quarta-feira, 4 de outubro de 2017

“Blade Runner 2049”: ser ou não ser


As notícias sobre uma provável sequência de Blade Runner sempre apavoraram os fãs mais ardorosos do clássico de 1982 dirigido por Ridley Scott, mas por razões diversas os projetos nunca seguiam adiante. O maior temor da legião de admiradores era macular a memória de um estimado objeto de culto cinematográfico, apresentando como resultado final uma aventura tola e inconsequente que não fizesse jus às qualidades inquestionáveis do filme original. O histórico de inúmeras sequências desastrosas justificava o receio. A paz entre os fãs só foi restabelecida quando o nome do diretor canadense Denis Villeneuve (Sicário e A Chegada) foi anunciado como o diretor da produção que agora chega às telas, 35 anos após o lançamento do primeiro Blade Runner. Ridley Scott desta vez atua apenas como produtor executivo.

Situado na mesma Califórnia um tanto distópica e super povoada do primeiro filme, Blade Runner 2049 transcorre 30 anos depois dos acontecimentos originais. Neste meio tempo aconteceu o “blecaute” da Terra, que estabeleceu uma nova ordem no planeta. A Corporação Tyrell, criadora dos replicantes da série Nexus 6, faliu e foi incorporada pelas indústrias do poderoso empresário Niander Wallace (Jared Letto), que desenvolve uma novíssima geração de replicantes, os Nexus 8. Um deles é o policial blade runner “K” (Ryan Gosling) que atua como caçador de replicantes rebeldes foragidos para a polícia de Los Angeles. Ao cumprir uma missão, “K” acaba se deparando com um segredo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade. Em sua jornada de descobertas, “K” busca as resposta com um antigo blade runner, desparecido há três décadas: Rick Deckard (Harrison Ford).


Ao surgir no início da década de 80, Blade Runner estabeleceu novos padrões para a ficção científica no cinema. Seja em termos estéticos, seja em aspectos conceituais, ou mesmo por sua ousada abordagem de narrativa policial de “filme noir” com ambientação futurista retro, o filme de Ridley Scott, num primeiro momento não foi devidamente considerado e percebido. Pagou o preço, por vários anos, de um fracasso de crítica e bilheteria por ter sido um filme a frente de seu tempo. Mas, este mesmo tempo só fez bem ao filme. Ao longo dos anos o filme foi reavaliado e hoje ocupa o status de obra absolutamente referencial no gênero.

O novo Blade Runner chega, portanto, sem a obrigação de ser necessariamente inovador – este trabalho já foi feito. Denis Villeneuve é apenas o herdeiro deste legado, e seu compromisso foi apenas expandir o conceito original e explorar as possibilidades que a computação gráfica oferece. Isto possivelmente explique porque Blade Runner 2049 seja mais explicitamente uma aventura de ficção científica hard do que uma narrativa policial de pretensões existenciais como o primeiro filme. As facilidades da tecnologia digital facilitam este caminho, pois, virtualmente tudo é possível. Lembremos que o filme de Ridley Scott foi uma das últimas produções do gênero realizadas ainda de forma analógica, sem efeitos de CGI.


Questões filosóficas tipo “quem somos”, “de onde viemos”, “para onde iremos”, presentes no primeiro filme, voltam aqui, de maneira mais profunda, com acréscimo de especulações sobre as consequências do desenvolvimento da inteligência artificial para o futuro da humanidade. A autonomia e o livre arbítrio das criaturas “humanas” criadas por manipulação genética podem fugir do controle dos seus criadores? Este é um tema de fundo que faz o tecido narrativo de Blade Runner 2049.

O policial interpretado por Ryan Gosling carrega todos os clássicos questionamentos de quem busca sua verdadeira identidade. O aforismo grego diz: “Conhece-te a ti mesmo”. É este questionamento que move as ações do blade runner “K”, nem que para isto tenha que quebrar os níveis de hierarquia e agir por conta própria. Neste aspecto, significativos são os acordes da composição “Pedro e o Lobo” (de Sergei Prokofiev) que acompanham “K”. Esta clássica história infantil conta a história de Pedro, que, ao contrariar os conselhos do avô, se depara com um lobo feroz na floresta. Uma quebra de regra que pode custar sua vida.


