quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

"Laranja Mecânica": fábula visionária


Rodado em Londres no ano de 1970 e lançado mundialmente no ano seguinte, Laranja Mecânica virou alvo da censura na época e foi proibido no Brasil. Por quase toda a década de 70 os brasileiros só ouviram falar daquele polêmico filme realizado por Stanley Kubrick, após a obra-prima 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Durante anos, para os brasileiros a única referência ao filme era sua inovadora trilha sonora que misturava experiências eletrônicas do compositor Walter Carlos (antes de virar Wendy Carlos) com as composições de Beethoven. Naquela época era comum grupos de cinéfilos brasileiros viajarem para Montevidéu e Buenos Aires para assistir aquele famoso filme do qual tanto de falava no mundo todo. O filme só foi liberado para exibição no Brasil em 1978 em cópias onde foram incluídas “bolinhas pretas” sobre as genitálias dos corpos nus. A anacrônica censura da época achava mais importante esconder a nudez do que expor as plateias à violência exacerbada que o filme mostrava de maneira até então nunca vista em uma produção de grande estúdio. Hoje as “bolinhas pretas” não passam de curiosidade e mico histórico ao qual os brasileiros foram submetidos.

O tema central e pano de fundo de Laranja Mecânica é a violência. A obra de Kubrick, no entanto, expõe duas formas distintas de violência, cada qual com suas origens e consequências. Existe a violência do indivíduo, ancestral e intrínseca no ser humano quando não reprimida pela convivência social, e existe a violência do Estado, institucionalizada, amparada pela Lei e justificada pela manutenção do status quo e controle do coletivo. O filme de Kubrick trata destas duas formas dedicando a cada uma delas metade do filme.


Na primeira parte conhecemos o jovem Alex (Malcolm McDowell) o anti-herói que conduz a ação. Numa sociedade de futuro incerto as leis já não fazem muito efeito e a desagregação social parece chegar ao seu limite. É nesse ambiente que Alex leva sua vida despreocupada onde seus únicos prazeres são encher a cara de “moloko”, uma espécie de leite aditivado com drogas, fazer arruaças com os amigos e ouvir músicas de Beethoven, a quem chama de “Ludwig Van”.

A segunda parte inicia quando Alex é detido pela polícia e conduzido para uma instituição penal. Com a perspectiva de ganhar a liberdade, Alex se submete voluntariamente a um tratamento experimental que promete reabilitar delinquentes eliminando seu instinto natural para a violência. Ministrado por psicólogos a serviço do Estado, o tratamento consiste em expor o criminoso a sessões contínuas de cenas chocantes de violência explícita ao som da 9ª Sinfonia de Beethoven! Depois desta lavagem cerebral o pobre Alex é transformado numa pessoa totalmente indefesa que reage com náuseas e ânsia de vômito a qualquer manifestação de violência. Vira uma “laranja mecânica”, um ser orgânico que age mecanicamente. Redimido, Alex retorna para a sociedade e vive como um pária, sem papel social, renegado pela própria família, vingado por vítimas do passado e humilhado por seus antigos companheiros de delinquência.


A possibilidade do livre arbítrio é um ponto de discussão que Kubrick expõe com clareza em Laranja Mecânica. No processo de controle da criminalidade o Sistema impõe uma solução que transforma o indivíduo num ser robotizado, um sujeito sem a opção da escolha. E no dizer do religioso que acompanha Alex na prisão “se o homem não pode escolher, deixa de ser um homem”. Condicionado e sem opções de comportamento só resta a Alex o papel de inocente útil, manipulado por interesses políticos que o transformam em exemplo bem sucedido de reabilitação.

