36º 25’ N 116ª 48’ O. Estas são as coordenadas
geográficas que assinalam a localização do “Zabriskie Point” no globo
terrestre. Um lugarzinho perdido no mapa, no meio do Parque Nacional do Vale da
Morte, no deserto da Califórnia. O terreno árido é resultado de um lago que
secou há milhões de anos. Uma região onde a vida é um desafio constante da
natureza.
Este é o cenário que inspirou a única experiência
de Michelangelo Antonioni em terras norte-americanas. Zabriskie Point (1970)
foi realizado num período de grande evidência do diretor, quando o nome de
Antonioni se consolidava como um cineasta com livre trânsito internacional, além
da condição de apenas um realizador de cinema de arte europeu. Seu trabalho
anterior, primeiro em língua inglesa, foi Blow-Up
– Depois Daquele Beijo (1966), e o seguinte foi O Passageiro – Profissão: Repórter (1975).
Os emblemáticos tempos de passagem da década de 60
para os 70 estão na essência da narrativa de Zabriskie Point. Período de lutas pelos direitos civis, emancipação
dos negros, contracultura, guerra do Vietnã, movimento hippie, psicodelia e rock,
muito rock. O filme de Antonioni já inicia conflagrado, no olho do furacão. Na
sequência de abertura, em estilo documental, somos jogados no meio de uma
assembleia de universitários no campus discutindo sobre a iminente greve e as
ações do grupo no enfrentamento contra a repressão policial. Logo identificamos
entre os universitários o protagonista da história. O jovem Mark (Mark
Frechette) parece alheio e distante da veemência dos discursos revolucionários
de seus colegas. Ao se manifestar em público pela primeira e única vez na
reunião revela sua verdadeira natureza de independência. Declara em alto e bom
tom: “Estou disposto a morrer (pela causa). Mas não de tédio”. E sai da sala de
forma teatral e dramática, para espanto dos estudantes pela clara exibição de
individualismo.
Ao participar de um confronto da policia com um
grupo de grevistas, Mark é testemunha da morte de um policial de Los Angeles.
Por estar portando uma arma, Mark foge do local para não ser acusado de
homicídio. Sem destino, sem mapa, sem bússola e sem dinheiro no bolso, decide, num
impulso, roubar um pequeno avião e seguir sem rumo em direção ao deserto.
A outra protagonista da história é Daria (Daria
Halprin), secretária de um poderoso empresário (Rod Taylor) que planeja
construir um mega empreendimento residencial em pleno deserto de Mojave. Ao
fazer uma viagem de carro por este mesmo deserto, para encontrar-se com seu
chefe (e talvez amante, pode-se supor pelo contexto), Daria decide dar uma
parada numa cidadezinha no meio do caminho para visitar um amigo. Durante a viagem
Daria percebe no céu um pequeno aviãozinho que começa a dar voos rasantes sobre
seu carro. Nestas coordenadas do deserto as histórias dos dois personagens
errantes se cruzam e os destinos de ambos mudam de rota.
A escolha do deserto como cenário faz todo sentido
se considerarmos que Michelangelo Antonioni é um cineasta reconhecido pelo
pleno domínio da mise-en-scène nas
geografias dos espaços cênicos que representa em suas obras. Em Zabriskie Point o diretor expõe o
ambiente urbano da metrópole, com sua sufocante profusão de placas, painéis,
outdoors e publicidade, em contraste com a paisagem desolada e plácida do
deserto, espécie de paraíso (ainda) intocado pela civilização. Neste aspecto, o
ambiente representa a própria natureza interior dos personagens que promovem
uma fuga para, por fim, encontrar-se em si mesmo. Há sim algo de
existencialista nesta jornada de descoberta. Um sonho utópico perseguido que
não se completa. Fica apenas a desilusão.
Michelangelo Antonioni se posicionava como um
intelectual marxista, no entanto, contradizendo este discurso, seus filmes
invariavelmente tratavam de uma elite burguesa com seus problemas típicos,
longe da dura realidade de um trabalhador proletário. Ainda assim, não resta
dúvida que Zabriskie Point é um filme
explicitamente anticapitalista, de contestação ao establishment e à manutenção
do status quo da ordem ideológica, política e econômica instalada. Há, porém,
uma fragilidade nesta abordagem um tanto idealizada que manifesta uma
indulgência demasiada com os movimentos jovens, plenos de contestação, mas
vazios nas alternativas que sugerem como opção.
Realizado há mais 45 anos, com a ambição de
retratar um período peculiar da sociedade norte-americana, Zabriskie Point por vezes soa por demais datado e preso a um estilo
“hiponga”, típico daquele momento. Mas não há como negar, porém, que o olhar
europeu (estrangeiro) de Antonioni foi suficientemente bem sucedido para
transmitir o espírito da América naquele início de década. Ainda que não tenha
sido bem recebido no lançamento, ficando aquém das expectativas nas
bilheterias, o longa-metragem foi reavaliado ao longo do tempo e hoje pode ser
classificado como um dos melhores trabalhos de Michelangelo Antonioni.
Pelo menos duas sequências icônicas de Zabriskie Point passaram para a
história. A primeira delas é a sessão de amor coletivo em pleno deserto com
vários casais transando em meio às areias, um símbolo do sexo livre em conexão
com as forças da natureza. A outra sequência de destaque, ainda hoje
impactante, é a explosão final, metáfora do desejado fim do consumismo
capitalista. De beleza plástica excepcional, a sequência ganha ares de pintura pop art a lá Andy Warhol ou Jackson
Pollock. Com direito a uma hipnótica trilha sonora composta pelo Pink Floyd.
Na época do lançamento mundial Zabriskie Point foi censurado no Brasil pela explosiva mistura de
política, contestação, corpos nus e sexo livre.
Assista o trailer: Zabriskie
Point
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia”
do DVD Magazine em novembro de 2016)
Jorge Ghiorzi