Ao longo de toda a carreira o cineasta Bernardo
Bertolucci evidenciou nos filmes que dirigiu sua crítica à sociedade burguesa,
alternando momentos de maior contundência política, como em A Estratégia da Aranha; O Conformista e 1900, e outros mais amenos, como La Luna; Beleza Roubada ou
Os Sonhadores. No entanto, o que mais
fica flagrante ao examinar-se sua filmografia com a perspectiva histórica, é
que Bertolucci no fundo sempre foi um grande romântico. Por baixo daquele
verniz politizado, tendendo ao intelectual, sempre bateu um coração seduzido
pelas artimanhas do amor.
Uma produção, não exatamente valorizada na sua
obra, meio esquecida até, conseguiu reunir de forma equilibrada estas duas
facetas de Bertolucci. Em O Céu Que Nos Protege (The
Sheltering Sky, 1990) nos deparamos com uma síntese consolidada que acomoda o
projeto estético ao discurso político do realizador. A consagração mundial com O Último Imperador (1987), vencedor de
diversos prêmios internacionais, incluindo 9 prêmios do Oscar, tornou Bernardo
Bertolucci um realizador global com cacife para comandar grandes superproduções.
Nesta fase da carreira ele passa a fazer o que poderíamos chamar de “cinema
étnico”. Deste período, além dos citados O
Último Imperador e O Céu Que Nos
Protege, também podem ser incluídos filmes como O Pequeno Buda e Assédio.
Baseado no livro de Paul Bowles, com roteiro do
próprio Bertolucci em parceria com Mark Peploe (ambos também escreveram O Último Imperador e O Pequeno Buda), o filme tem a ação
centrada no ano de 1948, período marcado pela recuperação global pós-Segunda
Guerra Mundial. O cenário é o Norte da África, particularmente na região dos
desertos, incluindo o Saara.
Os protagonistas são Port Moresby (John Malkovich)
e Kit Moresby (Debra Winger), casal nova-iorquino em crise conjugal. Em busca
de um sentido existencial, e também reacender uma paixão que sucumbiu com o
peso dos anos, eles ficam viajando pelo mundo, sem plano de voo nem destino
definido. Ficam ao sabor do vento e dos desejos da hora. Enquanto viajam,
esperam curar as feridas de um relacionamento desgastado. É sintomática e
reveladora a explicação que ambos dão para a diferença entre “turista” e
“viajante”. Segundo Port, “o turista pensa em voltar para casa assim que chega
a algum lugar”. E Kit complementa: “o viajante pode nem voltar”. Port e Kit
são, portanto, viajantes por definição. Há ainda um terceiro elemento nesta
jornada. Um amigo do casal, George Tunner (Campbell Scott), companheiro de
viagem, que assume o papel de confidente e parceiro de aventuras, ao mesmo
tempo em que nutre sentimentos reprimidos pela amiga Kit. Apresenta-se então
como um fator desagregador num triângulo amoroso involuntário.
Simbolicamente uma viagem tanto pode significar
reciclagem, descoberta ou fuga. A jornada de Port e Kit consegue abarcar todos
estes significados. Um casal em constante movimento, em busca de um porto
seguro, ainda que seja apenas a miragem de um oásis no deserto. Quanto mais se
afastam do mundo urbano das metrópoles, repleto de recursos materiais, e se
embrenham na vastidão de terras desertas, mais se aproximam de seus verdadeiros
sentimentos. Uma viagem de sinal trocado, rumo ao passado, partindo da civilização
para encontrar a plenitude apenas no primitivo. Numa das mais belas e emblemáticas
sequencias de O Céu Que Nos Protege, Port
e Kit saem para passear de bicicleta e se deslumbram com a visão majestosa do
deserto visto do topo de um penhasco. Seduzidos pelo espetáculo da natureza, se
entregam aos desejos e fazem amor sobre as pedras. Sob o manto azul do céu que
tudo cobre e protege, vivem um momento fugaz de sintonia plena, acompanhados
pela trilha sonora grandiosa de Ryuichi Sakamoto e a fotografia espetacular do
mestre Vittorio Storaro.
O ritmo lento, por vezes contemplativo, da
narrativa vai num crescendo emocional das personagens que se (re)descobrem como
agentes do seu próprio destino. Port e Kit podem fugir do passado, mas não
controlam o futuro. Resta apenas o presente, imponderável. Mas, a tragédia
sempre ronda as histórias de amor. Ao aflorarem os verdadeiros sentimentos que
ambos sentem, o destino prega uma peça. O tempo perdido não volta mais. No
terceiro ato, após a jornada sem mapas nem bússola, a roda da vida gira e volta
ao início. Ao retornar ao ponto inicial da jornada, uma nova Kit entra no
restaurante do hotel e recebe um questionamento metalinguístico do próprio narrador
do filme (interpretado pelo escritor Paul Bowles): “Você está perdida?”. E Kit,
derrotada e exaurida, confessa: “Sim”.
Road
movie existencial com forte
caráter intimista, O Céu Que Nos Protege
é um projeto ambicioso, repleto de beleza, paixão e sentimento.
Assista o trailer: O Céu Que Nos Protege
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em janeiro de 2017)
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