terça-feira, 12 de dezembro de 2017

“A Baía dos Anjos”: vidas em jogo


A sabedoria de um conhecido provérbio decreta que quem é “feliz no jogo” necessariamente será “infeliz no amor”. E vice-versa. Ou seja, não podemos possuir todos nossos sonhos. Algo se perde pelo caminho. O destino, portanto, pode estar sendo decidido sobre o veludo verde de uma mesa de carteado, ou no giro de uma roleta. Ou não. A sorte está lançada.

Estas questões estão no centro da narrativa de A Baía dos Anjos (La Baie des Anges) dirigido pelo francês Jacques Demy em 1962. O universo dos cassinos e seus obstinados frequentadores faz pano de fundo para a história de duas almas desgarradas de seus vínculos familiares que encontram na adrenalina das apostas uma razão para viver. Até que o amor entra no jogo das emoções e as apostas ficam mais arriscadas. Ou quebram a banca, ou quebram o coração.

Jean (Claude Mann), funcionário de banco entediado com a rotina do trabalho, tem uma vida solitária e aborrecida com o pai, com quem tem uma relação conflitada. Por sugestão de um colega de trabalho, apostador costumaz, Jean é induzido a entrar no mundo dos jogos em busca de um pouco de emoção e dinheiro fácil. No cassino ele conhece Jackie (Jeanne Moreau), uma parisiense de meia idade que abandonou marido e filhos para se aventurar no vício das roletas em Nice, vizinha de Cannes, na Riviera francesa. Sem planos definidos para o futuro, os dois encontram interesses comuns e mergulham de cabeça na orgia do perde e ganha dos jogos, arriscando tudo como se não houvesse amanhã. Aos poucos, no entanto, cresce uma paixão que vai além das mesas dos jogos.


Filmes sobre o vício dos jogos costumam contar histórias de excessos, limites, riscos e superação. Mostram personagens em situações limite, beirando a autodestruição, cuja jornada de aprendizado acaba por representar um renascimento. Uma vida nova concebida a partir de uma expiação ética e/ou moral. O filme de Jacques Demy segue por esta trilha, introduzindo porém outro elemento catalisador com poder de transformação: a paixão amorosa.

O personagem Jean é um homem frágil, em busca de sentido para a vida. Um homem em reconstrução. Simbólica para esta compreensão é sua imagem refletida em uma série de espelhos, no corredor de entrada do cassino. Imagem de uma personalidade fragmentada aspirando sua integralidade.

Por sua vez, a personagem Jackie exala autoconfiança e controle. Ao menos na superfície de sua personalidade. Um sentido de autodefesa reprime a verdadeira Jackie, uma mulher em crise que rompe laços familiares em nome de uma libertação ilusória. Jackie é tão ou mais frágil que Jean, na medida em que não reconhece suas contradições. Esteticamente esta bipolaridade fica expressa no figurino da personagem, que alterna as cores branco (anjo?) e preto, conforme os estados da alma da personagem.


Filme de forte teor existencialista, seguindo uma certa tendência do cinema francês, A Baía dos Anjos apresenta personagens que parecem dialogar mais com seu próprio interior do que com os interlocutores. Falam e verbalizam mais para si do que para o outro. Isto inevitavelmente se reflete nas interações frias entre os personagens, ainda que imersas no fogo das paixões. As relações amorosas do casal são marcadas por uma quase total ausência de sentimentalismo, mas sempre elegantes. Um encontro desesperado de dependentes, quase uma fuga de vidas frustradas. Jackie carrega a culpa do abandono do marido e filhos, e Jean é assombrado pelo fantasma do pai repressor. O que falta em fogo e paixão no romance dos dois, sobra em reflexão e análise.

O final conciliador de A Baía dos Anjos revela o desconforto de Jacques Demy em abandonar seus personagens à própria sorte. A vida é um jogo. Às vezes perdemos. Às vezes ganhamos. Se na vida real não temos controle do destino, na vida da ficção podemos idealizar e conciliar nossos sonhos. E a roda da fortuna volta a girar, até a próxima aposta.