Repleto de ironia e sarcasmo, a adaptação de Stanley Kubrick preserva a essência da obra original. Diálogos quase literais do livro e a utilização de neologismos como “vidiar” (ver), “entra-e-sai” (sexo), “guliver” (cabeça) e “horrorshow” (espetacular) estão na adaptação, revelando a genialidade da criação de Anthony Burgess. Mas Kubrick, um mestre com pleno domínio do meio cinematográfico, fez uso de inúmeros recursos para valorizar o rico material que tinha nas mãos. Sua reconhecida habilidade em utilizar músicas clássicas nas trilhas sonoras foi mais uma vez exercida com talento em Laranja Mecânica. O mesmo se pode dizer de seu talento em criar sequencias climáticas, seja pelo uso da câmera de mão, seja pela cenografia elaborada, repleta de referências artísticas e pictóricas. Em todos seus trabalhos o realizador sempre evidenciou que reconhece o poder da imagem e seus significados, e as manipula com maestria.


Todos os elementos cinematográficos de Laranja Mecânica parecem hipnóticos e exagerados. Figurinos, cenografia, interpretações, música, tudo parece transmitir uma explosão sensorial de cores, sons e ritmos, como se a visão do mundo fosse resultado de algumas doses a mais de “moloko”. Nada mais correto se levarmos em conta que o “humilde narrador” da história é o próprio Alex, presente em 100% das cenas. É através de seus olhos e de sua percepção que somos introduzidos naquela realidade distorcida. O cinismo e a hipocrisia denunciam a personalidade egoísta do narrador que constrói o mundo de acordo com suas convicções e conveniências. Quando Alex percebe que se transformou em “objeto” cobiçado pelo Sistema assume sem escrúpulos o discurso dos poderosos. O cinismo do pragmatismo vence. O povo quer ouvir mentiras com aparência de verdades, então Alex declara em alto e bom som: “Sim, estou curado”.

Se no início do filme Alex era o algoz da sociedade, adepto da ultraviolência inconsequente, ao final se apresenta como uma vítima do Sistema. Apenas mais uma peça da engrenagem da máquina de moer pessoas. Na sequência final o verdadeiro Alex se revela. Seu refúgio de sanidade ficava num cantinho intocado da mente, capaz de fantasiar e imaginar uma sessão de sexo selvagem cercado por uma plateia que o aplaude ao mesmo tempo em que é bajulado pela imprensa e políticos em seu leito hospitalar. Alex aprendeu o jogo da mídia que se apodera da imagem e transforma a fantasia em realidade e a realidade em fantasia.


É bastante comum a constatação de que a adaptação cinematográfica de livros sempre deixa a desejar. Normalmente o livro é sempre melhor. Definitivamente este não é o caso de Laranja Mecânica. O original de Anthony Burgess já era uma obra respeitável, no entanto, nas mãos de Stanley Kubrick o material ganhou uma dimensão superior. Seu talento em sustentar visualmente uma narrativa está todo lá, em cada cena, em cada sequencia. Em Laranja Mecânica, o filme, Kubrick foi além de “Laranja Mecânica”, o livro. Ampliou o universo de Burgess e concebeu uma fábula provocante, assustadora e visionária que mantém sua força até hoje.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em março de 2014)

Jorge Ghiorzi

Luis Buñuel: um cineasta não-conformista, graças a Deus



Nascido no início do Século XX, Luis Buñuel marcou como poucos um lugar na história do cinema mundial. Criado em uma família religiosa de posses, quando jovem foi preparado para viver uma vida religiosa. A perda da fé veio cedo, aos 15 anos, e tornou-se “ateu, graças a Deus”, como bem se definiu numa das declarações mais icônicas de sua personalidade. Antes de se encontrar atrás das câmeras, Buñuel foi boxeador, músico e poeta. Em Paris, seduzido pelos artistas de vanguarda, particularmente os surrealistas, Luis Buñuel descobriu o cinema. Ateu, rebelde, anarquista, encontrou no cinema seu veículo de expressão artística. Para ele os filmes eram pretexto para expressar suas verdadeiras convicções. Ou melhor, reforçar e explicitar sua vocação para contestar o conformismo social e seus padrões de comportamento ditados por uma moral burguesa que Buñuel nunca aceitou plenamente.

