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A animação Flow (Straume, 2024)
surpreendeu e fez história em sua terra natal, a Letônia — e também no mundo
todo, diga-se de passagem. Com este filme, o país conquistou suas primeiras
indicações ao Oscar desde a independência da União Soviética, em 1990. Um marco
significativo não apenas para o cinema letão, mas também para a indústria
cinematográfica internacional, que viu neste filme uma narrativa única e
visualmente deslumbrante. A produção dirigida por Gints Zilbalodis foi indicada
em duas categorias: Melhor Animação e Melhor Filme Internacional (portanto, é
um concorrente do brasileiro Ainda Estou Aqui).
A realidade apresentada
em Flow nos transporta para um cenário pós-apocalíptico, onde o ser humano está completamente ausente. As razões para esse desaparecimento
permanecem incertas e não são explicitamente justificadas ao longo da
narrativa. No entanto, essa falta de explicação não se torna um obstáculo para
a experiência do espectador; pelo contrário, reforça o caráter universal e
atemporal da fábula que o filme se propõe a contar. Em seu lugar, a natureza e
os animais assumem o protagonismo, criando um mundo onde a vida flui de forma
orgânica e desimpedida, livre das interferências humanas.
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Quando as águas avançam como
um dilúvio bíblico, engolindo a terra e apagando todos os vestígios da
civilização humana, o cenário em que a história se desenrola reflete um planeta
inteiramente transformado. Embora a ação se concentre em uma localidade específica,
a sensação é de que o mundo todo foi redesenhado por essa catástrofe, restando
apenas um vasto oceano e a incerteza do que ainda permanece. Nesse contexto, um
gato solitário e confuso vê-se ameaçado pela elevação das águas. Em busca de
abrigo, ele encontra um barco que serve de refúgio não apenas para si, mas
também para um grupo de animais tão desorientados quanto ele: um cão, uma
capivara, um lêmure e uma garça. Unidos pela necessidade de sobrevivência, cada
um deles representa, de certa forma, um arquétipo humano ou papéis sociais que
assumimos diante de uma coletividade.
A sobrevivência, no entanto,
exige mais do que encontrar um lugar seguro: é preciso superar medos,
preconceitos e diferenças. Para o gato – real protagonista da história -, que
sempre temeu a água, o desafio é duplo: enfrentar suas próprias fobias e
aprender a conviver com seres tão diferentes. Nessa jornada imprevisível, eles
descobrem que suas diferenças, longe de serem um obstáculo, podem se tornar sua
maior força.
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A animação Flow captura a essência da linguagem
cinematográfica, remetendo ao primitivo cinema narrativo da transição do século
XIX para o XX, quando a experiência mágica do cinema era construída sem a
utilização de vozes ou diálogos. A história era contada apenas por meio da
música e do poder sugestivo das imagens em sucessão, criando uma conexão única
com o espectador. O filme é uma prova clara de que o grande
trunfo para o sucesso de uma produção ainda reside em suas ideias e propósitos,
e não em um orçamento milionário. Em Flow, os recursos de produção não
foram o foco principal: o projeto foi realizado com uma fração do custo das
grandes produções dos estúdios, contando com uma equipe reduzida, equipamentos
quase domésticos e softwares de computação gratuitos e de código aberto.
Flow é uma fábula que
transcende o mundo animal, servindo como um espelho reflexivo para nós, humanos
racionais. Através de uma narrativa aparentemente simples, o filme mergulha em
temas profundos e universais, como o valor da amizade, a força da compaixão e a
importância de compreender e respeitar as diferenças. Em um mundo onde a
divisão e o conflito parecem ser a norma, a história nos apresenta uma
convivência improvável entre opostos, desafiando expectativas e mostrando que a
harmonia pode surgir mesmo quando tudo indica o contrário.
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O filme não apenas emociona, mas também
provoca reflexões sobre como lidamos com o 'outro' em nossas vidas. A relação
entre os personagens, marcada por desafios e superações, simboliza a
possibilidade de união em meio à diversidade. É um lembrete poderoso de que,
muitas vezes, são justamente as diferenças que nos tornam mais completos e
capazes de evoluir. Flow é, portanto, uma obra que vai além do
entretenimento, oferecendo uma mensagem urgente e necessária para os tempos
atuais.
Os personagens centrais de Flow são
animais, mas esqueça as versões antropomorfizadas que costumamos ver em
produções da Disney, Pixar e afins. Aqui, um gato é simplesmente um gato, um
cão é apenas um cão, e uma capivara não passa de uma capivara. O filme não
humaniza seus personagens; em vez disso, ele os apresenta em sua natureza mais
pura e instintiva. A trama se desenvolve a partir da interação de um pequeno
grupo interracial, composto por espécies que, na natureza, estariam em lados
opostos da cadeia alimentar. No entanto, diante de uma situação extrema, eles
são forçados a encontrar maneiras de conviver — literalmente, todos estão no
mesmo barco.
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O que emerge dessa dinâmica é um retrato
fascinante de como o instinto de sobrevivência e o senso de preservação da
espécie podem falar mais alto do que as hierarquias naturais. O filme nos
convida a refletir sobre como, em momentos de crise, as diferenças podem ser
superadas em prol de um objetivo comum Flow é, portanto, uma narrativa
que vai além do óbvio, explorando não apenas a luta pela vida, mas também a
complexidade das relações, mesmo entre aqueles que, em outras circunstâncias,
seriam inimigos naturais. A
manifestação do instinto animal é retratada no enxuto roteiro da animação com
graça e sensibilidade, elevando a história para um nível de comoção que não
deixa o público indiferente. Seja ele adulto ou infantil, pois a mensagem é
universal.
Flow é mais do que uma simples narrativa
sobre sobrevivência; é uma meditação poética sobre resiliência, adaptação e a
força da coletividade. Através de sua estética visual deslumbrante e de uma
narrativa minimalista, o filme convida o espectador a refletir sobre a
fragilidade da civilização humana e a capacidade da natureza de se regenerar.
Assista ao trailer: Flow
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com /
jghiorzi@gmail.com
@janeladatela
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