Ainda que o início da carreira de Jacques Demy tenha ocorrido no período de surgimento da Nouvelle Vague, o fato é que o cineasta passou relativamente ao largo do movimento. Cineasta de perfil mais acadêmico, Demy não tinha especial interesse em romper com a chamada narrativa clássica. Sua filmografia revela um realizador mais afeito a contar histórias com personagens interessantes do que contestar o status quo de um cinema tradicional.

La La Land, o neon-musical de Damien Chazelle, que vem encantando multidões, buscou um pouco de inspiração num dos maiores sucessos da carreira de Jacques Demy, quem diria. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, o musical Os Guarda-Chuvas de Amor, com Catherine Deneuve, lançado em 1964, revolucionou o gênero tipicamente hollywoodiano. Nada mal para um cineasta clássico como Jacques Demy.

Assista o trailer: A Baía dos Anjos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

“Assassinato no Expresso do Oriente”: suspeitos a bordo


“Quem matou?”. A pergunta clássica da literatura policial está de volta aos cinemas com a refilmagem de uma das mais conhecidas histórias de crime e mistério de Agatha Christie. O livro “Assassinato no Expresso do Oriente” ganhou uma primeira versão cinematográfica em 1974, com direção de Sidney Lumet (Um Dia de Cão). Quarenta e três anos depois a história volta às telas com uma nova adaptação, desta vez sob o comando de Kenneth Branagh, que também atua interpretando o investigador belga (não francês!) Hercule Poirot, a mais célebre criação da escritora de livros policiais mais lida em todo o mundo.

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express) se passa nos anos 30, época de ouro do famoso serviço de trem de longa distância que ligava Istambul à Paris, unindo o Oriente ao Ocidente com viagens cheias de glamour e luxo. Numa destas viagens, que reunia passageiros da elite e da aristocracia auropeia, ocorre um assassinato na cabine de um dos vagões. Entre os passageiros está o famoso detetive Hercule Poirot que precisa utilizar todas suas habilidades dedutivas para desvendar o crime antes que o trem chegue a seu destino. Um elenco de estrelas de primeira grandeza está entre os suspeitos: Penélope Cruz, Willem Dafoe, Judi Dench, Daisy Ridley e Michelle Pfeiffer.


A antiga versão da história, aquela de Sidney Lumet, era um produto típico de seu tempo, que revisto hoje mostra que não resistiu bem ao teste do tempo. Recheada de grandes estrelas e por demais acadêmica, a produção é uma peça de museu da velha Hollywood, aposentada nos anos 70. Portanto, a nova versão chega com o compromisso de atualizar a abordagem e renovar o interesse na obra da “rainha do crime”. Um dos pontos críticos, fundamental para o êxito da empreitada, é a figura do investigador Hercule Poirot, encarnado com equilíbrio, charme e elegância pelo próprio Branagh que compõe uma interpretação bastante peculiar, completamente distinta do Poirot cômico e afetado de Albert Finney (em 1974), e também do Poirot bufão histriônico de Peter Ustinov, outro notório intérprete do investigador.

O enredo de Assassinato no Expresso do Oriente é um dos mais clássicos exemplos subgênero do “locked room”, que narram mistérios do “quarto fechado”, quando o crime ocorre em um espaço isolado e a suspeita da autoria recai sobre todos os presentes no local. O diretor Kenneth Branagh explora com habilidade a geometria espacial do trem, alternando a sensação de confinamento dos exíguos espaços e compartimentos dos vagões de passageiros com algumas poucas cenas externas na paisagem gelada da montanha coberta de neve. Neste aspecto duas sequências de destacam. A primeira delas é o longo travelling que acompanha toda a extensão do trem num belo e elegante plano-sequência que apresenta várias das personagens, perfeitamente integradas à ação narrativa que se desenrola no primeiro plano. Outro exercício de estilo de Branagh é a sequência de apresentação do cenário do crime, quando a câmera se posiciona no alto, acima do teto da cabine da vítima, exibindo a ação como se estivéssemos testemunhando a movimentação de ratinhos de laboratório percorrendo os meandros do espaço. Cineastas como Martin Scorsese (Taxi Driver), Steven Spielberg (Minority Report) e Brian De Palma (Olhos de Serpente) também já utilizaram este enquadramento de grande efeito cênico.