Se como cineasta sua mise en scène, ou mesmo a direção de atores, não eram exatamente um primor, o mesmo não se pode afirmar em relação a sua habilidade em provocar as plateias. Isto por conta de seu indisfarçável prazer em chocar a moral da sociedade cristã ocidental. Neste aspecto devemos ter em mente uma particularidade do “estilo Buñuel”. Ele nunca abriu mão do bom humor, proveniente das inusitadas (e surrealistas) situações onde jogava seus personagens.




Descrente convicto, Luis Buñuel era um cineasta constantemente preocupado com as questões religiosas. Não exatamente para fazer sua apologia. Seu desejo na verdade era confrontar constantemente os dogmas cristãos e buscar a reflexão através das contradições éticas e morais que a religiosidade impõe aos fiéis. A exacerbação deste conflito aproxima o cineasta espanhol do surrealismo e do nonsense. Seus filmes subvertem o status quo da sociedade colocando em cheque seu conformismo. O cineasta não apresenta respostas. Pelo contrário, provoca as questões mais seminais. Uma revisão histórica de seus filmes comprova que Buñuel era um ateu atormentado por dúvidas existenciais que expiava através dos filmes, que em sua grande maioria eram vistos como anticlericais.

Em certa medida Luis Buñuel sempre foi um cineasta em busca de uma pátria. Descobriu o cinema na França. Conquistou prestígio (e escândalo) com os primeiros trabalhos na Espanha. Proibido e perseguido, foi passar uma temporada nos EUA, onde fez estágio na MGM. Foi expulso de Hollywood e caiu no ostracismo por mais de uma década. Passou uma temporada no México onde deu um reinício na carreira, dirigindo produções baratas com alto teor de crítica social. Depois retornou à Espanha, onde viveu um período e glória e consagração mundial. Nesta fase final carreira venceu o Festival de Cannes (Viridiana) e levou um Oscar de Filme Estrangeiro (O Discreto Charme da Burguesia).


“Anarquista, graças a Deus”. “Ateu, graças a Deus”. Luis Buñuel foi um cineasta não conformista, jamais abriu mão de suas convicções. Ainda que por vezes nem ele próprio soubesse quais eram. Seu olhar crítico incomodou a Igreja, os políticos, a sociedade, a burguesia. Enfim, tudo que aí está. Cineasta dominado pelo sonho e a memória, Buñuel nunca abandonou a poesia, mesmo em seus momentos mais contundentes. Filmou os humildes e cutucou os poderosos. Colocou os mendigos na sala de jantar e jogou os ricos no ridículo. Luis Buñuel foi um realizador que nunca escondeu suas contradições. Pelo contrário, fez delas a matéria prima de sua obra, uma das mais influentes do primeiro século do cinema.

(Texto originalmente publicado no site "Papo de Cinema" em junho de 2012)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Novo Cinema Coreano: ousadia que vem da Ásia


A projeção econômica e cultural da Coréia do Sul é um fato. Isto pode ser claramente comprovado quando lembramos de duas fortes marcas genuinamente coreanas: a K-Pop (a música pop local), cujo astro maior é Psy, e a gigante da tecnologia Samsung. Mas, esta invasão coreana também se dá no campo do Cinema. É crescente a presença de filmes e cineastas sul-coreanos nos principais festivais internacionais de cinema. O Ocidente abriu as portas para a produção cinematográfica da Coréia do Sul, que, graças ao talento, a criatividade e a ousadia dos seus realizadores assume a posição invejável de bola da vez no cenário do cinema mundial. A grande visibilidade e exposição das produções já foi captada pelo radar de Hollywood, que se movimenta para seduzir os principais cineastas para filmar na terra do Tio Sam.

