segunda-feira, 25 de setembro de 2017
quarta-feira, 20 de setembro de 2017
“Mãe!”: mistérios da criação
A polêmica com o novo filme de Darren Aronofsky
surgiu já em sua primeira exibição no recente Festival de Veneza, encerrado há
menos de um mês. E só tem crescido onde quer que seja exibido. Mãe!
(Mother!) já nasceu com este marco de discórdia. Ou amam, ou odeiam. E na zona
cinzenta intermediária as discussões são as mais acaloradas dos últimos anos.
De fato o filme mobiliza, incomoda, provoca e subverte expectativas. Nos casos
mais extremos, dá um nó mental nos mais desavisados. Portanto, ao encarar a
obra, abra a mente e embarque nesta viagem.
Na superfície, no primeiro nível narrativo, Mãe! conta a história de um casal,
interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, recém-casados que estão morando
num enorme casarão em reforma, isolado, distante da cidade. Ele é um poeta com
bloqueio criativo. Ela, grávida, se dedica aos afazeres domésticos. A chegada
inesperada de um visitante desconhecido (Ed Harris), em busca de um quarto para
alugar, coloca em desequilíbrio a harmonia do casal. A situação se torna
realmente incontornável quando aparece também a esposa do visitante (Michelle
Pfeiffer, retornando ao cinema) e culmina logo em seguida com a chegada dos
filhos adultos. Neste ponto a narrativa rompe todas as amarras que
precariamente a mantinham dentro de uma perspectiva minimamente realista. Pelos
olhos estarrecidos da personagem de Jennifer Lawrence somos testemunha de
episódios surrealistas e caóticos que mostram dezenas de pessoas literalmente
invadindo a casa como incontroláveis zumbis, em sequências que muito lembram o
clássico A Noite dos Mortos Vivos, de
George A. Romero.
Apesar da referência ao filme de Romero, Mãe! não é um filme convencional de
terror, nem de terror psicológico, como Cisne
Negro, do mesmo Aronofsky, ainda que eventualmente possa despertar
sensações de genuíno horror. A verdade é que em seus momentos iniciais
parece estarmos diante de um drama de suspense, mas logo o espectador abandona
esta primeira leitura, pois algo se mostra fora do lugar nas regras do gênero. Mãe! é uma perturbadora e radical fábula
que mistura fantasia, delírio e devaneio, com forte apelo religioso e
existencial.
Com Mãe!
Darren Aronofsky aprofunda e radicaliza a experiência de cinema expressionista já
exercida no citado Cisne Negro. Assim
como naquele, a expressão dos sentimentos interiores de um personagem altera,
distorce e recria a realidade circundante percebida. O novo trabalho de
Aronofsky assume deliberadamente uma fantasia metafísica que quebra as leis
naturais e subverte as constantes de tempo e espaço. Cabe ao espectador aceitar
a proposta antes de mergulhar na imensidão de símbolos e analogias que vão
surgindo num ritmo tão intenso que exige esforço redobrado na elaboração dos
significados.
Profundamente alegórico e metafórico, Mãe! pode ser encarado como uma parábola
com conotações bíblicas e a chave para sua compreensão pode ser uma pequena
pista nos créditos finais. Neles o personagem de Javier Bardem é creditado como
“Him” (“Ele”, assim mesmo, com letra maiúscula). Se levarmos isto em conta, as
coisas começam a fazer algum sentido tangível e ganhar coerência. “Ele”
(Bardem), o poeta em sua luta interior para escrever o poema perfeito, seria o
Criador. Artista todo-poderoso que inspira veneração de fãs – súditos. A “Mãe”
(Jennifer Lawrence), mãe da humanidade, que carrega no ventre o mistério da
criação, fruto do Criador, zela pelo bem-estar da família e da paz no lar. E
por fim, a “Casa”, imagem símbolo do Paraíso, isolada no Jardim do Éden, a
morada do primeiro casal, Adão e Eva. Ponto comum que equilibra este
triunvirato simbólico (Criador – Mãe – Paraíso) é a simbologia do Sagrado Coração
de Jesus, transubstanciado na imagem de uma pedra/diamante venerada pelo
personagem de Javier Bardem.
