terça-feira, 22 de outubro de 2019

“Onde Começa o Inferno”: um western clássico



Um dos últimos grandes westerns clássicos do cinema norte-americano, Onde Começa o Inferno (Rio Bravo) foi dirigido em 1959 pelo versátil Howard Hawks, mestre que transitou com desenvoltura por diversos gêneros cinematográficos, da comédia ao terror, do musical ao romance, do policial ao drama. Naquele período o western já estava entrando no seu período de declínio. Os últimos mitos e heróis estavam se despedindo e pouco significavam para as novas gerações que assumiriam as radicais transformações no cinema de Hollywood nos anos 60/70. Portanto, o filme de Hawks era uma posta arriscada, ainda mais por contar no elenco com um monstro sagrado do cinema, herói e símbolo dos tradicionais ideais norte-americanos: John Wayne.

Ele interpreta John T. Chance, o xerife da cidade de Rio Bravo, no Texas. Seus dois auxiliares fogem do padrão: o velho e rabugento Stumpy (Walter Brennan) e o habilidoso pistoleiro e alcoólatra Dude (Dean Martin). Posteriormente um terceiro ajudante se une ao grupo – o jovem e destemido Colorado Ryan (Ricky Nelson). Após uma confusão no bar, que acaba com uma morte, o xerife Chance prende o pistoleiro Joe Burdette (Claude Akins). Enquanto aguardam a chegada das tropas federais para levar o perigoso prisioneiro para a capital, Joe fica detido na pequena prisão, sob permanente ameaça de ataque do bando do irmão, o poderoso rancheiro Nathan Burdette, que pretende resgatá-lo da forca.


O enfrentamento, quase solitário, do xerife contra uma gangue de foras da lei remete à memória de outro western famoso, Matar ou Morrer, dirigido por Fred Zinnemann em 1952, que também conta uma situação semelhante. Porém, a lembrança não é casual. É de caso pensando mesmo. Consta que Howard Hawks (e John Wayne também) não gostava daquele filme por julgá-lo por demais antiamericano ao narrar a história de um herói essencialmente covarde (no caso, o delegado interpretado por Gary Cooper). Assim, Onde Começa o Inferno seria uma espécie de resposta ao filme de Zinnemann.

Matar ou Morrer é um belo exercício de estilo e tensão, pois narra sua história em tempo real, ou seja, a duração do enredo equivale à duração do filme, sem elipses ou truques de montagem. O efeito é a crescente tensão na medida em que os minutos transcorrem, marcando a iminente chegada do trem que traz os assassinos. O filme de Hawks também trabalha o efeito da tensão crescente, mas com outros artifícios e recursos fílmicos. Não submete a ação cinematográfica à passagem do tempo, pelo contrário, expande a narrativa alongando a passagem do tempo, a ponto de transformar a tensão em suspense.


Sabemos estar diante de um western realmente diferenciado quando toda a sequência de abertura de Onde Começa o Inferno, que se desenrola por longos cinco minutos, transcorre sem diálogo algum. Não seria exatamente surpreendente não fosse um detalhe: não se trata meramente de uma sequência contemplativa, descritiva de cenário ou paisagem. Fosse assim, seria até convencional como tantas outras. O que torna a sequência de abertura ousada e criativa é o fato de ser amplamente narrativa, apresentando o elemento humano no teatro das ações. O mote do conflito que deflagra a história se estabelece de forma direta num clássico episódio de luta no saloon.

A presença do personagem do xerife Chance, interpretado por John Wayne, é ampla e abrangente em todas as tramas e sub-tramas da história. Funciona como elo de ligação e ponto comum entre todos os demais personagens. A cada um dele assume uma representação e significado. Para o resmungão Stumpy oferece sua face mais bonachona e boa praça. Para o beberrão e inseguro Dude (num desempenho inspirado e comovente de Dean Martin), se mostra compreensivo e sobretudo companheiro, sempre pronto a apoiar a recuperação do parceiro. Ao jovem Colorado Ryan o xerife encarna o papel de mestre e mentor. Para o oponente, o vilão Nathan, a figura de John Wayne personifica a expressão máxima da lei e da ordem. Há ainda uma personagem feminina na trama, a jovem Feathers (interpretada pela novata Angie Dickinson), uma golpista de bom coração e intenções sinceras. Para ela o xerife revela seu lado mais sensível, frágil e amoroso. Afinal, os brutos também amam.


O clássico Onde Começa o Inferno (um inadequado e apelativo título nacional) é essencialmente um filme de personagens. Sua trama, que beira o convencional, traz poucas novidades. É por vezes lento e sua história não parece rumar para um desfecho definido. Howard Hawks se detém na exposição da psicologia das personagens, em detrimento do privilégio da ação, que é quase uma exigência das regras do western. Mas, mesmo optando por esta abordagem diversa, o filme não cai na armadilha de ser tedioso e dispersivo. Há sim um ritmo incomum para o gênero, mas Hawks não perde as rédeas da narrativa em nenhum momento. É cinema clássico da maior ordem. Uma peça orquestrada por um mestre. Exige tempo e imersão, antes de soarem os tiros.

Em 1976 John Carpenter dirigiu Assalto à 13ª DP, uma homenagem ao filme de Howard Hawks, que conta a história de uma delegacia de polícia do subúrbio de Los Angeles atacada por uma gangue de delinquentes.

Assista o trailer: Onde Começa o Inferno

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2017)

Jorge Ghiorzi

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