Neste típico movimento de canibalismo de cinematografias internacionais, Hollywood importa diretores e roteiros. Alguns dos filmes de maior êxito do cinema sul-coreano recente estão sendo refilmados nos Estados Unidos, com elenco e diretores norte-americanos. Um exemplo é o recente remake de Old Boy, que foi realizado por Spike Lee. A versão original, dirigida por Park Chan-wook, faz parte da chamada “Trilogia da Vingança”, da qual trataremos mais logo adiante. O próprio Chan-wook já teve uma passagem recente pelos Estados Unidos, onde dirigiu Segredos de Sangue (Stoker), com Nicole Kidman no elenco.


Além de Park Chan-wook (talvez o cineasta coreano mais celebrado da atualidade), outros dois realizadores asiáticos também se aproximaram de Hollywood. Um deles é Kim Jee-woon, que dirigiu Arnold Schwarzenegger e o brasileiro Rodrigo Santoro no filme de ação O Último Desafio (The Last Stand). O outro é Joo-ho Bong, que realizou a ficção científica Expresso do Amanhã (Snowpiercer), com elenco norte-americano: Jamie Bell e Chris Evans (o Capitão América).

Então, fica a questão: por que o cinema coreano está atraindo tanta atenção e interesse? Possivelmente o ponto de virada nessa história tenha ocorrido no Festival de Cannes de 2004. Naquele ano o júri, presidido por Quentin Tarantino (um entusiasta do cinema asiático / oriental), foi tomado de assalto pelo impactante Old Boy, uma visceral história de vingança narrada com estilo, brutalidade, poesia e violência. Uma receita incomum, mas que, quando conduzida com talento, resulta em obras de referência, que marcam seu tempo. Agraciado com o Grande Prêmio do Júri de Cannes, Old Boy era o segundo filme da “Trilogia da Vingança”.

Trilogia da Vingança

A cinematografia coreana dos anos 2000 seduziu público e crítica no Ocidente por sua ousadia estética e a criatividade dos roteiros. Grande parte deste frisson foi provocada pela “Trilogia da Vingança”, dirigida por Park Chan-wook, composta pelos filmes Mr. Vingança (Sympathy for Mr. Vengeance, 2002); Old Boy (Old Boy, 2003) e Lady Vingança (Sympathy for Lady Vengeance, 2005). Nestes trabalhos o cineasta confirma as razões pelas quais é chamado de “Tarantino asiático”. Cineasta de perfil cult e pop, nos três filmes Chan-wook evidencia sua peculiar forma de contar histórias de violência e vingança, com muito estilo e surpresas constantes no ritmo da narrativa e na trajetória dos personagens. Os três filmes não tem relação alguma entre seus universos. São histórias distintas, porém, com um tema comum: a vingança. De diferentes formas, por diferentes razões e diversos personagens, a vingança é a força que move seus protagonistas.

O apelo ao humor negro e o bizarro por vezes marca presença, onde a violência extremamente gráfica convive com momentos contemplativos. Tudo num ritmo que por vezes provoca estranhamento e desconforto no espectador.


O primeiro capítulo da trilogia é Mr. Vingança que narra a história de um jovem surdo-mudo, que cuida da irmã, que precisa de um transplante de rim. Após ser demitido e enganado, decide sequestrar a filha do ex-patrão. Mas nem tudo sai como o planejado. Um acidente fatal provoca uma reviravolta. No terceiro ato a história que muda de ponto de vista, e o protagonista passa a ser o pai (ex-patrão do jovem) que assume uma missão de vingança pessoal, que desencadeará uma espiral de sangue e violência.


A história de Old Boy, segundo capítulo da trilogia, inicia em 1988, quando o personagem central, casado, pai de uma garotinha de três anos, é preso por 15 anos, por razões desconhecidas. Inclusive por ele próprio. Sem contato com o mundo exterior, sua vida entra em parafuso. Certo dia, de surpresa, ele é libertado. Sem rumo e desorientado, sua única forma de entender o mundo é buscar os responsáveis por sua prisão. Nesta busca se defrontará com uma terrível revelação.