Apesar de suas quase três horas de duração, Blade Runner 2049 deixa a impressão de que havia muita história para contar, mas nem todas suas pontas foram suficientemente bem resolvidas. O personagem de Niander Wallace é um destes pontos nebulosos. Mal delineado, com motivações um tanto indefinidas, o personagem interpretado por Jared Letto não disse exatamente a que veio, e lá pelas tantas desparece da história. Talvez o personagem tivesse mais sorte, e outro destino, se fosse interpretado por David Bowie, que foi a primeira escolha para o papel. De qualquer maneira, Blade Runner 2049 cumpre com muitos méritos – especialmente os técnicos - a tarefa bastante difícil de suceder a produção original. Não parece estarmos diante de um novo cult, e nem sugere que seja o tipo de filme que se deseje ardorosamente assistir repetidamente – como o clássico de Ridley Scott -, mas não resta dúvida que abriu caminho para uma nova franquia que pode estar se configurando.

Assista o trailer: Blade Runner 2049

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

“O Tesouro de Sierra Madre”: maldição do ouro


O diretor John Huston, notório aventureiro e bon vivant, sempre se mostrou um grande conhecedor da alma humana, especialmente das suas virtudes e fraquezas. Um fino, e invariavelmente cínico, exame do caráter intrínseco de suas personagens é facilmente identificado em seus filmes. Em última análise, John Huston era um grande entendido desta espécie chamada “ser humano”, com suas contradições, ambições e desejos secretos. Já em seu primeiro filme como diretor, o clássico noir Relíquia Macabra (Maltese Falcon, 1941), após anos atuando apenas como roteirista em Hollywood, Huston desenvolve este olhar revelador para a verdadeira natureza interior das personagens.

No final dos anos 30, quando leu o livro “O Tesouro de Sierra Madre”, do misterioso e recluso escritor B. Traven, John Huston se encantou com a obra e achou que daria um ótimo filme. A história envolvia temas muito estimados por Huston: viagem, aventura, um país estrangeiro (México) e distância das zonas urbanas. Este deveria ser o segundo filme dirigido por ele, mas problemas legais relacionados à compra dos direitos (incluindo a dificuldade de negociar com B. Traven apenas por cartas) e também de produção, acabaram por adiar o filme por vários anos. O projeto só foi retomado em 1946, após John Huston voltar da Segunda Guerra Mundial, onde serviu ao exército norte-americano.


A história transcorre no ano de 1925, após a revolução mexicana, quando o México ainda vivia um período de instabilidade social, com bandoleiros levando terror às populações dos pequenos vilarejos. Sem trabalho, multidões de mexicanos pobres vagam em busca de oportunidades para ganhar alguns trocados. Mas, terras “sem esperança” costumam se oferecer como terras de oportunidade para quem se dispõe a arriscar e ousar.

É neste ambiente de poucas perspectivas no interior do México que vivem dois forasteiros norte-americanos, Fred Dobbs (Humphrey Bogart) e Bob Curtin (Tim Holt). Literalmente mendigando pelas ruelas da pequena cidadezinha empoeirada, os dois ficam sabendo por um antigo garimpeiro (Walter Huston, pai de John Huston) que há grande possibilidade de existir ouro em abundância nas montanhas próximas da cidade. Seduzidos por esta possibilidade de enriquecimento, os três se unem e partem em busca do sonho dourado.


Prestes a completar 70 anos, O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre) foi lançado em 1948, e apesar de não ter sido um sucesso de bilheteria em sua época, o filme de John Huston sempre foi prestigiado pela crítica e pela indústria de Hollywood. No ano seguinte a produção concorreu ao Oscar e conquistou os prêmios de Diretor, Roteiro Adaptado e Ator Coadjuvante (Walter Huston). Além de ser reconhecido como um dos melhores trabalhos da extensa filmografia de John Huston, O Tesouro de Sierra Madre aparece na 30ª posição da lista do American Film Institute (AFI) com os 100 melhores filmes norte-americanos de todos os tempos.

Na trama de Relíquia Macabra, que tratava da essencialmente da ambição humana, um dos personagens definiu que a ilusão é a “matéria prima da qual são feitos os sonhos”. Sob certos aspectos, O Tesouro de Sierra Madre seguiu uma abordagem semelhante, agregando, entretanto, um novo e poderoso ingrediente: a ganância. É ela que move o personagem principal, Dobbs, interpretado por Bogart. O velho garimpeiro, com a sabedoria adquirida pelos muitos anos vividos, disse que o ouro provoca uma maldição: muda o caráter dos homens. O cético Dobbs desdenha da afirmação, alegando que é imune à sedução destruidora do brilho dourado das pepitas de ouro. Tudo o que ele desejava era conseguir alguns poucos milhares de dólares para viver uma boa vida até morrer. Nada mais.