Egresso do meio teatral, o background artístico de Kenneth Branagh se mostra presente na sua direção de atores e na mise-en-scène de Assassinato no Expresso do Oriente, particularmente na sequência final, quando a autoria do assassinato é revelada. Montada como uma pequena peça teatral, a sequência é caracterizada pela rigidez das marcações – típicas dos palcos – onde se sobressai a essência da interpretação dos atores/atrizes, cada um deles com seu momento de brilhatura pessoal, com destaque absoluto para Michelle Pfeiffer, cada vez melhor na retomada da sua carreira cinematográfica. Na sequência somos inclusive brindados como uma representação simbólica da célebre imagem da Santa Ceia, quando todos ficam sentados à mesa, atentos às sábias palavras de Poirot que traz a verdade à luz.

Sabemos todos dos riscos envolvidos nos remakes. As comparações com as produções originais são inevitáveis, e de modo geral o histórico tem provado que os insucessos são maiores que os êxitos. Mas, aqui não é o caso. A nova versão de Assassinato no Expresso do Oriente faz frente e eventualmente se mostra até superior do que a original de 1974. Uma prova de que a produção deu certo é a dica que é dada num pequeno diálogo no final do filme, quando a presença de Hercule Poirot, “o melhor investigador do mundo”, é solicitada para solucionar um novo caso, desta vez no Egito. Seria uma sugestão que poderemos ter em breve uma nova versão para Morte Sobre o Nilo, produção dirigida por John Guillermin (King Kong) em 1978? As pistas foram dadas e não é preciso ser nenhum gênio investigativo para deduzir que Kenneth Branagh está construindo uma franquia para si próprio.


Jorge Ghiorzi

terça-feira, 21 de novembro de 2017

“Boneco de Neve”: o assassino que veio do frio


A crescente qualidade, criatividade e diversidade da produção de livros policiais vindos da Escandinávia (Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca) revelou uma nova geração de escritores de suspense e crime que está dominando este que é um dos gêneros mais populares da literatura. Na última década os livros policiais escritos em países de língua inglesa (fundadores do gênero, diga-se) estão ganhando a forte concorrência de escritores escandinavos que estão conquistando a atenção dos leitores em todo o mundo. Ou seja, deixou de ser um fenômeno localizado. O reinado absoluto de nomes consagrados e seminais das histórias de mistério como Agatha Christie e Arthur Conan Doyle hoje sofre a ameaça de autores de sucesso como Stieg Larsson (da Trilogia Millenium), Henning Mankell (criador do inspetor Kurt Wallander), Lars Kepler (pseudônimo do casal de escritores Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril), Arnaldur Indridason (“O Silêncio do Túmulo”) e Anne Holt (“1222”).

O caminho natural e inevitável dos grandes best sellers é o cinema. A estrela da vez é o escritor norueguês Jo Nesbo, criador do detetive Harry Hole que já protagonizou dez livros e chega agora às telas com uma grande produção internacional. Baseado no sétimo livro da série, Boneco de Neve (The Snowman), dirigido pelo sueco Tomas Alfredson (de Deixa Ela Entrar e O Espião Que Sabia Demais) apresenta o repertório que é marca registrada das histórias policiais quem vem da Escandinávia: paisagens geladas, personagens sombrios, crimes violentos e muito sangue sobre a neve.


Durante a primeira nevasca do inverno norueguês uma mulher, casada e mãe, desaparece sem explicação. A única pista identificada é um boneco de neve construído em frente à sua casa. O investigador policial Harry Hole (Michael Fassbender) entra no caso e, com a ajuda da também investigadora Katrine Bratt (Rebecca Ferguson, de Missão Impossível – Nação Secreta), descobre que o desaparecimento tem ligações com um antigo caso de assassinato e pode indicar uma nova série de crimes de um serial killer.