Fechando a trilogia está Lady Vingança. Como o próprio nome indica, desta vez a protagonista é uma mulher. No caso, uma jovem de 19 anos que foi condenada a 13 anos de prisão pelo sequestro e assassinato de um menino de seis anos. Após sair da cadeia ela coloca em prática seu plano de vingança contra o verdadeiro culpado pelo assassinato da criança. Mais uma vez, no terceiro ato do filme Park Chan-wook nos oferece um banho de sangue.

Embora os três filmes não tenham uma relação maior entre si, o fato é que eles formam um poderoso painel da violência que é inerente ao ser humano. Narrados com muito estilo e criatividade, os filmes da trilogia reforçam o prestígio que o cinema da Coréia do Sul vem conquistando nos últimos anos. Então, fica a dica: se você quer conhecer um cinema vigoroso, que sai do lugar comum, e surpreende a cada sequência, a Trilogia da Vingança é a indicação.

Outros destaques do cinema coreano:

Ji-woon Kim:A Tale of Two Sisters; I Saw the Devil; The Good, the Bad and the Weirde; O Gosto da Vingança (A bittersweet life).

Kim-ki Duk: Primavera, Verão, Outono, Inverno e Primavera; Casa Vazia; Time: O Amor Contra a Passagem do Tempo.

Chang-dong Lee: Peppermint Candy; Oasis; Secret Sunshine; Poesia.

Hong-jin Na: O Caçador (The Chaser); The Yellow Sea.

Joon-ho Bong: Barking Dogs Never Bite; Memórias de um Assassino; Mother: A Busca pela Verdade; O Hospedeiro.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em fevereiro de 2014)


Jorge Ghiorzi

David Lynch: um autor em busca de sonhos


Na virada dos anos 50 para os 60 a crítica cinematográfica da França (particularmente aqueles ligados ao Cahiers du Cinéma) lançou as bases teóricas que resultaram no movimento da Nouvelle Vague francesa. Um dos mais importantes conceitos da época era o chamado “cinema de autor”. Ao discutirem a autoria nos filmes, os franceses pregavam que o cinema era de fato uma arte, cujo produto final é fruto da criação de um autor (o diretor). Apesar de ser uma arte resultante do trabalho coletivo de vários colaboradores, os filmes em alguma medida são sim uma representação da visão do diretor, ou pelo menos deveria ser assim.

Se ficarmos restritos à conceituação francesa poucos realizadores de fato deixam sua marca em cada filme que realizam. Particularmente no cinema contemporâneo, formatado mais para atender demandas monetárias do que alguma aspiração artística. Hoje o autor é o produtor, ou, em escala superior, os próprios estúdios.

Na atual ordem do cinema mundial é extremamente complicado um realizador ter a supremacia na concepção de uma obra cinematográfica. Conta-se nos dedos aqueles que chegaram a este patamar: Woody Allen, Federico Fellini, Pedro Almodóvar, Quentin Tarantino, Alfred Hitchcock, Akira Kurosawa, Stanley Kubrick, Ingmar Bergman, Martin Scorsese, Jean-Luc Godard e outros poucos. O estilo único e identificável de cada um deles transforma em adjetivo o nome destes diretores.