Darren Aronofsky, que cresceu dentro da cultura
judaica, mas não se considera um religioso, já abordou abertamente temas religiosos
em dois filmes: A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), uma versão controversa da história
bíblica da Arca de Noé que salva da destruição a vida no planeta Terra. Aliás,
o ativismo ambiental e ecológico é outra das facetas do realizador, cujos temas
subjacentes também são encontrados em Mãe!,
uma obra complexa e perturbadora que paga o preço da incompreensão pela ousadia
obsessiva do realizador.
domingo, 17 de setembro de 2017
“A Sangue Frio”: crime e castigo
Inspirado na história real de dois ex-detentos que em
1959 assassinam uma família no interior do Kansas (EUA), o escritor e
dramaturgo Truman Capote escreveu em 1966 o livro “A Sangue Frio”. O romance
marcou época por desenvolver uma fórmula inovadora de escrita mesclando
jornalismo com literatura. O livro, produzido após um longo processo de
reveladoras entrevistas com os protagonistas do episódio, é basicamente uma grande
e minuciosa reportagem romanceada, que valeu à Truman Capote o título de
criador do “romance-verdade” (nonfiction
novel). O livro marcou época, revolucionou o mercado editorial e
influenciou fortemente uma nova geração de escritores.
O impacto do romance-verdade foi tamanho que
inevitavelmente acabou atraindo também o interesse do cinema. O formato
narrativo da obra de Truman Capote era muito próximo a de um roteiro de cinema.
O livro se mostrava perfeito para virar um filme. E assim ocorreu. Apenas um
ano após o lançamento da publicação, o filme chegou às telas. No entanto,
apesar de Capote também escrever para o cinema (roteirizou, por exemplo, “Os
Inocentes” em 1961, baseado na obra de Henry James), na adaptação do seu
próprio livro ele não consta como roteirista.
A Sangue Frio (In cold blood) foi escrito e dirigido por Richard Brooks, realizador
de filmes como Sementes da Violência
(1955); Gata em Teto de Zinco Quente
(1958); Os Profissionais (1966); À Procura de Mr. Goodbar (1977), com
Diane Keaton e O Homem com a Lente Mortal
(1982), com Sean Connery. Filmado em austero e sóbrio preto-e-branco, com
locações na região onde ocorreu o crime, a adaptação cinematográfica apresenta
uma atmosfera semi-documental, bastante próxima à proposta original da obra
literária de Capote. Reforçando ainda o enfoque realista, a produção contou com
apoio da própria força policial do Kansas, na reconstituição dos fatos, e
consultoria profissional de psiquiatras que auxiliaram na abordagem e
construção dos perfis psicológicos dos assassinos retratados no filme. A maior
veracidade possível orientou a realização de A Sangue Frio.
Dois ex-condenados, em liberdade condicional, Perry
Smith (Robert Blake) e Dick Hickock (Scott Wilson) decidem invadir a casa da
família Clutter, numa cidadezinha do Kansas, em busca de um suposto cofre com
10 mil dólares. A dica foi dada por um antigo parceiro de cela. Seria um
trabalho fácil e muito rentável. Sem riscos. Ao invadir a casa, descobrem que
não há nenhum cofre, e muito menos dinheiro. Acabam roubando apenas 43 dólares
e, decepcionados pelo desfecho, decidem num impulso matar toda a família que
foi mantida refém. Assassinam cruelmente, a tiros e facadas, o pai, a mãe e o
casal de filhos, sem uma motivação racional. Após um período de pequenos golpes
para conseguir dinheiro para fugirem para o México, a dupla é detida em Las
Vegas por estarem dirigindo um carro roubado.