O Tesouro de Sierra Madre é acima de tudo uma pequena fábula moral contada num espetáculo cinematográfico típico da Hollywood dos anos 30/40. Narrativa clássica, grandes estrelas, trilha sonora pomposa, com ação, aventura, tiroteios e suspense. Pacote completo. Ainda que em certas passagens possa parecer hoje um tanto ingênuo e forçado (a presença de um bandoleiro meio bufão, e simplificações em determinadas situações cruciais, como o surgimento de um quarto personagem e seu destino), não fossem algumas pequenas transgressões, seria um filme absolutamente corriqueiro. Mas John Huston soube fugir desta armadilha. Em primeiro lugar, filmou quase totalmente em locações reais no México, o que não era nem um pouco usual na Hollywood da época. Esta decisão foi fundamental para estabelecer a necessária verossimilhança da história. Outro acerto do realizador foi a escalação de Humphrey Bogart num papel totalmente inesperado para um ator reconhecido por viver galãs durões de bom coração. Com uma interpretação visceral, Bogart entregou-se totalmente ao personagem, mas foi, no entanto, criminosamente esquecido no Oscar daquele ano.

O Tesouro de Sierra Madre é um clássico estimado da cinematografia norte-americana, que, no entanto, parece ter perdido um pouco de seu vigor com a passagem das décadas.

Assista o trailer: O Tesouro de Sierra Madre

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

Agnaldo, Perigo à Vista (1969)



quarta-feira, 20 de setembro de 2017

“Mãe!”: mistérios da criação


A polêmica com o novo filme de Darren Aronofsky surgiu já em sua primeira exibição no recente Festival de Veneza, encerrado há menos de um mês. E só tem crescido onde quer que seja exibido. Mãe! (Mother!) já nasceu com este marco de discórdia. Ou amam, ou odeiam. E na zona cinzenta intermediária as discussões são as mais acaloradas dos últimos anos. De fato o filme mobiliza, incomoda, provoca e subverte expectativas. Nos casos mais extremos, dá um nó mental nos mais desavisados. Portanto, ao encarar a obra, abra a mente e embarque nesta viagem.

Na superfície, no primeiro nível narrativo, Mãe! conta a história de um casal, interpretado por Jennifer Lawrence e Javier Bardem, recém-casados que estão morando num enorme casarão em reforma, isolado, distante da cidade. Ele é um poeta com bloqueio criativo. Ela, grávida, se dedica aos afazeres domésticos. A chegada inesperada de um visitante desconhecido (Ed Harris), em busca de um quarto para alugar, coloca em desequilíbrio a harmonia do casal. A situação se torna realmente incontornável quando aparece também a esposa do visitante (Michelle Pfeiffer, retornando ao cinema) e culmina logo em seguida com a chegada dos filhos adultos. Neste ponto a narrativa rompe todas as amarras que precariamente a mantinham dentro de uma perspectiva minimamente realista. Pelos olhos estarrecidos da personagem de Jennifer Lawrence somos testemunha de episódios surrealistas e caóticos que mostram dezenas de pessoas literalmente invadindo a casa como incontroláveis zumbis, em sequências que muito lembram o clássico A Noite dos Mortos Vivos, de George A. Romero.


Apesar da referência ao filme de Romero, Mãe! não é um filme convencional de terror, nem de terror psicológico, como Cisne Negro, do mesmo Aronofsky, ainda que eventualmente possa despertar sensações de genuíno horror. A verdade é que em seus momentos iniciais parece estarmos diante de um drama de suspense, mas logo o espectador abandona esta primeira leitura, pois algo se mostra fora do lugar nas regras do gênero. Mãe! é uma perturbadora e radical fábula que mistura fantasia, delírio e devaneio, com forte apelo religioso e existencial.

