Rodado em Londres no ano de 1970 e lançado mundialmente no ano seguinte, Laranja Mecânica virou alvo da censura na época e foi proibido no Brasil. Por quase toda a década de 70 os brasileiros só ouviram falar daquele polêmico filme realizado por Stanley Kubrick, após a obra-prima 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Durante anos, para os brasileiros a única referência ao filme era sua inovadora trilha sonora que misturava experiências eletrônicas do compositor Walter Carlos (antes de virar Wendy Carlos) com as composições de Beethoven. Naquela época era comum grupos de cinéfilos brasileiros viajarem para Montevidéu e Buenos Aires para assistir aquele famoso filme do qual tanto de falava no mundo todo. O filme só foi liberado para exibição no Brasil em 1978 em cópias onde foram incluídas “bolinhas pretas” sobre as genitálias dos corpos nus. A anacrônica censura da época achava mais importante esconder a nudez do que expor as plateias à violência exacerbada que o filme mostrava de maneira até então nunca vista em uma produção de grande estúdio. Hoje as “bolinhas pretas” não passam de curiosidade e mico histórico ao qual os brasileiros foram submetidos.
O tema central e pano de fundo de Laranja Mecânica é a violência. A obra de Kubrick, no entanto, expõe duas formas distintas de violência, cada qual com suas origens e consequências. Existe a violência do indivíduo, ancestral e intrínseca no ser humano quando não reprimida pela convivência social, e existe a violência do Estado, institucionalizada, amparada pela Lei e justificada pela manutenção do status quo e controle do coletivo. O filme de Kubrick trata destas duas formas dedicando a cada uma delas metade do filme.
Na primeira parte conhecemos o jovem Alex (Malcolm McDowell) o anti-herói que conduz a ação. Numa sociedade de futuro incerto as leis já não fazem muito efeito e a desagregação social parece chegar ao seu limite. É nesse ambiente que Alex leva sua vida despreocupada onde seus únicos prazeres são encher a cara de “moloko”, uma espécie de leite aditivado com drogas, fazer arruaças com os amigos e ouvir músicas de Beethoven, a quem chama de “Ludwig Van”.
A segunda parte inicia quando Alex é detido pela polícia e conduzido para uma instituição penal. Com a perspectiva de ganhar a liberdade, Alex se submete voluntariamente a um tratamento experimental que promete reabilitar delinquentes eliminando seu instinto natural para a violência. Ministrado por psicólogos a serviço do Estado, o tratamento consiste em expor o criminoso a sessões contínuas de cenas chocantes de violência explícita ao som da 9ª Sinfonia de Beethoven! Depois desta lavagem cerebral o pobre Alex é transformado numa pessoa totalmente indefesa que reage com náuseas e ânsia de vômito a qualquer manifestação de violência. Vira uma “laranja mecânica”, um ser orgânico que age mecanicamente. Redimido, Alex retorna para a sociedade e vive como um pária, sem papel social, renegado pela própria família, vingado por vítimas do passado e humilhado por seus antigos companheiros de delinquência.
A possibilidade do livre arbítrio é um ponto de discussão que Kubrick expõe com clareza em Laranja Mecânica. No processo de controle da criminalidade o Sistema impõe uma solução que transforma o indivíduo num ser robotizado, um sujeito sem a opção da escolha. E no dizer do religioso que acompanha Alex na prisão “se o homem não pode escolher, deixa de ser um homem”. Condicionado e sem opções de comportamento só resta a Alex o papel de inocente útil, manipulado por interesses políticos que o transformam em exemplo bem sucedido de reabilitação.
Repleto de ironia e sarcasmo, a adaptação de Stanley Kubrick preserva a essência da obra original. Diálogos quase literais do livro e a utilização de neologismos como “vidiar” (ver), “entra-e-sai” (sexo), “guliver” (cabeça) e “horrorshow” (espetacular) estão na adaptação, revelando a genialidade da criação de Anthony Burgess. Mas Kubrick, um mestre com pleno domínio do meio cinematográfico, fez uso de inúmeros recursos para valorizar o rico material que tinha nas mãos. Sua reconhecida habilidade em utilizar músicas clássicas nas trilhas sonoras foi mais uma vez exercida com talento em Laranja Mecânica. O mesmo se pode dizer de seu talento em criar sequencias climáticas, seja pelo uso da câmera de mão, seja pela cenografia elaborada, repleta de referências artísticas e pictóricas. Em todos seus trabalhos o realizador sempre evidenciou que reconhece o poder da imagem e seus significados, e as manipula com maestria.
Todos os elementos cinematográficos de Laranja Mecânica parecem hipnóticos e exagerados. Figurinos, cenografia, interpretações, música, tudo parece transmitir uma explosão sensorial de cores, sons e ritmos, como se a visão do mundo fosse resultado de algumas doses a mais de “moloko”. Nada mais correto se levarmos em conta que o “humilde narrador” da história é o próprio Alex, presente em 100% das cenas. É através de seus olhos e de sua percepção que somos introduzidos naquela realidade distorcida. O cinismo e a hipocrisia denunciam a personalidade egoísta do narrador que constrói o mundo de acordo com suas convicções e conveniências. Quando Alex percebe que se transformou em “objeto” cobiçado pelo Sistema assume sem escrúpulos o discurso dos poderosos. O cinismo do pragmatismo vence. O povo quer ouvir mentiras com aparência de verdades, então Alex declara em alto e bom som: “Sim, estou curado”.
Se no início do filme Alex era o algoz da sociedade, adepto da ultraviolência inconsequente, ao final se apresenta como uma vítima do Sistema. Apenas mais uma peça da engrenagem da máquina de moer pessoas. Na sequência final o verdadeiro Alex se revela. Seu refúgio de sanidade ficava num cantinho intocado da mente, capaz de fantasiar e imaginar uma sessão de sexo selvagem cercado por uma plateia que o aplaude ao mesmo tempo em que é bajulado pela imprensa e políticos em seu leito hospitalar. Alex aprendeu o jogo da mídia que se apodera da imagem e transforma a fantasia em realidade e a realidade em fantasia.
É bastante comum a constatação de que a adaptação cinematográfica de livros sempre deixa a desejar. Normalmente o livro é sempre melhor. Definitivamente este não é o caso de Laranja Mecânica. O original de Anthony Burgess já era uma obra respeitável, no entanto, nas mãos de Stanley Kubrick o material ganhou uma dimensão superior. Seu talento em sustentar visualmente uma narrativa está todo lá, em cada cena, em cada sequencia. Em Laranja Mecânica, o filme, Kubrick foi além de “Laranja Mecânica”, o livro. Ampliou o universo de Burgess e concebeu uma fábula provocante, assustadora e visionária que mantém sua força até hoje.
(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em março de 2014)
Jorge Ghiorzi