Os primeiros minutos do filme de Richard Brooks são
conduzidos por uma eficiente montagem paralela que mostra a tranquila rotina da
família Clutter alternada com o encontro, os preparativos e a viagem dos
assassinos rumo ao assalto premeditado, que terminaria num inesperado banho de
sangue. A situação é clássica: dois outsiders,
com antecedentes criminais, tentando o último grande golpe para mudar
definitivamente de vida, deixando para trás seus problemas, frustrações e
fracassos. O que poderia ser a redenção de uma existência sem perspectivas acabou
por selar o destino de dois desajustados sociais. A afinidade de propósitos de Perry
e Dick, que por vezes insinuam uma latente relação homossexual, supre o vazio
existencial dos dois, provenientes de famílias disfuncionais e problemáticas.
Uma chave para a compreensão da atitude dos
criminosos é fornecida em dado momento por um dos personagens envolvidos na
investigação. Ele traz uma teoria psicanalítica do perfil de condenados que
afirma que todo assassino sem motivação clara e definida é fruto de lares com
famílias problemáticas. É esta a tese que embasa o livro de Truman Capote, e
também o filme de Richard Brooks.
Apesar da história ser contada a partir do encontro
da dupla para um último golpe, fica flagrante a predominância do protagonismo
do personagem Perry Smith, magnificamente interpretado por Robert Blake, que
nos anos 70 virou astro da TV ao protagonizar a série policial “Baretta”. Numa
macabra coincidência, que reforça a máxima de que “a vida imita a arte”, o ator
foi acusado de matar a esposa no início dos anos 2000. Robert Blake chegou a
ser detido e posteriormente, em 2005, foi declarado inocente.
Na apresentação de Perry Smith em A Sangue Frio, logo na sua primeira
cena, ele aparece descendo de um ônibus, carregando as bagagens e uma enorme
caixa na costas. Uma apresentação poderosamente gráfica da psicologia do
personagem. Perry carrega metaforicamente sob os ombros o peso de todos seus
problemas, tal uma cruz de penitência que deve conduzir em todo seu calvário. Ambos,
Dick e Perry, são filhos de famílias problemáticas. As relações tormentosas com
seus pais e mães representam origem, fonte e causa de seus fracassos pessoais.
Aos poucos, ao longo da narrativa, são apresentadas pequenas passagens que
explicitam as difíceis relações familiares envolvidas. Por decisão de Richard
Brooks (autor do roteiro, vale lembrar), foi incluída uma longa sequência em
flashback, de forte caráter edipiano, ausente no livro de Truman Capote. Nesta
sequência é mostrado um episódio de conflito familiar de forte impacto
emocional, presenciado por Perry quando criança, que haveria de afetar sua
futura mente criminosa.
Após enfrentar o Júri e a condenação de culpados, a
dupla de assassinos recebe a pena máxima de enforcamento. Já no corredor da
morte, à beira da caminhada para o cadafalso, Perry Smith profere um poderoso monólogo,
quase uma auto-confissão de seu fracasso como ser humano. A fala,
magistralmente construída por Richard Brooks, e interpretada com intensidade por
Robert Blake, acontece em frente a uma janela enquanto chove. As gotas de chuva
correm pela janela e projetam sobras no rosto de Perry, que parece chorar (sem
fazê-lo de fato) enquanto fala. Um momento de humanismo ante o pesadelo do
enforcamento eminente.
A
Sangue Frio é um filme de
estilo clássico, sóbrio, pesado e perturbador. Incômodo por vezes, frio quase
sempre, mas nunca manipulador das emoções.