Com Mãe! Darren Aronofsky aprofunda e radicaliza a experiência de cinema expressionista já exercida no citado Cisne Negro. Assim como naquele, a expressão dos sentimentos interiores de um personagem altera, distorce e recria a realidade circundante percebida. O novo trabalho de Aronofsky assume deliberadamente uma fantasia metafísica que quebra as leis naturais e subverte as constantes de tempo e espaço. Cabe ao espectador aceitar a proposta antes de mergulhar na imensidão de símbolos e analogias que vão surgindo num ritmo tão intenso que exige esforço redobrado na elaboração dos significados.


Profundamente alegórico e metafórico, Mãe! pode ser encarado como uma parábola com conotações bíblicas e a chave para sua compreensão pode ser uma pequena pista nos créditos finais. Neles o personagem de Javier Bardem é creditado como “Him” (“Ele”, assim mesmo, com letra maiúscula). Se levarmos isto em conta, as coisas começam a fazer algum sentido tangível e ganhar coerência. “Ele” (Bardem), o poeta em sua luta interior para escrever o poema perfeito, seria o Criador. Artista todo-poderoso que inspira veneração de fãs – súditos. A “Mãe” (Jennifer Lawrence), mãe da humanidade, que carrega no ventre o mistério da criação, fruto do Criador, zela pelo bem-estar da família e da paz no lar. E por fim, a “Casa”, imagem símbolo do Paraíso, isolada no Jardim do Éden, a morada do primeiro casal, Adão e Eva. Ponto comum que equilibra este triunvirato simbólico (Criador – Mãe – Paraíso) é a simbologia do Sagrado Coração de Jesus, transubstanciado na imagem de uma pedra/diamante venerada pelo personagem de Javier Bardem.


Darren Aronofsky, que cresceu dentro da cultura judaica, mas não se considera um religioso, já abordou abertamente temas religiosos em dois filmes: A Fonte da Vida (2006) e Noé (2014), uma versão controversa da história bíblica da Arca de Noé que salva da destruição a vida no planeta Terra. Aliás, o ativismo ambiental e ecológico é outra das facetas do realizador, cujos temas subjacentes também são encontrados em Mãe!, uma obra complexa e perturbadora que paga o preço da incompreensão pela ousadia obsessiva do realizador.

Assista o trailer: Mãe!

Jorge Ghiorzi

Terremoto (1974)



domingo, 17 de setembro de 2017

“A Sangue Frio”: crime e castigo


Inspirado na história real de dois ex-detentos que em 1959 assassinam uma família no interior do Kansas (EUA), o escritor e dramaturgo Truman Capote escreveu em 1966 o livro “A Sangue Frio”. O romance marcou época por desenvolver uma fórmula inovadora de escrita mesclando jornalismo com literatura. O livro, produzido após um longo processo de reveladoras entrevistas com os protagonistas do episódio, é basicamente uma grande e minuciosa reportagem romanceada, que valeu à Truman Capote o título de criador do “romance-verdade” (nonfiction novel). O livro marcou época, revolucionou o mercado editorial e influenciou fortemente uma nova geração de escritores.

O impacto do romance-verdade foi tamanho que inevitavelmente acabou atraindo também o interesse do cinema. O formato narrativo da obra de Truman Capote era muito próximo a de um roteiro de cinema. O livro se mostrava perfeito para virar um filme. E assim ocorreu. Apenas um ano após o lançamento da publicação, o filme chegou às telas. No entanto, apesar de Capote também escrever para o cinema (roteirizou, por exemplo, “Os Inocentes” em 1961, baseado na obra de Henry James), na adaptação do seu próprio livro ele não consta como roteirista.


A Sangue Frio (In cold blood) foi escrito e dirigido por Richard Brooks, realizador de filmes como Sementes da Violência (1955); Gata em Teto de Zinco Quente (1958); Os Profissionais (1966); À Procura de Mr. Goodbar (1977), com Diane Keaton e O Homem com a Lente Mortal (1982), com Sean Connery. Filmado em austero e sóbrio preto-e-branco, com locações na região onde ocorreu o crime, a adaptação cinematográfica apresenta uma atmosfera semi-documental, bastante próxima à proposta original da obra literária de Capote. Reforçando ainda o enfoque realista, a produção contou com apoio da própria força policial do Kansas, na reconstituição dos fatos, e consultoria profissional de psiquiatras que auxiliaram na abordagem e construção dos perfis psicológicos dos assassinos retratados no filme. A maior veracidade possível orientou a realização de A Sangue Frio.

