quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

“O Batedor de Carteiras”: crime sem culpa


O diretor francês Robert Bresson é reconhecido pelo radicalismo de sua postura estética marcada por um estilo seco e despojado de filmar, porém, sempre denso de significados como um bom livro. Seus filmes, caracterizados por um forte caráter antinaturalista, oferecem ao espectador uma experiência sensorial mais próxima ao universo literário, ancorado na palavra, e teatral, onde o gesto se sobrepõe à narrativa. Bem distante, portanto, do cinema comercial de entretenimento. O sóbrio O Batedor de Carteiras (Pickpocket, 1959) é um dos exemplos mais contundentes do seu estilo peculiar que inspirou cineastas tão distintos como Pier Paolo Pasolini e Abbas Kiarostami.

O enredo de O Batedor de Carteiras é modesto e traz poucos elementos na trama. Basicamente trata do cotidiano de Michel (Martin LaSalle), um pequeno punguista que frequenta estações de trens, corridas de cavalos e as ruas de Paris em busca de oportunidades para colocar em prática sua maior habilidade: furtar carteiras, pastas e bolsas dos incautos com suas mãos ágeis. Entre visitas à mãe doente, à beira da morte, e aprendizados com criminosos mais experientes, Michel conhece e começa a se envolver com a jovem Jeanne (Marika Green), vizinha do apartamento da mãe.

É próprio Michel que nos conta sua história. É sua própria voz interior, que ouvimos a partir da leitura das anotações de seu diário, que nos revela os fatos e eventos mais significativos de sua história. Isto nos coloca frente a uma narrativa com um único ponto de vista, que não admite o contraditório. A história é o que, e como, ele nos conta.


O despojamento narrativo de O Batedor de Carteiras é uma representação estética da quase indigência do personagem principal (com seu paletó mal-ajambrado, alguns números maiores que seu manequim), um ladrão de segunda linha, sem qualquer traço de ambição, que se satisfaz com pequenos golpes. Quase sem vínculos familiares, com exceção da mãe, o modesto batedor de carteiras parece alheio ao convívio social, vivendo uma realidade alternativa, com suas próprias regras e propósitos. Em dado momento Michel, que apesar de uma aparente baixa-estima demonstra traços de uma presunção mal contida, chega a questionar que seres superiores (como ele próprio) deveriam ser julgados com outras regras morais e éticas. Portanto, julgava-se acima da lei. Seus pequenos crimes não passariam de pequenas concessões que a sociedade lhe deveria por direito. Sem punição.

As verdadeiras motivações de Michel para a contravenção não ficam estabelecidas para o espectador. E sequer para ele próprio, que parece movido por uma determinação de caráter quase religioso. Como se buscasse obstinadamente alguma punição para purgar seus pecados. Por esta ótica, Bresson nos propõe a reflexão de que afrontar a lei pode revelar, inconscientemente, um desejo de castigo visando a purificação. Uma espécie de reinterpretação da trajetória do herói trágico de “Crime e Castigo” de Fiódor Dostoiévski. Romance e filme tem como temática de fundo a religião (ou religiosidade) e o existencialismo, onde a salvação não prescinde do sofrimento.

Michel é um ladrão em conflito com si próprio. Suas razões não são patrimoniais. Ele sequer usufrui dos bens subtraídos das vítimas. Segue vivendo num quartinho acanhado. Veste sempre as mesmas roupas desalinhadas, não demonstrando qualquer sinal de vaidade, tão comum em vigaristas. Seus roubos são uma espécie de determinismo da sua existência. Valem apenas pelo ato em si, não pelo resultado.


A câmera descritiva de Bresson dirige nosso olhar para as mãos habilidosas em ação, invadindo bolsos, bolsas e casacos. A sequência da série de roubos na estação e no trem é estupenda. O balé das mãos deslizando por corpos estranhos induz uma insuspeita conotação erótica que amplia nossa percepção sobre a possível essência real da personalidade de Michel. Some-se a isto a quase total ausência do contato corporal entre Michel e Jeanne quando fica evidente o interesse mútuo. O primeiro contato (beijo) de ambos só ocorre quando ele já está preso, portanto, punido e liberto de suas culpas. As grades da cela separam o casto beijo de Michel em Jeanne.

A simbologia das grandes assume um importante significado no final de O Batedor de Carteiras. Ao ser preso, Michel diz que as grades da prisão não o incomodam, pois ele sequer as enxerga. No entanto, foi somente a partir do momento em que aceitou estar apaixonado por Jeanne é que Michel se sentiu realmente preso. E sua confissão para a amada revela um homem em paz com seu destino: “Para chegar até você, que caminho estranho eu tive de percorrer”.

Assista o trailer: O Batedor de Carteiras

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em março de 2017)

Jorge Ghiorzi

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