quinta-feira, 4 de julho de 2019

“Instinto Selvagem”: paixão sem limites


INSTINTO SELVAGEM (Basic Instinct, EUA, 1992)
Direção: Paul Verhoeven
Elenco: Michael Douglas, Sheron Stone, George Dzundza, Jeanne Tripplehorn, Leilani Sarelle

Escândalo no Festival de Cannes de 1992, onde foi escolhido como o filme de abertura. Roteiro controvertido, adquirido pela cifra recorde de 3 milhões de dólares. Alvo da censura norte-americana, que obrigou os produtores a fazerem cortes na montagem final. Pretexto para passeatas da comunidade LGBT, que protestou contra o fato da personagem central (bissexual) ser suspeita de assassinato na trama. E, de quebra, o lançamento da estrela mais quente da temporada, Sharon Stone. Tudo isto antecedeu o lançamento de Instinto Selvagem, e foi com esta carga de informação – para o bem ou para o mal – que o filme chegou às telas de todo o mundo.

Típico produto hollywoodiano, com o peso da marca dos grandes estúdios, o filme reúne um explosivo coquetel que mistura violência, lesbianismo, investigação policial, psicologia e sexo, muito sexo. Resumindo: segue à risca a cartilha dos filmes que pretendem transitar entre a polêmica e o sucesso de bilheteria. Mais uma vez a fórmula deu certo. Com a curiosidade aguçada, mundo afora o público correu em massa para conferir de perto tudo que se dizia sobre Instinto Selvagem. O filme rendeu nada menos que 52 milhões de dólares em seus três primeiros fins de semana apenas nas telas americanas (*Nota: Levando-se em conta a correção monetária das últimas três décadas, este foi um valor muito significativo para a época).


O longa é um misto de filme se ação com suspense erótico e psicológico, onde o sexo e a atração sexual dos personagens tem importante papel. Tudo começa com o assassinato de um ex-astro do rock, já na violenta sequência de abertura. Então tem início a elucidação do crime pelo investigador da polícia Nick Curran (Michael Douglas, já escolado em filmes polêmicos, como Atração Fatal de 1987). As primeiras pistas são um picador de gelo com marcas de sague (a arma do crime), uma echarpe de seda amarrada à cabeceira da cama, e sinais de uma longa e turbulenta noite romântica.

As investigações indicam o envolvimento de três mulheres no caso. A primeira suspeita é Catherine Tramell (Sharon Stone), uma escritora de sucesso cujos assassinatos narrados em seus livros começam a acontecer na vida real. A outra suspeita é Roxy (Leilani Sarelle), a provocante e ciumenta namorada de Catherine. E por fim, a Drª Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), uma psicóloga da polícia, com quem o próprio Nick costuma consultar. O investigador movimenta-se então em um território particularmente perturbador para suas convicções, especialmente as sexuais. A personagem mais fascinante da trama é a bissexual e sedutora Catherine, que afronta a polícia com seu comportamento ambíguo, arrogante e independente. Durante um depoimento ela é capaz de deixar os investigadores e policiais de boca aberta. Literalmente. Vestindo uma exígua minissaia, ela deixa bem claro que não é adepta do uso de calcinhas ao provocativamente cruzar as pernas diante de um bando de homens atônitos com a cena.


Para a altíssima voltagem erótica da cruzada de pernas (imagem símbolo do filme) foi decisivo o desempenho e a entrega de Sharon Stone, muito sedutora e sexy. “Fiquei fascinada pela personagem, especialmente pela sua falta de limites”, explicou a atriz. “Catherine é extremamente cruel e disposta a qualquer coisa a fim de atrair Nick para sua teia. Ela o seduz com a mente. Com sua sexualidade. E quando percebe que algo a cativa, fica ainda mais excitada”.

Dirigido por Paul Verhoeven (de Robocop e Vingador do Futuro) Instinto Selvagem mostra o poder da sedução que induz paixões cegas e destrutivas. O filme é basicamente uma história de amor inusitada e deformada. Apesar das inconsistências e furos do roteiro, que exigem a tolerância do espectador, a trama como um todo se mostra fascinante em suas armadilhas de sedução para também enredar o público.

