domingo, 31 de março de 2019

“Paris, Texas”: pé na estrada


As recentes mortes do ator Harry Dean Stanton e do escritor, roteirista e também ator Sam Shepard oportuniza a revisão de um dos mais significativos trabalhos cinematográficos de ambos. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1984, Paris, Texas (Paris, Texas), dirigido por Wim Wenders, conta com a participação de Stanton como protagonista e o roteiro coescrito por Shepard (em parceria L. M. Kit Carson) a partir de uma obra de sua autoria.

Produção europeia filmada em locações nos Estados Unidos, Paris, Texas é um dos filmes mais icônicos do alemão Wim Wenders, um cineasta que manifesta especial interesse na cultura e nas paisagens norte-americanas, constantemente presentes em sua filmografia. Neste aspecto pode-se dizer que esta produção é uma espécie de releitura temática de um trabalho anterior, Alice nas Cidades, realizado exatamente uma década antes, também ambientado no cenário norte-americano de pequenas cidades, estradas, paisagens desoladas e busca da identidade.


Road movie por excelência, Paris,Texas já inicia sob o signo do movimento. Ao som dos acordes melancólicos da guitarra de Ry Cooder, na sequência de abertura somos apresentados ao personagem Travis Henderson (Harry Dean Stanton) vagando sem rumo sob o sol inclemente do deserto texano, próximo à fronteira do México. Resgatado à beira da morte por inanição, Travis é levado pelo irmão Walt (Dean Stockwell) para morar em Los Angeles com sua família. Lá ele encontra seu filho Hunter de sete anos, abandonado pela mãe, Jane (Nastassja Kinski). O próprio Travis não via o filho há quatro anos, quando também abandonou a família depois uma crise no casamento e colocou o pé na estrada sem projeto de retorno. Inicialmente estranhos um ao outro, após um tempo Travis e Hunter reconstroem os laços emocionais partidos entre pai e filho. O fortalecimento da relação entre os dois desperta por fim o desejo de reencontrar Jane para reconstituir a família desfeita.

Diz a máxima que nunca retornamos iguais de uma viagem. Ela inevitavelmente nos transforma. Wim Wenders certamente compartilha este pensamento e isto fica muito evidenciado no citado Alice nas Cidades e de maneira especial em Paris, Texas. A alternância de cenários reflete - ou induz – os estados de alma do solitário Travis. Uma trajetória que percorre paisagens desérticas, subúrbios da classe média de Los Angeles, movimentadas freeways e arranha-céus que aço e vidro em Houston, pontua as transformações do protagonista que transitam da catatonia ao tédio existencial, chegando por fim a reconquista da autoestima.


O vazio do deserto representa o vazio emocional de Travis. Sua imagem, isolado no meio da planície árida, sem mapa nem bússola, é um símbolo do homem em desespero que se perde para tentar reencontrar-se. A fuga dos problemas o colocou na estrada, longe de tudo e de todos. Mas a negação da sua própria história pessoal é pesada demais para carregar na bagagem emocional. Esperava encontrar no isolamento do deserto uma resposta para suas frustrações. O que descobre é um abismo emocional que só amplia suas angústias. O providencial resgate e posterior reencontro com o filho colocam os fatos inexoráveis da vida nos trilhos e trazem alguma lucidez para seus propósitos. Há uma missão a cumprir: reconfigurar o núcleo familiar, ainda que sua presença já nem seja mais necessária. O objetivo é assegurar pelo menos alguma chance de felicidade para o filho junto à mãe. Um ponto final para uma história de amor e paixão que estava inconclusa.


O ponto central e enigmático de Paris, Texas é a mãe, figura que deflagra a ação e movimenta os personagens. A imagem de Jane é trazida da memória através da magia das imagens em movimento do cinema. Somos apresentados a ela por pequenos vídeos domésticos de Super-8, de um tempo onde reinava o amor e a harmonia entre Travis e Jane. Testemunho de um fragmento de história preservada em filme. Interpretada por uma Nastassja Kinski no auge da beleza e prestígio, a presença de Jane domina o filme de ponta a ponta, ainda que esteja realmente em cena em apenas alguns minutos. Mas como esquecer a pungente sequência do diálogo acerto de contas entre Travis e Jane. Ambos isolados (!), sem jamais se tocarem fisicamente, separados por um vidro, como dois prisioneiros de uma relação com marcas profundas de mágoas, rancores e decepções mútuas.

Lá se vão mais de 30 anos desde o lançamento e Paris, Texas segue irretocável como um drama sensível e sincero. O atento olhar estrangeiro de Wim Wenders revela o retrato de uma América altamente industrializada e consumista que promove o individualismo e desestimula o humanismo.

Assista o trailer: Paris, Texas

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em setembro de 2017)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

“O Deserto dos Tártaros”: batalha sem glória



Considerada por muito tempo uma obra impossível de filmar, o romance “O Deserto dos Tártaros”, escrito por Dino Buzzati, desde sua publicação em 1940 figurou como objeto de desejo de muitos cineastas. Michelangelo Antonioni foi um deles. Ao longo dos anos tentativas foram feitas, mas logo sucumbiram diante das dificuldades de transposição para as telas de um texto que transita do alegórico ao fantástico, passando pelo terreno fértil das reflexões existenciais.

