Na resta dúvida que os anos 80 foram uma década de
exageros e excessos. Tempos de testar os limites da sociedade, da cultura e dos
comportamentos. Isto ficou manifestamente expresso em grande parte da produção
cinematográfica daquele período, que rompeu barreiras e experimentou um novo
tempo, com os erros e acertos de praxe. A liberação sexual e a afirmação do
feminino, por exemplo, até então matérias do ativismo político de uma parcela
da sociedade progressista (iniciado duas décadas antes), ganhou ares de
espetáculo midiático quando foi espertamente apropriada pelos grandes estúdios
de Hollywood em produções mais interessadas em explorar os temas pelo viés do sensacionalismo
do que por suas questões de fundo.
Um dos exemplares mais notórios desta apropriação
temática foi thriller erótico Crimes de Paixão (Crimes of Passion, 1984)
dirigido pelo controverso realizador inglês Ken Russell. Diretor conhecido por vários
filmes sobre compositores de música erudita, como Tchaikowsky, Mahler e Liszt, e pelo menos um musical de grande sucesso, a ópera-rock Tommy, Russell sempre manifestou especial
interesse por temas com potencial para gerar polêmica. E quando o tema em
questão não apresentava o potencial necessário para chocar as plateias, ele próprio
tratava de elevar o tom da narrativa, com seu estilo barroco, onírico e
lisérgico. Isto explica a presença constante de temas explosivos como Sexo e
Religião em toda sua obra.
E como não poderia ser diferente, Crimes de Paixão traz também a
dobradinha Sexo-Religião como argumentos fortes na narrativa que conta a
história de China Blue (Kathleen Turner), uma das mais conhecidas e desejadas
prostitutas do submundo de Los Angeles. Com sua peruca platinada ela realiza as
mais loucas fantasias de seus clientes no quartinho imundo de um hotel
decadente. Outro personagem da história é Bobby Grady (o inexpressivo John
Laughlin), pequeno empresário à beira da falência que luta para manter um
casamento fracassado. Ele acaba aceitando um trabalho extra a pedido de um grande
empresário do ramo de confecções. Sua missão é seguir Joanna Crane, importante
estilista da grife, suspeita de passar informações para os concorrentes. O que
descobre não tem nada a ver com espionagem industrial: Joanna Crane vive uma
vida dupla. À noite ela se transforma em China Blue, a famosa garota de
programa que circula pela noite da cidade. Completando o triângulo de
protagonistas aparece um reverendo psicopata (em interpretação alucinada de
Anthony Perkins, sim, ele mesmo, o Norman Bates) que passa a perseguir China
Blue. Entre sermões e shows eróticos, ele assume a missão divina de levar a
palavra da Bíblia à China Blue para salvá-la do pecado.
Com os excessos típicos dos anos 80, a música
estridente de Rick Wakeman e sua fotografia de cores quentes e muito efeito de
luz neon, Crimes de Paixão, em termos
estéticos, ficou um tanto defasado com o passar dos anos. Definitivamente o
filme não envelheceu bem. Em termos de discussão dos papeis sociais do homem e
da mulher e o poder da fantasia na sexualidade, o filme de Ken Russell pouco
avança, não oferecendo um posicionamento mais objetivo. Na verdade, sejamos
francos, não era exatamente este o objetivo do realizador. O roteiro irregular,
cheio de problemas de resolução, frio e pouco envolvente, é dirigido com o
habitual cinismo de Russell. O fato é que Crimes
de Paixão é melhor nas partes do que no todo.
A vida dupla de personagem de Kathleen Turner, com
seus joguinhos simulados e fantasias com seus clientes, na realidade apenas
desnuda a frustração de sua existência. No desapego à realidade, a fantasia
sempre é uma fuga. Em certo momento Joanna explica as razões que justificam seu
comportamento e nos dá a chave para o entendimento da zona livre onde o filme
funciona: “Aquele hotel é o lugar mais
seguro do mundo. Eu posso fazer, ser e sonhar o que quiser lá, porque não sou
eu”.
Se levarmos em conta o perfil transgressor e um
tanto maroto de Ken Russell, faz total sentido sua escolha de uma estrela hollywoodiana,
no auge à época, para protagonizar o filme. Vinda de dois sucessos como Corpos Ardentes, onde já flertava
abertamente com um erotismo mais contundente, e Tudo por Uma Esmeralda, uma comédia de aventuras ao lado de Michael
Douglas, nada fazia supor que Kathleen Turner fosse estrelar uma produção tão
ousada como Crimes de Paixão. Algo,
convenhamos, absolutamente improvável para qualquer uma das estrelas atuais. Não
há mais riscos envolvidos, apenas preservação da imagem e planejamento de
carreira submetido às regras do bom marketing. Kathleen Turner ousou e
mergulhou fundo. Sem entrarmos no mérito específico do seu desempenho
(elogiável, aliás), apenas esta decisão, por si só, já seria louvável.
Curiosamente criou-se, na mente do espectador, um efeito de paralelismo que
confronta a ficção da vida dupla de Joanna Crane / China Blue e a vida real de Kathleen
Turner, como se ela nos revelasse, num efeito de voyeurismo explícito, seu
“lado B” como atriz.
Por fim, uma cereja no bolo. O desfecho do thriller
faz uma ostensiva referência ao clássico Psicose
de Alfred Hitchcock. Pensando bem, com Anthony Perkins no elenco, a “homenagem”
era uma tentação impossível de ser recusada.
Assista o trailer: Crimes de Paixão
(Texto originalmente publicado na coluna
“Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)
Nenhum comentário:
Postar um comentário