes iugoslavos nos
subúrbios de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA). Durante o tempo em que ficou
preso o soldado jurou amor à sua paixão de infância, a bela e virgem Maria
Bosic (Nastassja Kinski). Na volta, eles reatam a relação interrompida e acabam
casando, contra a vontade do pai, que julga Maria uma mulher inadequada para o
filho. Além do que, ele também demonstra uma paixão recolhida pela jovem, que é
filha de uma antiga amante do passado. Logo após o casamento, a fragilidade de
Ivan se manifesta na impotência psicológica. Bloqueado, ele não consegue fazer
amor com sua esposa, apenas com outras mulheres. Maria permanece virgem, e o
casamento se desmancha no ar. Até que surge na cidade um músico/cantor
andarilho, Clarence Butts (Keith Carradine), que seduz Maria e precipita o
desfecho da história.
Por caminhos um tanto tortuosos, se estabelece, em
algum nível, o clássico triângulo amoroso, mas com nuances mais profundas e
simbólicas. Maria inspira paixões em todos os homens que a conhecem, o que nos permite
uma livre interpretação para uma analogia religiosa. A virgem Maria é objeto de
paixão (idolatria?) do Pai (pai de Ivan), do Filho (o próprio Ivan) e do
Espírito Santo (Clarence Butts). A via-crúcis de Ivan, em busca da redenção, é
a sustentação da narrativa em Os Amores
de Maria.
O retorno de Ivan para casa mostra um descolamento
da realidade em sua mente, uma sensação de não-pertencimento daquela comunidade
que fez parte da sua história de vida. No período de prisão a idolatria à amada
o manteve vivo. Orientou seu retorno. Mas não foi suficiente para a felicidade.
O amor pensado não suportou a realidade do amor vivido. A fantasia da paixão
não encontrou ressonância nos fatos. O romantismo perdeu para a vida real.
O desejo sexual movimenta os personagens protagonistas
do filme de Andrei Konchalovsky. Com resultados distintos para cada um deles,
evidentemente. Enquanto a virgem e ingenuamente sedutora Maria é uma explosão
de hormônios em ebulição, o pobre Ivan sucumbe pela impossibilidade de dar
vazão plena aos desejos carnais pela esposa. Há inclusive, uma sequência exemplar
que explora belamente esta relação que, além de não se concretizar, os afasta
definitivamente. No mesmo enquadramento vemos Ivan e Maria, separados por uma
parede. Ivan está no quarto, sentado em um pequeno triciclo infantil em frente
a um espelho. O retrato perfeito de uma personalidade imatura. Ivan é uma
criança, frágil e indefesa. Maria, por sua vez, está no banheiro, vestindo uma
sexy lingerie preta. A imagem de uma mulher sedutora, poderosa e altiva. Há
mais do que uma parede separando os universos de Ivan e Maria.
O diretor Konchalovsky demonstra um tratamento
carinhoso e compreensivo ao casal. Não há vilões. Apenas vítimas. Ele não
julga, apenas testemunha uma relação tormentosa e conflitada, sem optar por nenhum
dos lados. Isto equilibra a condução da história e proporciona ao expectador a
possibilidade de compartilhar as ações e reações de Ivan e Maria sem
comprometer o engajamento a nenhum dos lados. Aqui o realizador demonstra uma
sensibilidade que, no entanto, foi totalmente desnecessária em seu filme
seguinte, Expresso para o Inferno
(1986), um drama de ação com Jon Voight vivendo um prisioneiro em fuga que se
esconde num trem desgovernado sem controle. Sem falar em Tango e Cash – Os Vingadores (1989), com Sylvester Stallone e Kurt
Russell.
Os
Amores de Maria não se
caracteriza exatamente como um filme romântico. É por demais melancólico, lento
e pesado para quem busca este tipo de experiência. No entanto, possui elementos
típicos do gênero: uma história de amor (ainda que não convencional); um casal
de jovens atores com apelo midiático (particularmente Nastassja Kinski, no auge
da beleza); música marcante (a bela “Maria’s eyes”, composta e interpretada por
Keith Carradine) e fotografia exuberante (de Juan Ruiz Anchía).
Uma curiosidade. Quando lançado no Brasil, o filme recebeu
inicialmente o título de Os Amantes de
Maria. Anos depois, em seu lançamento em home video, o título foi alterado
para Os Amores de Maria, que adotamos
nesta resenha.
Assista o trailer: Os Amores de Maria
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)
domingo, 27 de agosto de 2017
“Maratona da Morte”: fuga do passado
No rastro surgiu uma leva de filmes que mesclavam
tramas policiais e conspirações políticas, como A Conversação (1974), de
Francis Ford Coppola; A Trama (1974), de Alan J. Pakula; a sequência Operação França II (1975), de John Frankenheimer; Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack, e Todos os Homens do Presidente (1976), também de
Pakula. Vale reparar: todos dirigidos por cineastas do primeiro time. Uma
comprovação de prestígio do gênero suspense / thriller naquele período.
