sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Expresso do Amanhã”: viagem sem fim e sem volta


Não é nenhuma novidade a vocação de Hollywood para “importar” cineastas de outras nacionalidades. Além de revitalizar o ambiente criativo doméstico, a estratégia também serve para dar uma face mais internacional para o cinema que está cada vez mais globalizado, quase uma “commodity”. No período do pós-guerra o interesse estava nos cineastas europeus. Mais recentemente foi a vez dos realizadores latino americanos, particularmente os mexicanos. Agora, a bola da vez vem da Ásia. Mais claramente da Coréia do Sul.

Após o sucesso mundial de O Hospedeiro, lançado em 2006, o sul-coreano Joon-ho Bong entrou no radar dos grandes estúdios. Seu trabalho seguinte, Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) já ganhou ares de produção internacional, pois é falada em inglês, conta com elenco predominantemente americano e inglês, e foi financiada parcialmente com capital europeu e norte-americano.


Baseado em uma graphic novel francesa chamada “Le Transperceneige”, de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, “Expresso do Amanhã” é uma ficção científica que segue a trilha das distopias ao retratar uma Terra em perigo de extinção, tomada por uma nova era glacial que ameaça a vida no planeta. Neste cenário apocalíptico os poucos sobreviventes estão confinados a bordo de um trem (maravilha da tecnologia de ponta) que segue ininterruptamente em viagem, sem parar já por 17 anos. Esta é a única forma de assegurar a sobrevivência num meio ambiente que passou a ser hostil aos serem humanos.

No interior do trem os “passageiros” são apartados de acordo com seu status social. Os pobres vivem em condições miseráveis, nos últimos vagões da composição férrea. A classe dominante privilegiada vive uma boa vida de conforto e luxo nos vagões da dianteira. Até que chega o dia da revolta dos oprimidos que decidem entrar em combate contra a injustiça social que se reproduz no interior daquele trem. O líder dos revoltados, Curtis (interpretado por Chris Evans, o “Capitão América” em pessoa), é a figura mítica que vai alterar a ordem estabelecida naquele microcosmo


Todos os elementos de um típico filme de ação hollywoodiano estão identificáveis em Expresso do Amanhã. O herói, o antagonista, o conflito, a missão e a adrenalina, o combustível que move o enredo. Porém, por tratar-se de uma produção dirigida por um coreano, tudo isto se apresenta sob uma ótica diversa do modelo hegemônico, com uma abordagem que denuncia um novo olhar para filmes de gênero. A ênfase ao movimento, à energia cinética, cadenciada na edição clipada, marca registrada do cinema de ação produzido em Hollywood, está presente na tela. Mas há algo mais em cena. Uma sensibilidade incomum no gênero. Isto fica muito evidente no tratamento dado às personagens. Sim, às personagens, no plural. O foco da narrativa não está concentrado apenas no protagonista. Os personagens secundários também são relevantes e capturam o interesse do espectador.

A cenografia também merece registro, ao propor um modelo de ação 100% confinada no espaço estrito de um trem, por si só uma premissa estimulante. O extrato social da pirâmide de classes (castas) é engenhosamente bem resolvido na concepção estilizada de cada um dos vagões que compõem  o comboio. São relíquias arqueológicas de um mundo que sucumbiu ao apocalipse, preservadas no espaço-tempo do universo em movimento do trem que não pode interromper sua viagem eterna, como um tubarão que jamais pode parar de nadar.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em setembro de 2015)

Jorge Ghiorzi

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