Um dos últimos
grandes westerns clássicos do cinema norte-americano, Onde Começa o Inferno
(Rio Bravo) foi dirigido em 1959 pelo versátil Howard Hawks, mestre que
transitou com desenvoltura por diversos gêneros cinematográficos, da comédia ao
terror, do musical ao romance, do policial ao drama. Naquele período o western
já estava entrando no seu período de declínio. Os últimos mitos e heróis
estavam se despedindo e pouco significavam para as novas gerações que
assumiriam as radicais transformações no cinema de Hollywood nos anos 60/70.
Portanto, o filme de Hawks era uma posta arriscada, ainda mais por contar no
elenco com um monstro sagrado do cinema, herói e símbolo dos tradicionais
ideais norte-americanos: John Wayne.
Ele interpreta
John T. Chance, o xerife da cidade de Rio Bravo, no Texas. Seus dois auxiliares
fogem do padrão: o velho e rabugento Stumpy (Walter Brennan) e o habilidoso
pistoleiro e alcoólatra Dude (Dean Martin). Posteriormente um terceiro ajudante
se une ao grupo – o jovem e destemido Colorado Ryan (Ricky Nelson). Após uma
confusão no bar, que acaba com uma morte, o xerife Chance prende o pistoleiro
Joe Burdette (Claude Akins). Enquanto aguardam a chegada das tropas federais
para levar o perigoso prisioneiro para a capital, Joe fica detido na pequena
prisão, sob permanente ameaça de ataque do bando do irmão, o poderoso rancheiro
Nathan Burdette, que pretende resgatá-lo da forca.
O enfrentamento,
quase solitário, do xerife contra uma gangue de foras da lei remete à memória de
outro western famoso, Matar ou Morrer,
dirigido por Fred Zinnemann em 1952, que também conta uma situação semelhante. Porém,
a lembrança não é casual. É de caso pensando mesmo. Consta que Howard Hawks (e
John Wayne também) não gostava daquele filme por julgá-lo por demais
antiamericano ao narrar a história de um herói essencialmente covarde (no caso,
o delegado interpretado por Gary Cooper). Assim, Onde Começa o Inferno seria uma espécie de resposta ao filme de
Zinnemann.
Matar ou Morrer é um belo
exercício de estilo e tensão, pois narra sua história em tempo real, ou seja, a
duração do enredo equivale à duração do filme, sem elipses ou truques de
montagem. O efeito é a crescente tensão na medida em que os minutos
transcorrem, marcando a iminente chegada do trem que traz os assassinos. O
filme de Hawks também trabalha o efeito da tensão crescente, mas com outros
artifícios e recursos fílmicos. Não submete a ação cinematográfica à passagem
do tempo, pelo contrário, expande a narrativa alongando a passagem do tempo, a
ponto de transformar a tensão em suspense.
Sabemos estar
diante de um western realmente diferenciado quando toda a sequência de abertura
de Onde Começa o Inferno, que se
desenrola por longos cinco minutos, transcorre sem diálogo algum. Não seria
exatamente surpreendente não fosse um detalhe: não se trata meramente de uma
sequência contemplativa, descritiva de cenário ou paisagem. Fosse assim, seria
até convencional como tantas outras. O que torna a sequência de abertura ousada
e criativa é o fato de ser amplamente narrativa, apresentando o elemento humano
no teatro das ações. O mote do conflito que deflagra a história se estabelece
de forma direta num clássico episódio de luta no saloon.
A presença do
personagem do xerife Chance, interpretado por John Wayne, é ampla e abrangente
em todas as tramas e sub-tramas da história. Funciona como elo de ligação e
ponto comum entre todos os demais personagens. A cada um dele assume uma
representação e significado. Para o resmungão Stumpy oferece sua face mais
bonachona e boa praça. Para o beberrão e inseguro Dude (num desempenho
inspirado e comovente de Dean Martin), se mostra compreensivo e sobretudo companheiro,
sempre pronto a apoiar a recuperação do parceiro. Ao jovem Colorado Ryan o
xerife encarna o papel de mestre e mentor. Para o oponente, o vilão Nathan, a
figura de John Wayne personifica a expressão máxima da lei e da ordem. Há ainda
uma personagem feminina na trama, a jovem Feathers (interpretada pela novata
Angie Dickinson), uma golpista de bom coração e intenções sinceras. Para ela o
xerife revela seu lado mais sensível, frágil e amoroso. Afinal, os brutos
também amam.
O clássico Onde Começa o Inferno (um inadequado e
apelativo título nacional) é essencialmente um filme de personagens. Sua trama,
que beira o convencional, traz poucas novidades. É por vezes lento e sua
história não parece rumar para um desfecho definido. Howard Hawks se detém na
exposição da psicologia das personagens, em detrimento do privilégio da ação,
que é quase uma exigência das regras do western. Mas, mesmo optando por esta
abordagem diversa, o filme não cai na armadilha de ser tedioso e dispersivo. Há
sim um ritmo incomum para o gênero, mas Hawks não perde as rédeas da narrativa
em nenhum momento. É cinema clássico da maior ordem. Uma peça orquestrada por
um mestre. Exige tempo e imersão, antes de soarem os tiros.
Em 1976 John
Carpenter dirigiu Assalto à 13ª DP,
uma homenagem ao filme de Howard Hawks, que conta a história de uma delegacia
de polícia do subúrbio de Los Angeles atacada por uma gangue de delinquentes.
(Texto originalmente publicado na
coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2017)
Jorge Ghiorzi