Um dos clássicos mais icônicos do Cinema Expressionista alemão, Nosferatu
foi realizado por F. W. Murnau em 1922. O roteiro foi baseado no romance
“Drácula” (1897) de Bram Stoker, no entanto, por problemas legais – a viúva de
Stoker negou a venda dos direitos quando a produção já estava em andamento - o
filme ganhou um novo título e o nome dos personagens foi alterado. O conde
Drácula foi rebatizado como conde Orlok, por exemplo. A primeira versão cinematográfica
oficial só chegaria às telas em 1931, no longa-metragem “Drácula”, produzido
pela Universal em Hollywood com Bela Lugosi no papel-título. Quase 60 anos
depois do Nosferatu original, em 1979 o diretor alemão Werner Herzog,
conterrâneo de Murnau, lançou uma sóbria e soturna refilmagem estrelada por
Klaus Kinski, Isabelle Adjani e Bruno Ganz, que no Brasil ganhou o subtítulo de
O Vampiro da Noite.
O vampiro que nunca morre renasce mais uma vez
no cinema, pouco mais de um século após a primeira aparição em celuloide. A
nova versão traz a assinatura de Robert Eggers que já mostrou afinidade com o
universo do horror e da fantasia fantástica em filmes como A Bruxa, O
Farol e O Homem do Norte. O primeiro ponto a se ressaltar aqui é que
Nosferatu (2024) não é um simples remake em grande escala do
clássico do cinema mudo. Trata-se mais de uma releitura cheia de imaginação do
sombrio território das sombras – já conhecido à exaustão - temperado com altas
doses de sedução e abordagem erótica que aflora à pele com calafrios e desejo.
O entrecho da trama é bastante conhecido. Na
Alemanha do século XIX o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicholas Hoult)
viaja até o isolado castelo do conde Orlock (Bill Skarsgard), localizado na
Transilvânia, para fechar o contrato de venda de uma mansão na fictícia Wisborg,
cidade portuária alemã onde mora. O objetivo do conde é viver próximo da sua
paixão, Ellen Hutter (Lily-Rose Depp), esposa de Thomas. A chegada do
amaldiçoado conde vampiro em busca da amada traz também o caos e o horror para
a população.
Nesta versão o rigorismo formal de Eggers
presta um tributo ao Expressionismo alemão ao trabalhar os elementos
característicos do movimento: luzes, sombras, contrastes e distorções espaciais
na cenografia. Além do que, como reverência definitiva ao filme de 1922, ainda
preserva os nomes dos personagens, desconsiderando os nomes utilizados no
romance de Bram Stoker. Não temos, portanto, Drácula, Jonathan, Mina, Van
Helsing ou Renfield.
Nosferatu transita entre o mundo das sombras, manifesto por recorrentes pesadelos,
e o mundo real das coisas, onde o Mal assume o corpo físico de Orlok. O
desequilíbrio destes mundos inicia quando Jonathan acessa o território do conde
amaldiçoado, quase como concedendo uma permissão para a criatura invadir o
universo dos pobres mortais. Há neste aspecto uma espécie de permuta de
posições, como houvesse um troca de identidades. O ponto comum deste
espelhamento é a figura de Ellen, objeto do desejo de ambos. Estabelece-se
então um perigoso e mortal triângulo amoroso. O roteiro concede uma expansão da
trama original propondo novas camadas de complexidades nas relações do trio de
protagonistas.
Usualmente interpretado como uma história amor
que chega aos limites do folhetinesco em versões anteriores da obra de Bram
Stoker, além de outras representações dos vampiros em versões pop da indústria
cultural, neste Nosferatu a abordagem vai além da mera paixão romântica
ao assumir uma conotação abertamente sexual com apelo carnal. Estamos, portanto,
diante de uma história de adultério, sexy, visceral e extrema. O terreno explorado
aqui é o do desejo e da paixão no contexto de uma história de terror gótico. O
amor tóxico de Orlok por sua amada revela uma parte desconhecida da natureza da
personalidade de Ellen, que horrorizada se divide entre a repulsa e a entrega.
Somente um derradeiro orgasmo visceral pode dar conta do paradoxo que invade
seu coração.
A imagem da figura do insepulto Nosferatu /
Orlok é uma das mais conhecidas da história do cinema de horror. Reinterpretar
esteticamente este personagem clássico certamente foi um dos maiores desafios
de Robert Eggers. A decisão foi reinterpretar na totalidade o visual do
vampiro. Não há nada de beleza sedutora aristocrática, nem pele clara e
smokings alinhados nesta nova representação. A lógica da concepção é de que se
trata essencialmente de um cadáver, portanto, carnes podres, inchadas e
repulsivas fazem sentido na composição do personagem. Nesta construção o visual
do conde assume mais um aspecto demoníaco do que propriamente vampiresco.
Completa o quadro a cavernosa voz de Orlok que traz ecos inconfundíveis do
sotaque gutural característico da inflexão de Bela Lugosi (com um “r” muito
carregado), fruto da ascendência romena e conhecimento parcial da língua
inglesa. O resultado é uma espécie de Darth Vader das trevas.
Nosferatu arrebata os sentidos com uma versão exuberante de narrativa
sólida e consistente. É em igual medida assustador e sedutor em seu mergulho
profundo nas sombras da mente de seus personagens protagonistas. Ao explorar novos
caminhos, inexistentes tanto na obra original quanto nas diversas versões
cinematográficas, Robert Eggers acerta em todas suas decisões estéticas que
elevam o filme a uma condição de produto artístico de excelência.
Assista ao trailer: Nosferatu
Jorge Ghiorzi
Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de
Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do
Sul)
Contato: janeladatela@gmail.com /
jghiorzi@gmail.com
@janeladatela