Assista o trailer: Instinto Selvagem

(Texto originalmente publicado no jornal “Correio Lageano” (Lages – SC) / Agosto de 1992)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 2 de julho de 2019

“Gladiator – O Desafio”: lutando pela vida


GLADIATOR – O DESAFIO (Gladiator, EUA, 1992)
Direção: Rowdy Herrington
Elenco: Cuba Gooding Jr., James Marshall, Robert Loggia, Brian Dennehy

Por vezes o cinema consegue antecipar fatos que a realidade vem a confirmar posteriormente. Os recentes (1991/1992) conflitos de natureza racial que abalaram Los Angeles já haviam explodido antecipadamente nas telas. Filmes como New Jack City; Colors, As Cores da Violência; Os Donos da Rua e Faça a Coisa Certa abordavam, cada um a seu modo, aspectos diversos do contexto social e as tensões raciais no território norte-americano, situando de um lado os brancos e de outro lado todos demais, ou seja, os negros, hispânicos, asiáticos, etc.

Num ambiente com tantos conflitos raciais as explosões de violência já fazem parte do cotidiano. Neste aspecto o boxe, quando retratado pelo cinema, frequentemente é utilizado como um símbolo metafórico dos problemas sociais que afloram nos subúrbios das grandes cidades. Luta-se para (sobre) viver. Vive-se para lutar.


Tommy Riley (James Marshall, o motociclista do seriado Twin Peaks) é um boxeador do violento circuito das lutas clandestinas, onde o grande triunfo é sair vivo do ringue. A trajetória do jovem lutador é o tema central de Gladiator – O Desafio. Sem condições financeiras de continuar morando em um bairro classe média de Chicago, Tommy e seu pai são obrigados a mudar-se para um bairro degradado da metrópole. Lá o domínio é das gangues de rua, cujos membros também participam de lutas de boxe ilegais, organizadas pelo empresário Jimmy Horn (Brian Dennehy) que trata seus pugilistas como autênticos gladiadores modernos. A chegada de Tommy atrai a atenção do empresário, não só por suas habilidades, mas especialmente pelo fato dele ser branco, o que o coloca de imediato numa posição de adversário imediato dos demais lutadores negros e hispânicos. O dilema moral de Tommy Riley surge quando ele deve enfrentar no ringue o seu melhor amigo, o campeão (negro) Lincoln, interpretado por Cuba Gooding Jr., o protagonista de Os Donos da Rua.

Apesar das realistas e violentas cenas de luta, Gladiator – O Desafio se apresenta basicamente como um libelo contra a violência, uma denúncia à forma de vida dos jovens das áreas urbanas menos favorecidas, lutando pelo “pão de cada dia” enquanto sonham escapar da pobreza. “Tommy é como a maioria dos adolescentes”, afirma o diretor Rowdy Herrington. “Tem muita raiva dentro de si, mas também muito talento. O filme narra um rito de passagem, uma história na qual o protagonista encontra-se diante de um problema insolúvel, e ao resolvê-lo, torna-se homem.”

Assista o trailer: Gladiator – O Desafio

(Texto originalmente publicado no jornal “Correio Lageano” (Lages – SC) / Julho de 1992)

Jorge Ghiorzi

domingo, 30 de junho de 2019

“Desejos”: triângulo amoroso no divã


DESEJOS (Final Analysis, EUA, 1992)
Direção: Phil Joanou
Elenco: Richard Gere, Kim Basinger, Uma Thurman, Eric Roberts

O divã já não é mais o mesmo. De local reservado para aqueles que buscam apoio de psicanalistas, ele passou a ser utilizado como pretexto ou cenário para cenas de amor e paixão envolvendo terapeutas e pacientes. Pelo menos é isto que alguns filmes recentes (1992) produzidos em Hollywood mostram. Este é o caso, por exemplo, de O Príncipe das Marés, dirigido e estrelado por Barbra Streisand, e o polêmico Instinto Selvagem, de Paul Verhoeven. Os dois filmes trazem psiquiatras (femininas) que acabam por namorar seus pacientes, substituindo (ou seria confundindo?) as confidências terapêuticas por confidências amorosas. O código de ética da profissão recomenda que não haja relacionamento amoroso entre psiquiatras / psicanalistas e os pacientes que tratam. Mas, quem disse que esta ética do mundo real deveria ser seguida à risca no mundo da ficção de Hollywood? Afinal, amores proibidos sempre esquentam os romances, seja nas telas ou nos livros.