Foi neste contexto que surgiu Maratona da Morte.
Com roteiro escrito por William Goldman, a partir de seu próprio livro, o filme
de John Schlesinger apresenta uma intrincada trama internacional de espionagem
que mistura espiões com nazistas escondidos na América do Sul, a exemplo de
Joseph Mengele, que viveu muitos anos incógnito no Brasil. O filme sugere que a
custa de muitos diamantes os nazistas foragidos negociam sua liberdade com
agentes de espionagem que atuam à margem do sistema.
O personagem principal é Thomas “Babe” Levy (Dustin
Hoffman), jovem estudante universitário de História, e maratonista nas horas
vagas, que desenvolve uma tese sobre o período do Macartismo (do senador Joseph
McCarthy) para provar a inocência do pai, que cometeu suicídio após ser
perseguido e expulso da universidade. Seu irmão é Henry “Doc” Levy (Roy
Scheider), que se apresenta como negociante do mercado de petróleo, mas na
verdade é agente secreto de uma agência ultrassecreta, paralela ao governo,
chamada “A Divisão”. Suas ligações perigosas com o contrabando de diamantes,
fruto de roubo dos nazistas da Segunda Guerra, acabam por levar Henry à morte.
O culpado foi o carrasco nazista Dr. Christian Szell (Laurence Olivier), antigo
dentista da SS que prestava serviço no campo de concentração de Auschwitz. Com
receio de ser descoberto, Szell passa então a perseguir e torturar o inocente
irmão do espião, “Babe”, para descobrir o que ele realmente sabe de toda a
trama.
A sequência de abertura de Maratona da Morte já
sugere o tema central da narrativa: a superação. As cenas iniciais mostram
imagens do célebre maratonista etíope Abebe Bikila nos Jogos Olímpicos de Roma,
em 1960, que venceu a prova da Maratona correndo de pés descalços. Um símbolo
de heroísmo, determinação e superação. O personagem de Dustin Hoffman encarna
um fracassado, um looser, em oposição
à imagem de requintado, bon vivant e
bem sucedido que o irmão “Doc” transmite. “Babe” é de outra turma, ligado aos
livros e estudos, no entanto, constantemente assombrado pelas memórias do
trágico destino do pai suicida. Neste sentido, a maratona na vida de “Babe” é
uma metáfora para a necessidade permanente de superação de limites.
Involuntariamente envolvido num perigoso jogo de
poderosos, “Babe” de uma hora para outra vê sua vida colocada do avesso. Num
piscar de olhos passa a tratar com espiões, assassinos e carrascos
torturadores. Chega, portanto, o
inevitável momento de amadurecimento, de libertação do passado. Ele, estudante
de História, conflitado pela necessidade de revisão da verdadeira história do
seu pai, se depara com a História em pessoa, na figura do nazista foragido.
Oportunidade única de fazer justiça (e História) com as próprias mãos. E,
ironia suprema, valendo-se da própria arma utilizada pelo pai no suicídio.
“É
seguro?”
Suspense e tensão são magistralmente manipulados
por John Schlesinger na condução do ritmo do longa. Nada é óbvio, nada é o que
parece ser à primeira vista. A dissimulação é uma arma estratégica muito bem
utilizada por todos os personagens, sejam quais forem suas posições no jogo. E
o espectador é envolvido lentamente conforme a narrativa evolui. Quanto mais a
trama vai se desenvolvendo, mais elementos são acrescentados, estabelecendo
novas conexões e inusitados desfechos. Enfim, a matriz perfeita de uma trama
bem elaborada.
Maratona da Morte é extremamente eficaz como
thriller de suspense, e duas sequências em particular se destacam: o ataque no
banheiro e a sessão de tortura. A primeira lida magistralmente com o medo e a
tensão com o desconhecido ao colocar o personagem de Dustin Hoffman num
relaxante banho de banheira enquanto assassinos invadem seu apartamento. A
segunda sequência é a famosa e impactante tortura do dentista Szell manipulando
os dentes de um apavorado Dustin Hoffman, sem anestesia. O sádico nazista
pergunta repetidamente: “É seguro?”. Aqui, vale um registro para o desempenho
magistral de Laurence Olivier que faz diversas inflexões da pergunta “É
seguro?”, cada uma delas de forma distinta. Coisa de mestre.
Este filme marcou um reencontro de Dustin Hoffman
com o diretor John Schlesinger, sete anos após Perdidos na Noite. A escolha
do ator para interpretar um jovem universitário causou algumas críticas na
época, pois parecia um claro equívoco em razão da idade do ator na ocasião.