Neste time de realizadores diferenciados um nome se impõe: David Lynch. Curiosamente o cinema entrou na vida de Lynch por casualidade, quase uma consequência de seu trabalho como artista plástico. Suas experiências estéticas em três dimensões começaram a ser exploradas pelo jovem artista na bidimensionalidade do cinema. Os primeiros curtas eram experimentais como linguagem estética e narrativa, e o cinema para ele representava apenas mais uma forma de expressão. No entanto, logo Lynch descobriu o fascínio das imagens em movimento e sacou que seus experimentalismos conceituais casavam muito bem com a tela grande. Sonhos e bizarrices se materializavam com mais força pela gramática cinematográfica. Luzes, sombras e efeitos eram as ferramentas adequadas para Lynch exibir suas perturbadoras imagens. Tudo isto já estava lá, no seu primeiro longa-metragem: Eraserhead (1977). Na época incompreendido, depois elevado à condição de cult, o filme atraiu a atenção de Mel Brooks, então um ativo produtor. Impressionado com o que viu, Brooks convidou David Lynch para assumir a direção de O Homem Elefante. O longa foi um sucesso, recebeu oito indicações ao Oscar e lançou o nome de Lynch para o cenário mundial. Ousado e firme em suas convicções, o realizador optou por filmar em preto e branco, uma decisão mercadológica arriscada. O estúdio topou a parada, e o resto é história. Raramente se viu na tela uma Era Vitoriana, em plena Revolução Industrial, tão exuberantemente fotografada. A explicação do êxito de O Homem Elefante não estava apenas em suas qualidades estéticas. Lynch não explorou gratuitamente o horror gráfico, que a história facilmente poderia levar. Ele optou por mergulhar na mente dos protagonistas: medico e paciente. E deste mergulho resultou um filme comovente e inspirador.


David Lynch é um artista, antes de ser um cineasta. Sempre atento e aberto a novidades, Lynch não vacilou no início dos anos 90 quando surgiu a oportunidade de criar uma série de TV. Naquela época a televisão não havia ainda conquistado prestígio com filmes e séries (o que hoje é uma realidade). Mas Lynch aproveitou a oportunidade e lançou Twin Peaks que chocou e fascinou a audiência em todo o mundo. Foi febre e criou um case na Televisão. A série revolucionou a TV, desbravou um mercado e mostrou que era possível agregar qualidade com boa audiência.



Dos cineastas em atividade, David Lynch é considerado um dos maiores cultores do conceito de multimídia. Ele cria e produz para várias plataformas e formatos. Explora a Internet, produz curtas-metragens, dirige videoclipes e segue com sua bem sucedida carreira como realizador cinematográfico. Isto tudo sem abandonar sua metódica meditação transcendental, que costuma divulgar em todo o mundo, inclusive em Porto Alegre, quando aqui esteve em 2008 para falar sobre o tema. Lynch não abre mão de suas convicções, muito menos de sua particular visão de mundo, muito bem expressas pelos jogos mentais que propõe em todos seus trabalhos, seja no audiovisual, seja nos livros que escreve.

(Texto originalmente publicado no site “Papo de Cinema” em julho de 2012)


Jorge Ghiorzi

A aventura do cinema brasileiro


O cinema brasileiro é movido por ciclos. Ou por surtos, diriam alguns. Um olhar atento para o passado revela uma história repleta de fases que se sucedem sem, no entanto estabelecer um caráter de evolução. Cada momento parece negar e renegar o passado imediatamente anterior. Neste aspecto reside uma questão fundamental do nosso cinema: a falta de continuidade. Daí, portanto, se justifica a afirmação de que o cinema nacional é uma sucessão de ciclos, fases, momentos. Visto em perspectiva histórica, este é o cenário.

No entanto esta história, mesmo fragmentada, está repleta de momentos gloriosos, artistas fantásticos, diretores talentosos e filmes geniais. O Brasil começou cedo nesse negócio do cinema. Marcou presença já nas primeiras safras de filmes produzidos no mundo. Ciclos regionais pipocaram por diversas regiões do país nos primeiros anos do século passado. O cinema, como processo industrial e tecnológico, era novidade nos quatro cantos do planeta. E no Brasil, nestes anos pioneiros, chegou até o interior mais recôndito do país. Surgiram produções, longe dos grandes centros, no interior de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, de São Paulo e de Pernambuco, só para citar os principais polos da época.