Outro exemplar desta safra erótico-psiquiátrica é este Desejos, onde o personagem central é um psiquiatra as voltas com os problemas de uma paciente muito complicada e não menos misteriosa. A figura do psiquiatra, na maior parte dos filmes, sempre é tratada como uma personagem secundária. Raramente são protagonistas de uma história, pois sua presença nas tramas normalmente se limita a sequências isoladas, com impacto limitado no desenvolvimento dos enredos.

Mas este não é o caso de Desejos. Aqui o psiquiatra Isaac Barr, vivido por Richard Gere, é o foco central da narrativa deste thriller de suspense. Ele é um respeitado e bem sucedido profissional que ao tentar interpretar os sonhos de uma paciente, Diana Baylor (Uma Thurman), acaba por se envolver com a irmã, Heather Evans (Kim Basinger). À medida que as confidências de Diana vão sendo relatadas no divã, o psiquiatra, a pretexto de melhor conhecer a paciente, inicia um relacionamento com a irmã. O que parecia apenas um caso amoroso acaba por se transformar numa trama de adultério e assassinato. Neste triângulo de paixões nem tudo é como parece ser à primeira vista. As aparências enganam e os desejos não confessados jogam os personagens num jogo perigoso.


Este filme marca a volta à telas da dupla Richard Gere e Kim Basinger. A primeira vez foi em Sem Perdão (No Mercy, 1986), cujo resultado ficou aquém do que se poderia esperar levando-se em conta peso dos nomes. Naquela oportunidade o encontro das duas estrelas não provocou o frisson esperado, ficaram devendo. Este desejo foi então adiado para este Desejos, que teve mais sorte no resultado final. Este é um eficiente trabalho do jovem realizador Phil Joanou, que dirigiu também o documentário Rattle & Hum com o grupo U2. Sem dúvida a química da dupla desta vez funcionou plenamente. Muito contribuiu para isto o roteiro ágil e cheio de reviravoltas, escrito por Wesley Strick, o mesmo de Cabo do Medo e Batman – O Retorno.

Assista o trailer: Desejos

(Texto originalmente publicado no jornal “Correio Lageano” (Lages – SC) / Julho de 1992)

Jorge Ghiorzi

domingo, 31 de março de 2019

“Paris, Texas”: pé na estrada


As recentes mortes do ator Harry Dean Stanton e do escritor, roteirista e também ator Sam Shepard oportuniza a revisão de um dos mais significativos trabalhos cinematográficos de ambos. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1984, Paris, Texas (Paris, Texas), dirigido por Wim Wenders, conta com a participação de Stanton como protagonista e o roteiro coescrito por Shepard (em parceria L. M. Kit Carson) a partir de uma obra de sua autoria.

Produção europeia filmada em locações nos Estados Unidos, Paris, Texas é um dos filmes mais icônicos do alemão Wim Wenders, um cineasta que manifesta especial interesse na cultura e nas paisagens norte-americanas, constantemente presentes em sua filmografia. Neste aspecto pode-se dizer que esta produção é uma espécie de releitura temática de um trabalho anterior, Alice nas Cidades, realizado exatamente uma década antes, também ambientado no cenário norte-americano de pequenas cidades, estradas, paisagens desoladas e busca da identidade.


Road movie por excelência, Paris,Texas já inicia sob o signo do movimento. Ao som dos acordes melancólicos da guitarra de Ry Cooder, na sequência de abertura somos apresentados ao personagem Travis Henderson (Harry Dean Stanton) vagando sem rumo sob o sol inclemente do deserto texano, próximo à fronteira do México. Resgatado à beira da morte por inanição, Travis é levado pelo irmão Walt (Dean Stockwell) para morar em Los Angeles com sua família. Lá ele encontra seu filho Hunter de sete anos, abandonado pela mãe, Jane (Nastassja Kinski). O próprio Travis não via o filho há quatro anos, quando também abandonou a família depois uma crise no casamento e colocou o pé na estrada sem projeto de retorno. Inicialmente estranhos um ao outro, após um tempo Travis e Hunter reconstroem os laços emocionais partidos entre pai e filho. O fortalecimento da relação entre os dois desperta por fim o desejo de reencontrar Jane para reconstituir a família desfeita.