Ambientes desolados, gelados, descoloridos costumam abrigar pessoas frias, distantes, à beira da depressão. Parte clichê, parte realidade, o fato é que ambientes extremos interferem de fato na personalidade dos seus habitantes, que em muitos casos recorrem à bebida para suportar a realidade depressiva. Histórias policiais sombrias como Boneco de Neve refletem com clareza este contexto. O protagonista Harry Hole é o protótipo do policial sem muitas perspectivas, de baixa estima, separado da família e amigo íntimo do álcool que aquece o corpo e anestesia a mente. O caso do assassino do boneco de neve traz um pouco de vida e ânimo à vida do policial, interpretado por um correto e contido Michael Fassbender.


A direção elegante de Tomas Alfredson conduz a história com algum interesse até a metade do filme. Daí pra frente as coisas deixam de ter sentido e a narrativa perde o rumo e põe tudo a perder num thriller que prometia melhores resultados. A sensação mais evidente é que Boneco de Neve, o filme, não deu conta da complexidade da trama que o livro apresenta. Respostas, razões e motivações. Isto é tudo que se deseja de uma boa história policial. Mas o filme de Alfredson ficou devendo, e o resultado é decepcionante. As explicações para o crime, bem como a resolução do mistério, são confusas e estão longe de ser impactantes – como faziam supor – e tudo acaba num clímax que deixa por demais a desejar. Isto sem falar em personagens que parecem ter uma forte razão para sua inclusão na trama, mas, no entanto, somem sem dizer a que vieram. O personagem de J.K. Simmons, um poderoso empresário, é um exemplo deste desperdício de talento.

Consta que o realizador andou reclamando que não conseguiu filmar todas as cenas do roteiro. Isto, de fato, fica bem evidente quando se constata que algumas cenas presentes no trailer não estão incluídas na edição final do filme. Parece que nem a habilidade da montadora Thelma Schoonmaker (habitual colaboradora de Martin Scorsese, que assina como um dos produtores executivos) conseguiu resolver os problemas do roteiro, ou do material disponível, vai saber.

Assista o trailer: Boneco de Neve

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

“Os Assassinos”: o passado condena


“Tudo o que você precisa para fazer um filme é uma arma e uma garota”, já dizia Jean-Luc Godard. Esta definição síntese contém os elementos chaves que fizeram o sucesso de uma série de filmes que, conscientemente ou não, levaram este conceito ao pé da letra. Uma arma em cena significa conflito, disputa, ação. Uma mulher simboliza desejo, paixão, sacrifício. Este tipo de pensamento misógino marcou a fase de ouro do chamado “cinema noir”, que exibia na prática a receita formulada posteriormente por Godard nos anos 60. Mais do que um gênero em si, o Noir era um estado de espírito do cinema. Um modo de ser e ver o mundo, caracterizado pela dubiedade, dissimulação, caráter discutível e ética flexível.

Cronologicamente produzido de forma mais regular na metade do século XX (anos 40 e 50), o filme Noir, de fato, sempre existiu, não se limitando, portanto, a um período específico. Regularmente, até hoje, o cinema nos oferece obras que carregam fortemente o espírito estético e moral daqueles filmes. Drive (2011), de Nicolas Winding Refn, é um exemplo bem recente. Um mais antigo a ser citado é Os Assassinos (The Killers), realizado por Donald (Don) Siegel em 1964. Inspirado em um pequeno conto de Ernest Hemingway, esta produção é o que se poderia chamar de “noir de raiz”, que substitui a magia do preto e branco pelas cores vibrantes do Technicolor.


Em síntese o conto de Hemingway conta a história de um homem, envolvido num assalto, que sabe que vai ser morto por assassinos de aluguel, mas não tenta fugir. Nesta adaptação para o cinema, que é uma refilmagem (em 1946 Robert Siodmark dirigiu uma primeira versão), o diretor Don Siegel optou, acertadamente, em contar a história do ponto de vista dos assassinos. Esta opção narrativa necessariamente desloca a ação e acrescenta elementos de mistério e suspense, na medida em que os matadores (e nós também) não sabem as razões do crime e não entendem a resignação passiva da vítima. A descoberta da verdadeira história por trás de um crime comum passa a ser uma obsessão dos assassinos, que vislumbram a possibilidade de ficar com o dinheiro do assalto.


