Conhecido pela crueza de seus contos, histórias
curtas e crônicas ambientadas no submundo dos excluídos, desiludidos e errantes
sociais, o escritor Charles Bukowski encharcou sua obra com muito álcool, muita
sacanagem, muito sexo, muitos palavrões e muitas mulheres sem nome. O interesse
do cinema por adaptações de seus livros vem desde os anos 70. Mas foi apenas nos
anos 80 que sua obra ganhou maior visibilidade para o grande público graças ao
lançamento de três títulos adaptados de suas histórias.
Um deles foi Barfly
– Condenados pelo Vício, dirigido por Barbet Schroeder em 1987, estrelado
por Mickey Rourke e Faye Dunaway, num período onde ambos gozavam de grande
prestígio na indústria. Ainda naquele mesmo ano, o próprio Schroeder lançaria
também o documentário The Charles
Bukowski Tapes, que reúne uma série de entrevistas com o escritor. Outro
destaque daquele período foi Crazy Love
(também 1987), dirigido por Dominique Deruddere, baseado em três contos do
escritor. No entanto, a melhor de todas as presenças de Bukowski nas telas
surgiu bem no início dos anos 80, permanecendo até hoje como uma das mais bem
sucedidas adaptações da sua vida e obra, que se mesclam de forma simbiótica
pelo forte caráter autobiográfico de seu texto. O filme era Crônica
de um Amor Louco (Storie di ordinária follia, 1981), realizado pelo
cineasta italiano Marco Ferreri, o mesmo de A
Comilança.
Baseado no primeiro dos dois volumes da obra
“Ereções, Ejaculações e Exibicionismos”, particularmente no conto “A mulher
mais linda da cidade”, e também inspirado na vida do próprio Charles Bukowski, Crônica de um Amor Louco conta a
história de Charles Serking (Ben Gazzara), um poeta errante, amante das
bebidas, das mulheres e das letras, que vive perdido na cidade dos anjos
perdidos, Los Angeles. Serking é uma encarnação ficcional, um alter-ego, do
próprio Bukowski, cujas histórias contadas foram também vividas, vivenciadas. Ele
fala (no caso, escreve) com conhecimento de causa.
Naquela vida sem rumo, passando de bar em bar,
vagando pelas ruas em busca de fortuitas aventuras amorosas, e, eventualmente
sentando à máquina de escrever, quando sóbrio, para redigir poesias e contos,
Serking acaba por cruzar com uma alma gêmea, a bela prostituta Cass (Ornella
Muti), também em busca de um sentido para sua atormentada existência. Deste
encontro nasce um romance amargurado, marcado pela urgência e o desespero.
Enquanto Serking purgava sua angústia através da poesia, Cass buscava o
equilíbrio emocional cometendo o autoflagelo físico, punindo-se simplesmente
por ser bela. Um amor de conotações sadomasoquistas se estabelece então.
Serking e Cass são duas peças “defeituosas” que não
se encaixam na máquina da sociedade estabelecida. Forasteiros de um sistema que
corrompe consciências e reprime o individualismo libertário, eles nadam contra
a correnteza e assumem os riscos Como bem diz Serking em dado momento, “os
fracassados são as pessoas mais verdadeiras deste mundo”.
Explorando situações bizarras e episódicas, com
poucos diálogos, o realizador Marco Ferreri explora o embate da beleza contra o
caos, sem, no entanto, abandonar seus personagens à própria sorte. Um olhar de
carinho e atenção está sempre presente. Em meio à derrocada moral do universo
que conspira, há sempre a poesia. A poesia que vence a desgraça. Salva e
redime.
Neste sentido, é exemplar a sequência final que se
passa na amplitude de uma praia deserta. Em cena, apenas Serking, amargurado
pela tragédia com sua amada, e uma adolescente solitária. Enquanto ele recita
uma poesia, ela desnuda o corpo jovem. Um momento que evoca a busca por uma juventude
que se perdeu no passado ao mesmo tempo em que confronta a necessidade de
encarar um futuro sem perspectivas. A sequência, bela por si só, remete ainda
ao antológico e emblemático final de A
Doce Vida, de Federico Fellini, que mostra Marcello Mastroiani também se
deparando com uma jovem enigmática numa praia, com a qual não consegue se
comunicar com palavras.
Consta que Charles Bukowski não aprovou o
desempenho de Ben Gazzara, mas, neste caso, vamos deixar de lado a opinião do
“velho safado”. O fato objetivo é que Ben Gazzara é a grande força emocional de
Crônica de um Amor Louco, e seu
desempenho visceral evidencia um ator totalmente mergulhado nas entranhas do
personagem.
Assista o trailer: Crônica de um Amor Louco
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)
Filme maravilhoso. Jorge, provocaste a volta de emoções e lembranças espetaculares com teu excelente texto. Abraços.
ResponderExcluirGrato pela palavras, Marco. Grande abraço.
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