Como um ator de quase 40 anos poderia interpretar um jovem? Mas, o fato é que
deu certo, assim como ocorreu quando Hoffman foi escalado para A Primeira
Noite de um Homem. O restante do elenco principal de Maratona da Morte dá um
clima internacional à produção. Além do inglês Laurence Olivier, também está a
atriz suíça Marthe Keller (Domingo Negro), que na época não sabia falar
inglês, interpretando apenas reproduzindo os fonemas. Recentemente a atriz foi
vista em Amnésia, de Barbet Schroeder.
A fotografia de Conrad L. Hall e a música de
Michael Small contribuem decisivamente para o ótimo resultado final de Maratona da Morte, sem falar, é claro, das belas locações nas ruas de Nova
Iorque que trazem um tom quase documental de registro das ruas, pontes, parques
e becos de um momento bem específico da metrópole.
Assista o trailer: Maratona da Morte
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em novembro de 2016)
Jorge Ghiorzi
sexta-feira, 11 de agosto de 2017
“O Estranho que Nós Amamos”: jogo de conquista e sedução
As duas versões de O Estranho que Nós Amamos estão separadas no tempo por 46 anos. De
1971, quando foi lançada a primeira versão dirigida por Don Siegel, até 2017,
quando o remake de Sofia Coppola chega às telas, os tempos definitivamente são
outros. O mundo mudou bastante e novos comportamentos foram assimilados. Todo
este caldo de cultura social está presente neste novo olhar feminino sobre uma
história de desejo, manipulação e exercício de poder.
Vamos aos fatos. A história de O Estranho que Nós Amamos
(The Beguiled) se passa na Virginia (EUA) em 1864, no período da Guerra Civil.
Um cabo das tropas da União, John McBurney (Colin Farrell), é ferido em combate
e encontrado em um bosque, à beira da morte, pela jovem Amy (Oona Laurence).
Ela o leva para a casa onde mora, uma internato de mulheres gerenciado por
Martha Farnsworth (Nicole Kidman). Inicialmente a contragosto as mulheres
decidem cuidá-lo até que se recupere e seja entregue às autoridades. No período
em que se recupera, McBurney, na condição de único homem da casa, começa a
despertar interesses e desejos nas mulheres, especialmente na professora Edwina
(Kirsten Dunst), na aluna adolescente Alicia (Elle Fanning) e também na própria
Martha. Um jogo de conquista e sedução se estabelece entre as moradoras da casa
e o soldado ferido.
Somos introduzidos no universo privado daquelas
mulheres como se estivéssemos entrando num conto de fadas. A jovem que percorre
os bosques para colher cogumelos seria a chapeuzinho vermelho que encontra o
lobo sedutor que haverá de romper o equilíbrio daquele mundo à parte
representado pelo internato. Um santuário imune e intocado pela violência da
guerra que explode além dos muros que cercam a propriedade. Aquelas mulheres
confinadas vivem um simulacro da alegoria da Caverna de Platão na qual a inesperada
presença de um homem liberta sentimentos reprimidos por um ambiente opressivo.
Uma diferença fundamental e determinante entre as
duas versões de O Estranho que Nós Amamos
é a variação do foco narrativo. A produção original de Don Siegel era
manifestamente centrada e conduzida a partir da personagem masculina
(interpretada por Clint Eastwood). Já na versão de Sofia Coppola o protagonismo
do olhar e das ações é inteiramente do coletivo das mulheres (não há o protagonismo
destacado de nenhuma delas). Esta alteração de registro redefiniu a
significação original de uma passagem decisiva da história: o episódio da
amputação que assume a conotação metafórica de uma castração.
Mais uma vez Sofia Coppola exibe sensibilidade para
criar ambientes esteticamente muito bem fotografados utilizando com talento a alternância
de luz e sombra, que aproxima seu trabalho da técnica do ‘chiaroscuro’
(claro-escuro), muito utilizada na pintura renascentista do século XV. Apesar
de seus 46 anos, pode-se dizer que Sofia é uma espécie de cineasta barroca em
pleno século XXI.
Outra opção de risco da diretora, que se mostrou adequada,
foi a decisão de não explicitar graficamente as sequências mais sensuais. Se na
versão de 1971 Don Siegel foi assumidamente carnal nas relações do soldado com
as mulheres (especialmente na sequência de sexo entre Clint Eastwood e
Geraldine Page), na refilmagem Sofia Coppola foi mais indireta e sutil, amenizando
o potencial erótico das sequências.
Comparações entre filme original e refilmagem são
inevitáveis. Mas com O Estranho que Nós
Amamos estamos diante de um caso onde as duas versões são admiráveis. Cada
uma em seu tempo, são retratos de uma época.
Assinar:
Postagens (Atom)