As recentes mortes
do ator Harry Dean Stanton e do escritor, roteirista e também ator Sam Shepard oportuniza
a revisão de um dos mais significativos trabalhos cinematográficos de ambos.
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1984, Paris, Texas (Paris,
Texas), dirigido por Wim Wenders, conta com a participação de Stanton como
protagonista e o roteiro coescrito por Shepard (em parceria L. M. Kit Carson) a
partir de uma obra de sua autoria.
Produção europeia
filmada em locações nos Estados Unidos, Paris,
Texas é um dos filmes mais icônicos do alemão Wim Wenders, um cineasta que
manifesta especial interesse na cultura e nas paisagens norte-americanas,
constantemente presentes em sua filmografia. Neste aspecto pode-se dizer que
esta produção é uma espécie de releitura temática de um trabalho anterior, Alice nas Cidades, realizado exatamente uma
década antes, também ambientado no cenário norte-americano de pequenas cidades,
estradas, paisagens desoladas e busca da identidade.
Road movie por excelência, Paris,Texas já inicia sob o signo do movimento. Ao som dos acordes
melancólicos da guitarra de Ry Cooder, na sequência de abertura somos
apresentados ao personagem Travis Henderson (Harry Dean Stanton) vagando sem
rumo sob o sol inclemente do deserto texano, próximo à fronteira do México.
Resgatado à beira da morte por inanição, Travis é levado pelo irmão Walt (Dean
Stockwell) para morar em Los Angeles com sua família. Lá ele encontra seu filho
Hunter de sete anos, abandonado pela mãe, Jane (Nastassja Kinski). O próprio
Travis não via o filho há quatro anos, quando também abandonou a família depois
uma crise no casamento e colocou o pé na estrada sem projeto de retorno.
Inicialmente estranhos um ao outro, após um tempo Travis e Hunter reconstroem
os laços emocionais partidos entre pai e filho. O fortalecimento da relação
entre os dois desperta por fim o desejo de reencontrar Jane para reconstituir a
família desfeita.
Diz a máxima que
nunca retornamos iguais de uma viagem. Ela inevitavelmente nos transforma. Wim
Wenders certamente compartilha este pensamento e isto fica muito evidenciado no
citado Alice nas Cidades e de maneira
especial em Paris, Texas. A
alternância de cenários reflete - ou induz – os estados de alma do solitário
Travis. Uma trajetória que percorre paisagens desérticas, subúrbios da classe
média de Los Angeles, movimentadas freeways e arranha-céus que aço e vidro em
Houston, pontua as transformações do protagonista que transitam da catatonia ao
tédio existencial, chegando por fim a reconquista da autoestima.
O vazio do deserto
representa o vazio emocional de Travis. Sua imagem, isolado no meio da planície
árida, sem mapa nem bússola, é um símbolo do homem em desespero que se perde
para tentar reencontrar-se. A fuga dos problemas o colocou na estrada, longe de
tudo e de todos. Mas a negação da sua própria história pessoal é pesada demais
para carregar na bagagem emocional. Esperava encontrar no isolamento do deserto
uma resposta para suas frustrações. O que descobre é um abismo emocional que só
amplia suas angústias. O providencial resgate e posterior reencontro com o
filho colocam os fatos inexoráveis da vida nos trilhos e trazem alguma lucidez
para seus propósitos. Há uma missão a cumprir: reconfigurar o núcleo familiar,
ainda que sua presença já nem seja mais necessária. O objetivo é assegurar pelo
menos alguma chance de felicidade para o filho junto à mãe. Um ponto final para
uma história de amor e paixão que estava inconclusa.
O ponto central e enigmático
de Paris, Texas é a mãe, figura que
deflagra a ação e movimenta os personagens. A imagem de Jane é trazida da
memória através da magia das imagens em movimento do cinema. Somos apresentados
a ela por pequenos vídeos domésticos de Super-8, de um tempo onde reinava o
amor e a harmonia entre Travis e Jane. Testemunho de um fragmento de história
preservada em filme. Interpretada por uma Nastassja Kinski no auge da beleza e
prestígio, a presença de Jane domina o filme de ponta a ponta, ainda que esteja
realmente em cena em apenas alguns minutos. Mas como esquecer a pungente
sequência do diálogo acerto de contas entre Travis e Jane. Ambos isolados (!), sem
jamais se tocarem fisicamente, separados por um vidro, como dois prisioneiros
de uma relação com marcas profundas de mágoas, rancores e decepções mútuas.
Lá se vão mais de
30 anos desde o lançamento e Paris, Texas
segue irretocável como um drama sensível e sincero. O atento olhar estrangeiro
de Wim Wenders revela o retrato de uma América altamente industrializada e
consumista que promove o individualismo e desestimula o humanismo.
Assista o trailer: Paris, Texas
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em setembro de 2017)
Jorge Ghiorzi