Assista o trailer: A Sangue Frio
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em dezembro de 2016)
quinta-feira, 14 de setembro de 2017
“Feito na América”: herói bandido
Alguns dos episódios mais marcantes e icônicos da
geopolítica mundial dos anos 80 foram resgatados em Feito na América
(American Made) para contar a história real, pra lá de idealizada, do piloto
norte-americano Barry Seal que fez fortuna atuando ao mesmo tempo como
informante da CIA e traficante de drogas. Assim, assuntos como a Era Reagan, o
escândalo Irã-Contras e o cartel de Medelín, sem esquecer a Guerra Fria que se
expandia pela América Central, voltam a ser lembrados, porém, sob uma ótica um
tanto picaresca, mais adequada a um veículo de entretenimento como esta
produção estrelada por Tom Cruise.
Feito
na América marca o reencontro do
diretor Doug Liman com o astro Tom Cruise, depois da interessante ficção
científica No Limite do Amanhã de 2014.
Quem acompanha as séries Narcos e Conexão Escobar já deve ter ligado o
nome à pessoa. O piloto Barry Seal já apareceu como personagem secundário nas
duas produções. Agora, ele chega às telas na condição de protagonista de uma
produção hollywoodiana padrão.
Sinal dos tempos. Se há pouco mais de 30 anos Tom
Cruise conquistou os céus - e a fama - como o piloto de caça aéreo Maverick em Top Gun – Ases Indomáveis, desta vez volta
a pilotar aviões encarnando um cínico anti-herói. No final dos anos 70 Barry
Seal era piloto de voos comerciais da TWA. A vida era boa, tranquila, sem
sobressaltos. Mas faltava um tanto de emoção. A oportunidade de uma vida mais
estimulante surge quando recebe um convite para trabalhar secretamente a
serviço da CIA fazendo voos rasantes para fotografar supostas bases militares
em países da América Central, apoiados pela então União Soviética, inimigo
mortal do Tio Sam. Além de faturar um bom dinheiro extra, era diversão em
estado puro. Sem dizer que estaria trabalhando em prol da grande nação
norte-americana. Não que isto importasse realmente de fato, mas era uma boa
desculpa para aceitar uma atividade clandestina que estava às margens da
ilegalidade.
E este limite logo seria ultrapassado. Poderosos de
traficantes colombianos, dentre eles um iniciante chamado Pablo Escobar, identificam
naquele ousado piloto de aviões de pequeno porte uma oportunidade de ouro para transportar
drogas para os EUA sem despertar grandes suspeitas. Objetivo e pragmático como
sempre, Barry Seal aceita o desafio. Afinal, se estiver no inferno, abrace o
capeta. Assim inicia a ascensão, glória e desgraça de um agente duplo a serviço
de dois patrões.
Em sua versão cinematográfica o Barrry Seal
interpretado por Tom Cruise se mostra efetivamente como um inocente útil. A
motivação de ganho financeiro não parece estar na justificativa para suas
atitudes. O clásico self made man, que
está na raiz de uma nação capitalista como a norte-americana, não é o objeto de
análise de Feito na América. O que
sobressai é apenas o desejo – quase adolescente – do personagem em confrontar
as autoridades, ou mesmo o Sistema, se avançarmos no conceito. Não há razões
morais que problematizem a personalidade de Barry Seal, que, em última análise,
é um grande alienado político. Ao fim e ao cabo o que resta é apenas um grande
vazio. Um hiato de banalidades inconsequentes.
A usual câmera nervosa de Doug Liman se mostra
muito presente e seu efeito seduz a atenção do espectador dando a entender que
o que assistimos é mais e melhor do que de fato é: uma bolha de sabão, bela e
oca. Um detalhe de interesse brazuca: a fotografia é do brasileiro-paraguaio
César Charlone. Em sendo um veículo para a brilhatura individual de Tom Cruise,
duas coisas são certas: suas clássicas corridinhas e a onipresença do astro em 99%
das cenas.
Por tratar de uma história verídica Feito na América traz algum interesse
para quem deseja saber mínima e superficialmente o que foram aqueles anos 80 em
termos de política externa dos EUA. Mas não jogue todas as suas fichas nesta
versão da história. Apenas divirta-se com ela.
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