Tudo começa quando a dupla de matadores de aluguel, interpretados por Lee Marvin e Clu Gulager (ambos excelentes em seus papéis), invade uma escola para cegos com o objetivo de executar um professor (John Cassavetes). Cumprem a missão com facilidade, pois o alvo não esboça qualquer intenção de escapar. Isto intriga os matadores que decidem investigar a fundo a história, que envolve um passado secreto do executado e seu algoz, o contratante dos assassinos (Ronald Reagan, sim, o futuro presidente dos EUA). Esta busca pelo passado mostra uma série de flashbacks que vão desvendando as razões daquela morte. Personagens e histórias vão surgindo em cena, esclarecendo pequenas partes de um intrincado quebra cabeças. E, como todo noir que se preze, temos também uma femme fatale, interpretada por uma sedutora Angie Dickinson. Tudo não passava de um assalto a um caminhão de transporte de valores que acabou em traição no grupo. A morte encomendada era portanto apenas um acerto de contas. Mas, nada é tão simples como parece. Há uma complexidade nas relações do trio John Cassavetes - Ronald Reagan - Angie Dickinson, que remete para um desfecho inesperado.


Em Os Assassinos já encontramos traços do estilo de Don Siegel  que seriam uma constante nos filmes que dirigiu ao longo dos anos (Meu Nome é Coogan; Os Abutres também tem Fome; O Estranho que Nós Amamos; Perseguidor Implacável; O Homem que Enganou a Máfia; O Telefone; Alcatraz, Fuga Impossível): economia de planos, precisão do corte, diálogos curtos. Nada em excesso. Tudo funcional e preciso. O pupilo e herdeiro Clint Eastwood, que muito filmou com Siegel, em sua carreira como diretor segue a mesma cartilha do velho mestre, e costuma se dar muito bem.

A dupla de assassinos (Lee Marvin e Clu Gulager), antes e depois do crime, conversam bastante, são irônicos, durões, dizem banalidades, fazem coisas triviais do dia a dia. Enfim, até parecem gente bem bacana. Isso por acaso lembra outra dupla famosa de assassinos? Que tal John Travolta e Samuel L. Jackson em Pulp Fiction? E mais, não seria nenhuma surpresa se a estrutura de flashback / presente do mesmo Pulp Fiction fosse uma inspiração de Quentin Tarantino a partir dos retrocessos e avanços da narrativa de Os Assassinos.

Assista o trailer: Os Assassinos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

“O Céu Que Nos Protege”: um deserto de paixões


Ao longo de toda a carreira o cineasta Bernardo Bertolucci evidenciou nos filmes que dirigiu sua crítica à sociedade burguesa, alternando momentos de maior contundência política, como em A Estratégia da Aranha; O Conformista e 1900, e outros mais amenos, como La Luna; Beleza Roubada ou Os Sonhadores. No entanto, o que mais fica flagrante ao examinar-se sua filmografia com a perspectiva histórica, é que Bertolucci no fundo sempre foi um grande romântico. Por baixo daquele verniz politizado, tendendo ao intelectual, sempre bateu um coração seduzido pelas artimanhas do amor.

Uma produção, não exatamente valorizada na sua obra, meio esquecida até, conseguiu reunir de forma equilibrada estas duas facetas de Bertolucci. Em O Céu Que Nos Protege (The Sheltering Sky, 1990) nos deparamos com uma síntese consolidada que acomoda o projeto estético ao discurso político do realizador. A consagração mundial com O Último Imperador (1987), vencedor de diversos prêmios internacionais, incluindo 9 prêmios do Oscar, tornou Bernardo Bertolucci um realizador global com cacife para comandar grandes superproduções. Nesta fase da carreira ele passa a fazer o que poderíamos chamar de “cinema étnico”. Deste período, além dos citados O Último Imperador e O Céu Que Nos Protege, também podem ser incluídos filmes como O Pequeno Buda e Assédio.


