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quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Nosferatu: a sedução do horror

 

Um dos clássicos mais icônicos do Cinema Expressionista alemão, Nosferatu foi realizado por F. W. Murnau em 1922. O roteiro foi baseado no romance “Drácula” (1897) de Bram Stoker, no entanto, por problemas legais – a viúva de Stoker negou a venda dos direitos quando a produção já estava em andamento - o filme ganhou um novo título e o nome dos personagens foi alterado. O conde Drácula foi rebatizado como conde Orlok, por exemplo. A primeira versão cinematográfica oficial só chegaria às telas em 1931, no longa-metragem “Drácula”, produzido pela Universal em Hollywood com Bela Lugosi no papel-título. Quase 60 anos depois do Nosferatu original, em 1979 o diretor alemão Werner Herzog, conterrâneo de Murnau, lançou uma sóbria e soturna refilmagem estrelada por Klaus Kinski, Isabelle Adjani e Bruno Ganz, que no Brasil ganhou o subtítulo de O Vampiro da Noite

O vampiro que nunca morre renasce mais uma vez no cinema, pouco mais de um século após a primeira aparição em celuloide. A nova versão traz a assinatura de Robert Eggers que já mostrou afinidade com o universo do horror e da fantasia fantástica em filmes como A Bruxa, O Farol e O Homem do Norte. O primeiro ponto a se ressaltar aqui é que Nosferatu (2024) não é um simples remake em grande escala do clássico do cinema mudo. Trata-se mais de uma releitura cheia de imaginação do sombrio território das sombras – já conhecido à exaustão - temperado com altas doses de sedução e abordagem erótica que aflora à pele com calafrios e desejo. 


O entrecho da trama é bastante conhecido. Na Alemanha do século XIX o agente imobiliário Thomas Hutter (Nicholas Hoult) viaja até o isolado castelo do conde Orlock (Bill Skarsgard), localizado na Transilvânia, para fechar o contrato de venda de uma mansão na fictícia Wisborg, cidade portuária alemã onde mora. O objetivo do conde é viver próximo da sua paixão, Ellen Hutter (Lily-Rose Depp), esposa de Thomas. A chegada do amaldiçoado conde vampiro em busca da amada traz também o caos e o horror para a população.

Nesta versão o rigorismo formal de Eggers presta um tributo ao Expressionismo alemão ao trabalhar os elementos característicos do movimento: luzes, sombras, contrastes e distorções espaciais na cenografia. Além do que, como reverência definitiva ao filme de 1922, ainda preserva os nomes dos personagens, desconsiderando os nomes utilizados no romance de Bram Stoker. Não temos, portanto, Drácula, Jonathan, Mina, Van Helsing ou Renfield. 


Nosferatu transita entre o mundo das sombras, manifesto por recorrentes pesadelos, e o mundo real das coisas, onde o Mal assume o corpo físico de Orlok. O desequilíbrio destes mundos inicia quando Jonathan acessa o território do conde amaldiçoado, quase como concedendo uma permissão para a criatura invadir o universo dos pobres mortais. Há neste aspecto uma espécie de permuta de posições, como houvesse um troca de identidades. O ponto comum deste espelhamento é a figura de Ellen, objeto do desejo de ambos. Estabelece-se então um perigoso e mortal triângulo amoroso. O roteiro concede uma expansão da trama original propondo novas camadas de complexidades nas relações do trio de protagonistas. 

Usualmente interpretado como uma história amor que chega aos limites do folhetinesco em versões anteriores da obra de Bram Stoker, além de outras representações dos vampiros em versões pop da indústria cultural, neste Nosferatu a abordagem vai além da mera paixão romântica ao assumir uma conotação abertamente sexual com apelo carnal. Estamos, portanto, diante de uma história de adultério, sexy, visceral e extrema. O terreno explorado aqui é o do desejo e da paixão no contexto de uma história de terror gótico. O amor tóxico de Orlok por sua amada revela uma parte desconhecida da natureza da personalidade de Ellen, que horrorizada se divide entre a repulsa e a entrega. Somente um derradeiro orgasmo visceral pode dar conta do paradoxo que invade seu coração.  


A imagem da figura do insepulto Nosferatu / Orlok é uma das mais conhecidas da história do cinema de horror. Reinterpretar esteticamente este personagem clássico certamente foi um dos maiores desafios de Robert Eggers. A decisão foi reinterpretar na totalidade o visual do vampiro. Não há nada de beleza sedutora aristocrática, nem pele clara e smokings alinhados nesta nova representação. A lógica da concepção é de que se trata essencialmente de um cadáver, portanto, carnes podres, inchadas e repulsivas fazem sentido na composição do personagem. Nesta construção o visual do conde assume mais um aspecto demoníaco do que propriamente vampiresco. Completa o quadro a cavernosa voz de Orlok que traz ecos inconfundíveis do sotaque gutural característico da inflexão de Bela Lugosi (com um “r” muito carregado), fruto da ascendência romena e conhecimento parcial da língua inglesa. O resultado é uma espécie de Darth Vader das trevas.
  

Nosferatu arrebata os sentidos com uma versão exuberante de narrativa sólida e consistente. É em igual medida assustador e sedutor em seu mergulho profundo nas sombras da mente de seus personagens protagonistas. Ao explorar novos caminhos, inexistentes tanto na obra original quanto nas diversas versões cinematográficas, Robert Eggers acerta em todas suas decisões estéticas que elevam o filme a uma condição de produto artístico de excelência.

Assista ao trailer: Nosferatu


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

@janeladatela