Diz a máxima que nunca retornamos iguais de uma viagem. Ela inevitavelmente nos transforma. Wim Wenders certamente compartilha este pensamento e isto fica muito evidenciado no citado Alice nas Cidades e de maneira especial em Paris, Texas. A alternância de cenários reflete - ou induz – os estados de alma do solitário Travis. Uma trajetória que percorre paisagens desérticas, subúrbios da classe média de Los Angeles, movimentadas freeways e arranha-céus que aço e vidro em Houston, pontua as transformações do protagonista que transitam da catatonia ao tédio existencial, chegando por fim a reconquista da autoestima.


O vazio do deserto representa o vazio emocional de Travis. Sua imagem, isolado no meio da planície árida, sem mapa nem bússola, é um símbolo do homem em desespero que se perde para tentar reencontrar-se. A fuga dos problemas o colocou na estrada, longe de tudo e de todos. Mas a negação da sua própria história pessoal é pesada demais para carregar na bagagem emocional. Esperava encontrar no isolamento do deserto uma resposta para suas frustrações. O que descobre é um abismo emocional que só amplia suas angústias. O providencial resgate e posterior reencontro com o filho colocam os fatos inexoráveis da vida nos trilhos e trazem alguma lucidez para seus propósitos. Há uma missão a cumprir: reconfigurar o núcleo familiar, ainda que sua presença já nem seja mais necessária. O objetivo é assegurar pelo menos alguma chance de felicidade para o filho junto à mãe. Um ponto final para uma história de amor e paixão que estava inconclusa.


O ponto central e enigmático de Paris, Texas é a mãe, figura que deflagra a ação e movimenta os personagens. A imagem de Jane é trazida da memória através da magia das imagens em movimento do cinema. Somos apresentados a ela por pequenos vídeos domésticos de Super-8, de um tempo onde reinava o amor e a harmonia entre Travis e Jane. Testemunho de um fragmento de história preservada em filme. Interpretada por uma Nastassja Kinski no auge da beleza e prestígio, a presença de Jane domina o filme de ponta a ponta, ainda que esteja realmente em cena em apenas alguns minutos. Mas como esquecer a pungente sequência do diálogo acerto de contas entre Travis e Jane. Ambos isolados (!), sem jamais se tocarem fisicamente, separados por um vidro, como dois prisioneiros de uma relação com marcas profundas de mágoas, rancores e decepções mútuas.

Lá se vão mais de 30 anos desde o lançamento e Paris, Texas segue irretocável como um drama sensível e sincero. O atento olhar estrangeiro de Wim Wenders revela o retrato de uma América altamente industrializada e consumista que promove o individualismo e desestimula o humanismo.

Assista o trailer: Paris, Texas

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em setembro de 2017)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

“O Deserto dos Tártaros”: batalha sem glória



Considerada por muito tempo uma obra impossível de filmar, o romance “O Deserto dos Tártaros”, escrito por Dino Buzzati, desde sua publicação em 1940 figurou como objeto de desejo de muitos cineastas. Michelangelo Antonioni foi um deles. Ao longo dos anos tentativas foram feitas, mas logo sucumbiram diante das dificuldades de transposição para as telas de um texto que transita do alegórico ao fantástico, passando pelo terreno fértil das reflexões existenciais.

Portanto, foi com alguma surpresa, e certa desconfiança, que surgiu na metade dos anos 70 um projeto de adaptação liderado pelo diretor italiano Valerio Zurlini. Lançado em 1976, O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari) foi o último filme de Zurlini, um cineasta de poucos filmes e grande prestígio junto à crítica, que na fase final de sua carreira assumiu um cinema abertamente político.


A exasperante passagem do tempo que consome a existência do homem em busca de um sentido para a vida é a matriz sobre a qual se constrói a trajetória do personagem central de O Deserto dos Tártaros. No período do Império Italiano (que durou até 1946) o jovem Giovanni Drogo (Jacques Perrin) sonha com uma carreira longa e gloriosa no exército. Mas o começo da vida militar não foi nada promissor. Ao ser nomeado tenente, Drogo foi designado para a longínqua e remota Fortaleza Bastiani, localizada na fronteira do Império, à beira de um deserto, dominado pelas tribos nômades dos tártaros, sob a ameaça iminente de ataque.

