O diretor francês Robert Bresson é reconhecido pelo
radicalismo de sua postura estética marcada por um estilo seco e despojado de
filmar, porém, sempre denso de significados como um bom livro. Seus filmes, caracterizados
por um forte caráter antinaturalista, oferecem ao espectador uma experiência
sensorial mais próxima ao universo literário, ancorado na palavra, e teatral, onde
o gesto se sobrepõe à narrativa. Bem distante, portanto, do cinema comercial de
entretenimento. O sóbrio O Batedor de Carteiras (Pickpocket,
1959) é um dos exemplos mais contundentes do seu estilo peculiar que inspirou
cineastas tão distintos como Pier Paolo Pasolini e Abbas Kiarostami.
O enredo de O
Batedor de Carteiras é modesto e traz poucos elementos na trama.
Basicamente trata do cotidiano de Michel (Martin LaSalle), um pequeno punguista
que frequenta estações de trens, corridas de cavalos e as ruas de Paris em
busca de oportunidades para colocar em prática sua maior habilidade: furtar
carteiras, pastas e bolsas dos incautos com suas mãos ágeis. Entre visitas à
mãe doente, à beira da morte, e aprendizados com criminosos mais experientes,
Michel conhece e começa a se envolver com a jovem Jeanne (Marika Green),
vizinha do apartamento da mãe.
É próprio Michel que nos conta sua história. É sua
própria voz interior, que ouvimos a partir da leitura das anotações de seu
diário, que nos revela os fatos e eventos mais significativos de sua história.
Isto nos coloca frente a uma narrativa com um único ponto de vista, que não
admite o contraditório. A história é o que, e como, ele nos conta.
O despojamento narrativo de O Batedor de Carteiras é uma representação estética da quase
indigência do personagem principal (com seu paletó mal-ajambrado, alguns
números maiores que seu manequim), um ladrão de segunda linha, sem qualquer
traço de ambição, que se satisfaz com pequenos golpes. Quase sem vínculos
familiares, com exceção da mãe, o modesto batedor de carteiras parece alheio ao
convívio social, vivendo uma realidade alternativa, com suas próprias regras e
propósitos. Em dado momento Michel, que apesar de uma aparente baixa-estima
demonstra traços de uma presunção mal contida, chega a questionar que seres
superiores (como ele próprio) deveriam ser julgados com outras regras morais e
éticas. Portanto, julgava-se acima da lei. Seus pequenos crimes não passariam
de pequenas concessões que a sociedade lhe deveria por direito. Sem punição.
As verdadeiras motivações de Michel para a
contravenção não ficam estabelecidas para o espectador. E sequer para ele
próprio, que parece movido por uma determinação de caráter quase religioso.
Como se buscasse obstinadamente alguma punição para purgar seus pecados. Por
esta ótica, Bresson nos propõe a reflexão de que afrontar a lei pode revelar,
inconscientemente, um desejo de castigo visando a purificação. Uma espécie de
reinterpretação da trajetória do herói trágico de “Crime e Castigo” de Fiódor
Dostoiévski. Romance e filme tem como temática de fundo a religião (ou
religiosidade) e o existencialismo, onde a salvação não prescinde do
sofrimento.
Michel é um ladrão em conflito com si próprio. Suas
razões não são patrimoniais. Ele sequer usufrui dos bens subtraídos das
vítimas. Segue vivendo num quartinho acanhado. Veste sempre as mesmas roupas
desalinhadas, não demonstrando qualquer sinal de vaidade, tão comum em vigaristas.
Seus roubos são uma espécie de determinismo da sua existência. Valem apenas
pelo ato em si, não pelo resultado.
A câmera descritiva de Bresson dirige nosso olhar
para as mãos habilidosas em ação, invadindo bolsos, bolsas e casacos. A
sequência da série de roubos na estação e no trem é estupenda. O balé das mãos
deslizando por corpos estranhos induz uma insuspeita conotação erótica que
amplia nossa percepção sobre a possível essência real da personalidade de
Michel. Some-se a isto a quase total ausência do contato corporal entre Michel
e Jeanne quando fica evidente o interesse mútuo. O primeiro contato (beijo) de
ambos só ocorre quando ele já está preso, portanto, punido e liberto de suas
culpas. As grades da cela separam o casto beijo de Michel em Jeanne.
A simbologia das grandes assume um importante
significado no final de O Batedor de
Carteiras. Ao ser preso, Michel diz que as grades da prisão não o
incomodam, pois ele sequer as enxerga. No entanto, foi somente a partir do
momento em que aceitou estar apaixonado por Jeanne é que Michel se sentiu
realmente preso. E sua confissão para a amada revela um homem em paz com seu
destino: “Para chegar até você, que caminho estranho eu tive de percorrer”.
Assista o trailer: O Batedor de Carteiras
(Texto originalmente publicado na
coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em março de 2017)