Baseado no livro de Paul Bowles, com roteiro do próprio Bertolucci em parceria com Mark Peploe (ambos também escreveram O Último Imperador e O Pequeno Buda), o filme tem a ação centrada no ano de 1948, período marcado pela recuperação global pós-Segunda Guerra Mundial. O cenário é o Norte da África, particularmente na região dos desertos, incluindo o Saara.

Os protagonistas são Port Moresby (John Malkovich) e Kit Moresby (Debra Winger), casal nova-iorquino em crise conjugal. Em busca de um sentido existencial, e também reacender uma paixão que sucumbiu com o peso dos anos, eles ficam viajando pelo mundo, sem plano de voo nem destino definido. Ficam ao sabor do vento e dos desejos da hora. Enquanto viajam, esperam curar as feridas de um relacionamento desgastado. É sintomática e reveladora a explicação que ambos dão para a diferença entre “turista” e “viajante”. Segundo Port, “o turista pensa em voltar para casa assim que chega a algum lugar”. E Kit complementa: “o viajante pode nem voltar”. Port e Kit são, portanto, viajantes por definição. Há ainda um terceiro elemento nesta jornada. Um amigo do casal, George Tunner (Campbell Scott), companheiro de viagem, que assume o papel de confidente e parceiro de aventuras, ao mesmo tempo em que nutre sentimentos reprimidos pela amiga Kit. Apresenta-se então como um fator desagregador num triângulo amoroso involuntário.



Simbolicamente uma viagem tanto pode significar reciclagem, descoberta ou fuga. A jornada de Port e Kit consegue abarcar todos estes significados. Um casal em constante movimento, em busca de um porto seguro, ainda que seja apenas a miragem de um oásis no deserto. Quanto mais se afastam do mundo urbano das metrópoles, repleto de recursos materiais, e se embrenham na vastidão de terras desertas, mais se aproximam de seus verdadeiros sentimentos. Uma viagem de sinal trocado, rumo ao passado, partindo da civilização para encontrar a plenitude apenas no primitivo. Numa das mais belas e emblemáticas sequencias de O Céu Que Nos Protege, Port e Kit saem para passear de bicicleta e se deslumbram com a visão majestosa do deserto visto do topo de um penhasco. Seduzidos pelo espetáculo da natureza, se entregam aos desejos e fazem amor sobre as pedras. Sob o manto azul do céu que tudo cobre e protege, vivem um momento fugaz de sintonia plena, acompanhados pela trilha sonora grandiosa de Ryuichi Sakamoto e a fotografia espetacular do mestre Vittorio Storaro.


O ritmo lento, por vezes contemplativo, da narrativa vai num crescendo emocional das personagens que se (re)descobrem como agentes do seu próprio destino. Port e Kit podem fugir do passado, mas não controlam o futuro. Resta apenas o presente, imponderável. Mas, a tragédia sempre ronda as histórias de amor. Ao aflorarem os verdadeiros sentimentos que ambos sentem, o destino prega uma peça. O tempo perdido não volta mais. No terceiro ato, após a jornada sem mapas nem bússola, a roda da vida gira e volta ao início. Ao retornar ao ponto inicial da jornada, uma nova Kit entra no restaurante do hotel e recebe um questionamento metalinguístico do próprio narrador do filme (interpretado pelo escritor Paul Bowles): “Você está perdida?”. E Kit, derrotada e exaurida, confessa: “Sim”.

Road movie existencial com forte caráter intimista, O Céu Que Nos Protege é um projeto ambicioso, repleto de beleza, paixão e sentimento.

Assista o trailer: O Céu Que Nos Protege

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em janeiro de 2017)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

“Crônica de um Amor Louco”: poesia no caos


Conhecido pela crueza de seus contos, histórias curtas e crônicas ambientadas no submundo dos excluídos, desiludidos e errantes sociais, o escritor Charles Bukowski encharcou sua obra com muito álcool, muita sacanagem, muito sexo, muitos palavrões e muitas mulheres sem nome. O interesse do cinema por adaptações de seus livros vem desde os anos 70. Mas foi apenas nos anos 80 que sua obra ganhou maior visibilidade para o grande público graças ao lançamento de três títulos adaptados de suas histórias.