A monotonia, a rotina e a rigidez dos regulamentos militares consomem pouco a pouco o entusiasmo de Drogo. A espera por um ataque dos tártaros, que nunca se consuma, coloca à prova as convicções pessoais e as razões de uma missão que parece sem sentido. Dias, meses e anos transcorrem, e nada acontece. O tempo passa e uma vida de realizações pessoais, como família, filhos e amigos, deixa de ser vivida na plenitude, em nome de uma subserviência ao Estado. Por fim, resta a Drogo apenas a camaradagem militar de seus companheiros de farda em um universo que se basta por si só.


O clima mezzo alegórico, mezzo metafísico que permeia a narrativa de Dino Buzzati no romance, encontra eco na primorosa direção de arte e cenografia da produção, um achado a parte. Filmado em locação numa fortaleza real situada na fronteira do Irã com o Afeganistão, O Deserto dos Tártaros transforma a construção, e seu entorno desabitado, em “personagem” onipresente da narrativa. A paisagem desolada, monocromática, de aspecto lunar, forma um tecido geográfico único, onde o deserto e as paredes da fortaleza se mimetizam, a ponto de pouco discernirmos onde inicia um ou termina o outro. A exposição dos espaços geográficos do filme permite ainda outra leitura, onde os espaços exteriores da fortaleza representam as forças da natureza em seu estado bruto, e as sequências interiores da fortaleza, dominados pelo elemento humano, expressam conflitos existenciais, com suas complexidades, contradições e fraquezas morais.

Assim como a força e permanência dos ventos molda a paisagem das montanhas e das paredes rochosas da fortaleza, a passagem do tempo também molda o caráter, as convicções e os comportamentos dos personagens em O Deserto dos Tártaros. As verdades de ontem são substituídas pelas novas verdades de hoje. No plano externo, das ações, pouco acontece. Na dimensão interior é que ocorrem as grandes transformações.


Os tártaros, inimigos tão temidos no início da narrativa, por fim acabam quase como inimigos desejados. Que venha logo a batalha de uma vez por todas, para justificar toda uma existência em busca de sentido. Mais do que encarar a perspectiva de morte, o batalhão almeja, no seu limite, a imortalidade através da glória de uma guerra que o destino teima em não conceder. Os fantasmas que assombram o fim da vida justificam qualquer ato. Inclusive o próprio desejo de morte.

O elenco desta superprodução italiana conta com grandes nomes do cinema europeu: Vittorio Gassman; Giuliano Gemma; Philippe Noiret; Francisco Rabal; Fernando Rey; Jean-Loius Trintignant e Max Von Sydow. A trilha sonora foi composta pelo mestre Ennio Morricone. O Deserto dos Tártaros recebeu os prêmios David di Donatello de Melhor Filme, Melhor Diretor e prêmio especial para Giuliano Gemma. O realizador Valerio Zurlini recebeu também o prêmio Nastro d’Argento de Melhor Diretor, concedido pelos jornalistas cinematográficos da Itália.

Assista o trailer: O Deserto dos Tártaros

      (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em setembro de 2017)

Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

“Railander”: a difícil arte da sobrevivência


Nos anos 80 a aventura de fantasia e ação Highlander – O Guerreiro Imortal foi sucesso nas salas de cinema e nas videolocadoras. O filme contava a história de um guerreiro escocês do século XVI, descendente de um clã que tinha a estranha peculiaridade de nunca morrer, por mais fortes e poderosos fossem seus inimigos.

Pois parece que um representante deste clã está aqui, entre nós. Mais precisamente em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. A identificação da origem se dá pelo nome, aqui batizado com a brasileiríssima grafia de Railander, e a afamada imortalidade, ainda que esteja presente simbolicamente, se manifesta de forma menos literal, ficando apenas no nível existencial, da sobrevivência mesmo.

E ficamos por aqui nestes paralelos. Esqueça a fantasia e a mitologia presentes na narrativa do Highlander oitentista. No curta-metragem Railander, escrito e dirigido por Alexandre Derlam, entra em cena nossa realidade cotidiana e todas suas nuances sociais contemporâneas. A matéria prima que constrói o suporte dramático do roteiro está fortemente ancorada em temas candentes que estão na ordem do dia: o bullying, o assédio moral e o abuso de autoridade. O forte apelo da atualidade destes temas, aliado a uma história bem contada, potencializa o interesse na narrativa do curta.