Vivia-se um período de experimentação, tentativas, erros e descoberta do público. Conviviam lado a lado as produções romântico-pastoris de um Humberto Mauro e as vanguardices radicais de um Mário Peixoto em Limite. Era um país em busca da sua identidade cinematográfica. O primeiro casamento forte do cinema nacional com os brasileiros se deu na época das chanchadas da Cinédia e Atlântida. A forte presença da música era o passaporte para atrair a atenção do público para as salas de cinema. Sem falar na presença dos “artistas de rádio”. Pela primeira vez era possível “ver” os artistas, e não apenas ouvi-los pelas ondas do rádio. Aquele era um tempo de sátiras e paródias. Grandes clássicos de Hollywood, por exemplo, ganhavam uma versão cômica traduzida para nosso jeito de ser. A comédia rasgada ganhava espaço nas salas de cinema. E o público lotava as sessões.


Depois da alegria, veio a sobriedade. Chegava a hora do Brasil parar de brincar de (e com) cinema. A sétima arte deveria ser utilizada também para a alta cultura visando a conquista de novas plateias. Barões endinheirados, que sonhavam grande e aspiravam um cinema brasileiro de qualidade internacional, investiram pesado no setor. Era o sonho da industrialização do nosso cinema, cristalizado na criação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Saíram de cena os musicais, entravam em cartaz os (vá lá) “filmes de arte”. Se não totalmente de “arte”, pelo menos com algumas pretensões estilísticas mais elevadas. Na falta de mão de obra para os primeiros projetos, diversos técnicos e realizadores foram importados. Nos créditos dos filmes começaram a aparecer nomes alienígenas, como Adolfo Celi, Tom Payne, John Waterhouse e Chick Fowle. O sonho da “Hollywood brasileira” foi um projeto caro e fracassou por não contar com uma boa distribuição dos filmes. Produções dispendiosas e baixas bilheterias decretaram o fim do ciclo.

Num típico movimento de “negação” do passado, a fase seguinte do cinema brasileiro foi marcada pela rejeição às grande produções. Era o movimento independente tomando forma. O olhar dos cineastas da época se voltava para o homem do povo, sua vida e suas circunstâncias. A favela surgia no meio urbano brasileiro e as mazelas sociais chegavam aos meios de comunicação. Uma realidade que não podia mais ser varrida para debaixo do tapete. As plateias dos cinemas tomaram um choque de realidade. O cenário mudou. Literalmente. Os morros cariocas e o agreste sertão gritavam nas telas. Isto explica filmes como Rio 40 Graus e Vidas Secas, retratos duros da condição brasileira da época. Uma nova geração de cineastas intelectualizados assumia seu espaço. O cinema passava a ser utilizado explicitamente como mídia política. Os filmes não eram realizados para entretenimento, mas para cumprir a missão de esclarecer o povo. Paralelo a este movimento, a realidade social brasileira entrava nos anos de chumbo. O cinema era uma peça de resistência e a figura messiânica de Glauber Rocha dava as cartas neste jogo. As experiências cinematográficas da época se radicalizaram. A geração underground (batizada pejorativamente de “udigrudi”) chegava para barbarizar e demolir todas as convenções cinematográficas. O Bandido da Luz Vermelha era o ícone mais acessível deste período. Mas, a radicalização virou o fio. O tiro saiu pela culatra. Com pretensão de abrir os olhos das massas os filmes deste período conseguiram a proeza de espantar o público das salas.


Novamente, no típico movimento de reversão, a fase seguinte do cinema brasileiro foi uma retomada do público. Se a ditadura reprimia nas ruas, no escurinho do cinema poderia haver alguns momentos de relaxamento e distração. Quem sabe até se podia rir um pouco, sem culpa. Começa o império das comédias de costumes, que logo iriam descambar para a sensualidade até chegar ao sexo, que mais adiante chegaria ao explícito. Surge a Embrafilme para organizar o mercado e assegurar uma distribuição que sempre foi problemática no país. A Boca do Lixo era uma usina de produção. Cinema industrial pra valer. Uma Vera Cruz que funcionava como empreendimento comercial. Havia produto, havia demanda. Aquele foi um período extremamente atrativo para as bilheterias. E não foram só as pornochanchadas que atraíram público. O chamado “cinemão” também estava de vento em popa. É daquela época o recorde de público de Dona Flor e Seus Dois Maridos, que perdurou por quase 35 anos.