Um deles foi Barfly – Condenados pelo Vício, dirigido por Barbet Schroeder em 1987, estrelado por Mickey Rourke e Faye Dunaway, num período onde ambos gozavam de grande prestígio na indústria. Ainda naquele mesmo ano, o próprio Schroeder lançaria também o documentário The Charles Bukowski Tapes, que reúne uma série de entrevistas com o escritor. Outro destaque daquele período foi Crazy Love (também 1987), dirigido por Dominique Deruddere, baseado em três contos do escritor. No entanto, a melhor de todas as presenças de Bukowski nas telas surgiu bem no início dos anos 80, permanecendo até hoje como uma das mais bem sucedidas adaptações da sua vida e obra, que se mesclam de forma simbiótica pelo forte caráter autobiográfico de seu texto. O filme era Crônica de um Amor Louco (Storie di ordinária follia, 1981), realizado pelo cineasta italiano Marco Ferreri, o mesmo de A Comilança.

Baseado no primeiro dos dois volumes da obra “Ereções, Ejaculações e Exibicionismos”, particularmente no conto “A mulher mais linda da cidade”, e também inspirado na vida do próprio Charles Bukowski, Crônica de um Amor Louco conta a história de Charles Serking (Ben Gazzara), um poeta errante, amante das bebidas, das mulheres e das letras, que vive perdido na cidade dos anjos perdidos, Los Angeles. Serking é uma encarnação ficcional, um alter-ego, do próprio Bukowski, cujas histórias contadas foram também vividas, vivenciadas. Ele fala (no caso, escreve) com conhecimento de causa.


Naquela vida sem rumo, passando de bar em bar, vagando pelas ruas em busca de fortuitas aventuras amorosas, e, eventualmente sentando à máquina de escrever, quando sóbrio, para redigir poesias e contos, Serking acaba por cruzar com uma alma gêmea, a bela prostituta Cass (Ornella Muti), também em busca de um sentido para sua atormentada existência. Deste encontro nasce um romance amargurado, marcado pela urgência e o desespero. Enquanto Serking purgava sua angústia através da poesia, Cass buscava o equilíbrio emocional cometendo o autoflagelo físico, punindo-se simplesmente por ser bela. Um amor de conotações sadomasoquistas se estabelece então.

Serking e Cass são duas peças “defeituosas” que não se encaixam na máquina da sociedade estabelecida. Forasteiros de um sistema que corrompe consciências e reprime o individualismo libertário, eles nadam contra a correnteza e assumem os riscos Como bem diz Serking em dado momento, “os fracassados são as pessoas mais verdadeiras deste mundo”.

Explorando situações bizarras e episódicas, com poucos diálogos, o realizador Marco Ferreri explora o embate da beleza contra o caos, sem, no entanto, abandonar seus personagens à própria sorte. Um olhar de carinho e atenção está sempre presente. Em meio à derrocada moral do universo que conspira, há sempre a poesia. A poesia que vence a desgraça. Salva e redime.


Neste sentido, é exemplar a sequência final que se passa na amplitude de uma praia deserta. Em cena, apenas Serking, amargurado pela tragédia com sua amada, e uma adolescente solitária. Enquanto ele recita uma poesia, ela desnuda o corpo jovem. Um momento que evoca a busca por uma juventude que se perdeu no passado ao mesmo tempo em que confronta a necessidade de encarar um futuro sem perspectivas. A sequência, bela por si só, remete ainda ao antológico e emblemático final de A Doce Vida, de Federico Fellini, que mostra Marcello Mastroiani também se deparando com uma jovem enigmática numa praia, com a qual não consegue se comunicar com palavras.

Consta que Charles Bukowski não aprovou o desempenho de Ben Gazzara, mas, neste caso, vamos deixar de lado a opinião do “velho safado”. O fato objetivo é que Ben Gazzara é a grande força emocional de Crônica de um Amor Louco, e seu desempenho visceral evidencia um ator totalmente mergulhado nas entranhas do personagem.

Assista o trailer: Crônica de um Amor Louco

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)

Jorge Ghiorzi