Railander (Alex Kanoff) trabalha como caixa de um pequeno supermercado de uma cidade do interior. Calado, tímido e retraído, ele não se enquadra nos padrões esperados pela sociedade. Railander convive com uma rotina tediosa envolvendo abuso de poder do proprietário do supermercado (Carlos Busato) e bullyings frequentes por estar acima do peso. Seu melhor amigo é um colega de trabalho (Ângelo Sérgio), que ao perceber o dilema existencial que consome Railander o estimula a reagir para virar o jogo daquela opressão permanente. A oportunidade da virada acontece de maneira fortuita, quando seu chefe se envolve em um conflito com o também autoritário juiz local. Ao perceber que até os poderosos também caem, Railander assume uma nova postura frente à vida. Reinventa-se e assume pela primeira vez os destinos da sua própria existência.

O curta-metragem de Alexandre Derlam trata essencialmente de relações pessoais e seus opressores mecanismos de controle social, manifestos pelo preconceito e abuso moral sobre minorias. A realidade vivida pelo personagem central é facilmente identificável e, infelizmente, muito comum em diversas esferas do nosso cotidiano. Assim como qualquer indivíduo introspectivo, o mundo interior de Railander é rico de significados e compreensão da realidade onde está inserido. A questão é o quanto ele se mostra incapaz de manifestar ações que possam efetivamente construir uma nova realidade.


Por ser tão corriqueira, a situação vivida por Railander desperta imediatamente no espectador o sentimento da empatia. Sofremos e torcemos por ele. Não é sem um senso de justiça, portanto, que acompanhamos o início da virada do personagem. Neste aspecto muito feliz é a direção de cena e a direção de arte no processo de desenvolvimento da personagem central. Alguns sinais de que a revolta de Railander está se processando são lançados ao longo do filme. Algo está acontecendo abaixo da superfície visível.  Em dado momento ele ensaia frente ao espelho uma explosão de ira contra sua condição. Mais adiante, aparece lendo um livro que aborda a construção da figura mítica do Herói. E por fim, nos momentos cruciais e decisivos da história, veste uma camiseta preta com a imagem do personagem “Justiceiro” dos quadrinhos (simbolizado por uma caveira), como a nos mostrar que houve uma transformação interior que se exterioriza de forma explícita. Um novo Railander estava nascendo, capaz de desafiar o antigo chefe e afrontar os garotos que diariamente faziam chacota com ele no trajeto até o trabalho.

Premiada em diversos festivais de cinema, a comédia dramática Railander é uma pequena fábula moderna que tem muito a nos dizer sobre o tempo em que vivemos.

Assista o trailer: Railander

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

“Corrida Silenciosa”: jardins do espaço


Em tempos de discussões sobre escassez de recursos naturais que assegurem a sustentabilidade da vida humana no planeta Terra é oportuno o exercício de olhar um pouco para o passado. Mais precisamente para 45 anos atrás. Naquela época foi lançado um filme de ficção científica cuja revisão faz total sentido nos dias de hoje. Em 1972 o longa Corrida Silenciosa (Silent Running) chegou aos cinemas num período muito emblemático. Vivia-se um período de pré-Crise do Petróleo (que estouraria pra valer um ano depois), com acalorados debates sobre fontes alternativas de energia que fossem sustentáveis com o meio ambiente. Foi nesse tempo que a consciência ecológica começou a ser difundida e incorporada pelas grandes massas, além dos ambientes acadêmicos e científicos.

Corrida Silenciosa, primeiro trabalho de direção de Douglas Trumbull, é um produto típico daquele momento. Escrito (entre outros roteiristas) por Michael Cimino (creditado como Mike), o filme é uma fábula ecológica que abraça a causa com paixão, idealismo e poesia.