Então, “minha gente”, surgiu Collor. E a Embrafilme sumiu. Sem o amparo do Estado a produção cinematográfica sucumbiu. O dinheiro fácil, a fundo perdido, desapareceu. A fonte secou. Os produtores e cineastas brasileiros, um tanto mal acostumados com o financiamento estatal, ficaram sem saída. Novos formatos de produção precisavam ser criados. Por quase meia década o cinema brasileiro ficou perdido e estagnado. Até que surgiram as pioneiras “leis de incentivo” e uma luz se acendeu no fim do túnel. Paralelo a este momento, num formato de produção que poderia ser definido como de “guerrilha”, surgia o filme que marcou a chamada retomada do cinema brasileiro: Carlota Joaquina.

O cinema no Brasil não estava morto. Apenas estava dando um tempo e se reinventando. A produção foi acelerando aos poucos e voltou a ser expressiva em quantidade de títulos. Pela primeira vez, desde os anos 60 com Glauber Rocha, o cinema brasileiro voltou a ter algum reconhecimento no exterior. Nesta safra surgiram títulos como O Quatrilho; Central do Brasil e Cidade de Deus, que impactaram positivamente em festivais em todo o mundo e atraíram a atenção para o cinema produzido no país.


Passado o momento de euforia, o cinema nacional se vê frente a uma nova encruzilhada. As questões de produção estão resolvidas. O problema agora está na distribuição e exibição do produto nacional. A luta para produzir um filme de certo modo está ganha. Os meios de produção de diversificaram e os formatos digitais facilitam muitos projetos. O jogo fica mais pesado quando a questão é exibir os filmes. Esta é a última fronteira a ser vencida. Reconhecidamente o Brasil é um dos maiores mercados do mundo para o cinema. As bilheterias por aqui já rivalizam com grandes centros mundiais. Não é a toa que Hollywood cada vez mais se volta para o mercado brasileiro, realizando pré-estreias, visitas promocionais de astros, utilizando cenários do Brasil para locações e contratando diretores e artistas brasileiros. O cinema ficou globalizado e o Brasil entrou no jogo. A presença do filme norte-americano é extensiva e predatória nas salas brasileiras. Não é a toa a grita de Fernando Meirelles com o fraco desempenho de bilheteria de Xingu. Mas aí reside outro problema do nosso cinema: ele não sabe se promover. Essa é a próxima lição a ser aprendida. Afinal, essa é uma briga de cachorro grande.

(Texto originalmente publicado no site "Papo de Cinema" em junho de 2012)

Jorge Ghiorzi

Sobre o "Janela da Tela"

Caro leitor do blog “Janela da Tela”.

Meu nome é Jorge Ghiorzi, morador de Porto Alegre (RS). Sou Bacharel em Jornalismo e pós-graduado em Marketing. Atuo profissionalmente como redator, roteirista e produtor de eventos culturais. Fui editor da publicação “Cine Guia Preview” (1995 – 2000) e do newsletter “Cine Guia Preview” (2009 – 2011). Atuei como produtor do Festival de Cinema de Gramado por 17 anos.

Já colaborei com críticas de cinema para jornais do interior do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e também outros blogs e portais, como “Papo de Cinema”, “Facool” e “Movi+”, e também para a revista “Voto”. Atualmente publico a coluna “Cinefilia” no site DVD Magazine. Criei em 2009 a produtora cultural “Cine UM”, que desenvolve uma programação de cursos livres de cinema em Porto Alegre e no interior do estado.

Aqui no “Janela da Tela” serão republicados alguns destes textos e comentários e também material exclusivo deste espaço.

Grato pela leitura!

Jorge Ghiorzi
jghiorzi@gmail.com