Dois ex-condenados, em liberdade condicional, Perry Smith (Robert Blake) e Dick Hickock (Scott Wilson) decidem invadir a casa da família Clutter, numa cidadezinha do Kansas, em busca de um suposto cofre com 10 mil dólares. A dica foi dada por um antigo parceiro de cela. Seria um trabalho fácil e muito rentável. Sem riscos. Ao invadir a casa, descobrem que não há nenhum cofre, e muito menos dinheiro. Acabam roubando apenas 43 dólares e, decepcionados pelo desfecho, decidem num impulso matar toda a família que foi mantida refém. Assassinam cruelmente, a tiros e facadas, o pai, a mãe e o casal de filhos, sem uma motivação racional. Após um período de pequenos golpes para conseguir dinheiro para fugirem para o México, a dupla é detida em Las Vegas por estarem dirigindo um carro roubado.

Os primeiros minutos do filme de Richard Brooks são conduzidos por uma eficiente montagem paralela que mostra a tranquila rotina da família Clutter alternada com o encontro, os preparativos e a viagem dos assassinos rumo ao assalto premeditado, que terminaria num inesperado banho de sangue. A situação é clássica: dois outsiders, com antecedentes criminais, tentando o último grande golpe para mudar definitivamente de vida, deixando para trás seus problemas, frustrações e fracassos. O que poderia ser a redenção de uma existência sem perspectivas acabou por selar o destino de dois desajustados sociais. A afinidade de propósitos de Perry e Dick, que por vezes insinuam uma latente relação homossexual, supre o vazio existencial dos dois, provenientes de famílias disfuncionais e problemáticas.


Uma chave para a compreensão da atitude dos criminosos é fornecida em dado momento por um dos personagens envolvidos na investigação. Ele traz uma teoria psicanalítica do perfil de condenados que afirma que todo assassino sem motivação clara e definida é fruto de lares com famílias problemáticas. É esta a tese que embasa o livro de Truman Capote, e também o filme de Richard Brooks.

Apesar da história ser contada a partir do encontro da dupla para um último golpe, fica flagrante a predominância do protagonismo do personagem Perry Smith, magnificamente interpretado por Robert Blake, que nos anos 70 virou astro da TV ao protagonizar a série policial “Baretta”. Numa macabra coincidência, que reforça a máxima de que “a vida imita a arte”, o ator foi acusado de matar a esposa no início dos anos 2000. Robert Blake chegou a ser detido e posteriormente, em 2005, foi declarado inocente.

Na apresentação de Perry Smith em A Sangue Frio, logo na sua primeira cena, ele aparece descendo de um ônibus, carregando as bagagens e uma enorme caixa na costas. Uma apresentação poderosamente gráfica da psicologia do personagem. Perry carrega metaforicamente sob os ombros o peso de todos seus problemas, tal uma cruz de penitência que deve conduzir em todo seu calvário. Ambos, Dick e Perry, são filhos de famílias problemáticas. As relações tormentosas com seus pais e mães representam origem, fonte e causa de seus fracassos pessoais. Aos poucos, ao longo da narrativa, são apresentadas pequenas passagens que explicitam as difíceis relações familiares envolvidas. Por decisão de Richard Brooks (autor do roteiro, vale lembrar), foi incluída uma longa sequência em flashback, de forte caráter edipiano, ausente no livro de Truman Capote. Nesta sequência é mostrado um episódio de conflito familiar de forte impacto emocional, presenciado por Perry quando criança, que haveria de afetar sua futura mente criminosa.


Após enfrentar o Júri e a condenação de culpados, a dupla de assassinos recebe a pena máxima de enforcamento. Já no corredor da morte, à beira da caminhada para o cadafalso, Perry Smith profere um poderoso monólogo, quase uma auto-confissão de seu fracasso como ser humano. A fala, magistralmente construída por Richard Brooks, e interpretada com intensidade por Robert Blake, acontece em frente a uma janela enquanto chove. As gotas de chuva correm pela janela e projetam sobras no rosto de Perry, que parece chorar (sem fazê-lo de fato) enquanto fala. Um momento de humanismo ante o pesadelo do enforcamento eminente.

A Sangue Frio é um filme de estilo clássico, sóbrio, pesado e perturbador. Incômodo por vezes, frio quase sempre, mas nunca manipulador das emoções.

Assista o trailer: A Sangue Frio

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi