As notícias sobre uma provável sequência de Blade Runner sempre apavoraram os fãs
mais ardorosos do clássico de 1982 dirigido por Ridley Scott, mas por razões
diversas os projetos nunca seguiam adiante. O maior temor da legião de
admiradores era macular a memória de um estimado objeto de culto
cinematográfico, apresentando como resultado final uma aventura tola e
inconsequente que não fizesse jus às qualidades inquestionáveis do filme
original. O histórico de inúmeras sequências desastrosas justificava o receio.
A paz entre os fãs só foi restabelecida quando o nome do diretor canadense Denis Villeneuve (Sicário e A Chegada) foi anunciado
como o diretor da produção que agora chega às telas, 35 anos após o lançamento
do primeiro Blade Runner. Ridley
Scott desta vez atua apenas como produtor executivo.
Situado na mesma Califórnia um tanto distópica e super
povoada do primeiro filme, Blade Runner 2049 transcorre 30 anos
depois dos acontecimentos originais. Neste meio tempo aconteceu o “blecaute” da
Terra, que estabeleceu uma nova ordem no planeta. A Corporação Tyrell, criadora
dos replicantes da série Nexus 6, faliu e foi incorporada pelas indústrias do
poderoso empresário Niander Wallace (Jared Letto), que desenvolve uma novíssima
geração de replicantes, os Nexus 8. Um deles é o policial blade runner “K” (Ryan
Gosling) que atua como caçador de replicantes rebeldes foragidos para a polícia
de Los Angeles. Ao cumprir uma missão, “K”
acaba se deparando com um segredo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade.
Em sua jornada de descobertas, “K” busca
as resposta com um antigo blade runner,
desparecido há três décadas: Rick Deckard (Harrison Ford).
Ao surgir no início da década de 80, Blade Runner estabeleceu novos padrões
para a ficção científica no cinema. Seja em termos estéticos, seja em aspectos
conceituais, ou mesmo por sua ousada abordagem de narrativa policial de “filme
noir” com ambientação futurista retro, o filme de Ridley Scott, num primeiro
momento não foi devidamente considerado e percebido. Pagou o preço, por vários
anos, de um fracasso de crítica e bilheteria por ter sido um filme a frente de
seu tempo. Mas, este mesmo tempo só fez bem ao filme. Ao longo dos anos o filme
foi reavaliado e hoje ocupa o status de obra absolutamente referencial no
gênero.
O novo Blade
Runner chega, portanto, sem a obrigação de ser necessariamente inovador –
este trabalho já foi feito. Denis Villeneuve é
apenas o herdeiro deste legado, e seu compromisso foi apenas expandir o
conceito original e explorar as possibilidades que a computação gráfica
oferece. Isto possivelmente explique porque Blade
Runner 2049 seja mais explicitamente uma aventura de ficção científica hard
do que uma narrativa policial de pretensões existenciais como o primeiro filme.
As facilidades da tecnologia digital facilitam este caminho, pois, virtualmente
tudo é possível. Lembremos que o filme de Ridley Scott foi uma das últimas
produções do gênero realizadas ainda de forma analógica, sem efeitos de CGI.
Questões filosóficas tipo “quem
somos”, “de onde viemos”, “para onde iremos”, presentes no primeiro filme,
voltam aqui, de maneira mais profunda, com acréscimo de especulações sobre as
consequências do desenvolvimento da inteligência artificial para o futuro da
humanidade. A autonomia e o livre arbítrio das criaturas “humanas” criadas por
manipulação genética podem fugir do controle dos seus criadores? Este é um tema
de fundo que faz o tecido narrativo de Blade
Runner 2049.
O policial interpretado por Ryan
Gosling carrega todos os clássicos questionamentos de quem busca sua verdadeira
identidade. O aforismo grego diz: “Conhece-te a ti mesmo”. É este
questionamento que move as ações do blade
runner “K”, nem que para isto tenha que quebrar os níveis de hierarquia e
agir por conta própria. Neste aspecto, significativos são os acordes da
composição “Pedro e o Lobo” (de Sergei Prokofiev) que acompanham “K”. Esta
clássica história infantil conta a história de Pedro, que, ao contrariar os
conselhos do avô, se depara com um lobo feroz na floresta. Uma quebra de regra
que pode custar sua vida.
Apesar de suas quase três horas de duração, Blade Runner 2049 deixa a impressão de que
havia muita história para contar, mas nem todas suas pontas foram suficientemente
bem resolvidas. O personagem de Niander Wallace é um destes pontos nebulosos.
Mal delineado, com motivações um tanto indefinidas, o personagem interpretado
por Jared Letto não disse exatamente a que veio, e lá pelas tantas desparece da
história. Talvez o personagem tivesse mais sorte, e outro destino, se fosse
interpretado por David Bowie, que foi a primeira escolha para o papel. De
qualquer maneira, Blade Runner 2049
cumpre com muitos méritos – especialmente os técnicos - a tarefa bastante
difícil de suceder a produção original. Não parece estarmos diante de um novo cult, e nem sugere que seja o tipo de
filme que se deseje ardorosamente assistir repetidamente – como o clássico de
Ridley Scott -, mas não resta dúvida que abriu caminho para uma nova franquia
que pode estar se configurando.