Num futuro incerto, mas absolutamente plausível, as florestas e a vida selvagem foram extintas na Terra, vítimas dos efeitos climáticos combinados com a ação devastadora da exploração humana dos recursos naturais não renováveis. Os problemas de fome, desemprego e doenças estavam resolvidos. Porém, o fim do nosso bioma era uma questão de tempo. Para preservar o pouco do que ainda resta da flora e fauna uma frota de naves cargueiro carrega para o espaço os últimos exemplares de plantas, árvores e alguns poucos pequenos animais silvestres, confinados em gigantescas estufas com ambiente controlado. Uma espécie de Arca de Noé com florestas nativas. Um Éden bíblico.


A bordo de uma destas naves, chamada Valley Forge, está uma tripulação de quatro pessoas. Um deles é o botânico Freeman Lowell (Bruce Dern), um apaixonado pela natureza e grande entusiasta da missão espacial. Idealista, sonhador e cheio de boas intenções, Lowell está em constante atrito com seus companheiros de viagem. Indiferentes aos objetivos nobres do projeto, eles só pensam em acabar a missão e voltar logo para casa. E este momento chega quando o comando da missão na Terra decide abortar o projeto (por razões não esclarecidas) e ordena a destruição das cúpulas com os espécimes vegetais e animais preservados. Inconformado com o fim do projeto Lowell se rebela e decide agir por conta própria para salvar o que resta do seu sonho.

Corrida Silenciosa é um libelo ecológico que ainda faz total sentido nos dias de hoje. Aliás, muito mais sentido do que 45 anos atrás. Seu recado é claro e objetivo, ainda que por vezes demonstre alguma ingenuidade de propósitos. Como estrutura narrativa o filme de Douglas Trumbull se recente de uma trama mais elaborada e o conflito do protagonista, que se estende do início ao fim sem grandes questionamentos, deixa pouco espaço para explorar suas reais motivações. Nada sabemos de sua história, seu passado ou relações. Apenas somos apresentados à sua utopia, e com ela embarcamos em sua jornada pessoal. Vale atentar para o significado metafórico que se esconde sob o nome do personagem principal, Freeman, o “homem livre”.


Normalmente os filmes de ficção científica privilegiam a frieza dos cenários e a eficiência da tecnologia, quase sempre apresentando robôs e androides como personagens duros e sem emoção. Pois Corrida Silenciosa quebra esta regra. A bordo da Valley Forge, além dos quatro tripulantes, também há três pequenos robozinhos, responsáveis por pequenas tarefas de manutenção e reforma da nave. O detalhe é que esses simpáticos robozinhos são muito amigáveis com os seres humanos. Demonstram sentimentos e empatia por vezes até comoventes com seus “donos”. Criativos pelo design e convincentes em ação, os robozinhos são resultado de uma bem sucedida experiência de utilizar atores reais amputados (sem as pernas) para manipular e dar “vida” às máquinas.

Com sua mensagem explicitamente ecológica Corrida Silenciosa carrega ecos do espírito do movimento hippie que pregava (entre outras coisas) um retorno dos homens às coisas básicas da natureza. Este espírito meio “hiponga” se manifesta tanto pelos discursos de Lowell quanto por seu figurino. Mas o grande vínculo com o “flower-power”, sem dúvida, são as canções de Joan Baez que pontuam a narrativa em momentos chave.


Ao ser lançada em 1968, a ópera espacial 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, resgatou o interesse da ficção científica no cinema ao apontar as imensas potencialidades do gênero para além de uma mera aventura de entretenimento, como era usual até então. A ficção científica podia sim tratar de temas mais profundos, questionando a humanidade frente aos desafios de sua própria sobrevivência como espécie, sempre sob uma perspectiva filosófica. Corrida Silenciosa, lançado quatro anos após, é fruto direto da obra de Kubrick. Não apenas por tratar também de assuntos de fundo existencial, mas por uma outra questão mais objetiva. O supervisor dos inovadores efeitos especiais e fotográficos de 2001, Douglas Trumbull, estreou na direção de longas-metragens com esta produção que conquistou, ao longo dos anos, o status de filme cult.

Nunca é demais falar de ecologia. E o cinema sabe muito bem disso. Volta e meia os filmes de ficção científica voltam ao tema. Vale lembrar que em 2009 foi lançado Avatar, de James Cameron, que também tinha essa pegada ecológica, provando que o tema segue sempre atual e oportuno.

Assista o trailer: Corrida Silenciosa

      (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em julho de 2017)

Jorge Ghiorzi