Portanto, foi com alguma surpresa, e certa desconfiança, que surgiu na metade dos anos 70 um projeto de adaptação liderado pelo diretor italiano Valerio Zurlini. Lançado em 1976, O Deserto dos Tártaros (Il Deserto dei Tartari) foi o último filme de Zurlini, um cineasta de poucos filmes e grande prestígio junto à crítica, que na fase final de sua carreira assumiu um cinema abertamente político.


A exasperante passagem do tempo que consome a existência do homem em busca de um sentido para a vida é a matriz sobre a qual se constrói a trajetória do personagem central de O Deserto dos Tártaros. No período do Império Italiano (que durou até 1946) o jovem Giovanni Drogo (Jacques Perrin) sonha com uma carreira longa e gloriosa no exército. Mas o começo da vida militar não foi nada promissor. Ao ser nomeado tenente, Drogo foi designado para a longínqua e remota Fortaleza Bastiani, localizada na fronteira do Império, à beira de um deserto, dominado pelas tribos nômades dos tártaros, sob a ameaça iminente de ataque.

A monotonia, a rotina e a rigidez dos regulamentos militares consomem pouco a pouco o entusiasmo de Drogo. A espera por um ataque dos tártaros, que nunca se consuma, coloca à prova as convicções pessoais e as razões de uma missão que parece sem sentido. Dias, meses e anos transcorrem, e nada acontece. O tempo passa e uma vida de realizações pessoais, como família, filhos e amigos, deixa de ser vivida na plenitude, em nome de uma subserviência ao Estado. Por fim, resta a Drogo apenas a camaradagem militar de seus companheiros de farda em um universo que se basta por si só.


O clima mezzo alegórico, mezzo metafísico que permeia a narrativa de Dino Buzzati no romance, encontra eco na primorosa direção de arte e cenografia da produção, um achado a parte. Filmado em locação numa fortaleza real situada na fronteira do Irã com o Afeganistão, O Deserto dos Tártaros transforma a construção, e seu entorno desabitado, em “personagem” onipresente da narrativa. A paisagem desolada, monocromática, de aspecto lunar, forma um tecido geográfico único, onde o deserto e as paredes da fortaleza se mimetizam, a ponto de pouco discernirmos onde inicia um ou termina o outro. A exposição dos espaços geográficos do filme permite ainda outra leitura, onde os espaços exteriores da fortaleza representam as forças da natureza em seu estado bruto, e as sequências interiores da fortaleza, dominados pelo elemento humano, expressam conflitos existenciais, com suas complexidades, contradições e fraquezas morais.

Assim como a força e permanência dos ventos molda a paisagem das montanhas e das paredes rochosas da fortaleza, a passagem do tempo também molda o caráter, as convicções e os comportamentos dos personagens em O Deserto dos Tártaros. As verdades de ontem são substituídas pelas novas verdades de hoje. No plano externo, das ações, pouco acontece. Na dimensão interior é que ocorrem as grandes transformações.


Os tártaros, inimigos tão temidos no início da narrativa, por fim acabam quase como inimigos desejados. Que venha logo a batalha de uma vez por todas, para justificar toda uma existência em busca de sentido. Mais do que encarar a perspectiva de morte, o batalhão almeja, no seu limite, a imortalidade através da glória de uma guerra que o destino teima em não conceder. Os fantasmas que assombram o fim da vida justificam qualquer ato. Inclusive o próprio desejo de morte.

O elenco desta superprodução italiana conta com grandes nomes do cinema europeu: Vittorio Gassman; Giuliano Gemma; Philippe Noiret; Francisco Rabal; Fernando Rey; Jean-Loius Trintignant e Max Von Sydow. A trilha sonora foi composta pelo mestre Ennio Morricone. O Deserto dos Tártaros recebeu os prêmios David di Donatello de Melhor Filme, Melhor Diretor e prêmio especial para Giuliano Gemma. O realizador Valerio Zurlini recebeu também o prêmio Nastro d’Argento de Melhor Diretor, concedido pelos jornalistas cinematográficos da Itália.

Assista o trailer: O Deserto dos Tártaros

      (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em setembro de 2017)

Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

“Railander”: a difícil arte da sobrevivência


Nos anos 80 a aventura de fantasia e ação Highlander – O Guerreiro Imortal foi sucesso nas salas de cinema e nas videolocadoras. O filme contava a história de um guerreiro escocês do século XVI, descendente de um clã que tinha a estranha peculiaridade de nunca morrer, por mais fortes e poderosos fossem seus inimigos.

Pois parece que um representante deste clã está aqui, entre nós. Mais precisamente em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul. A identificação da origem se dá pelo nome, aqui batizado com a brasileiríssima grafia de Railander, e a afamada imortalidade, ainda que esteja presente simbolicamente, se manifesta de forma menos literal, ficando apenas no nível existencial, da sobrevivência mesmo.

E ficamos por aqui nestes paralelos. Esqueça a fantasia e a mitologia presentes na narrativa do Highlander oitentista. No curta-metragem Railander, escrito e dirigido por Alexandre Derlam, entra em cena nossa realidade cotidiana e todas suas nuances sociais contemporâneas. A matéria prima que constrói o suporte dramático do roteiro está fortemente ancorada em temas candentes que estão na ordem do dia: o bullying, o assédio moral e o abuso de autoridade. O forte apelo da atualidade destes temas, aliado a uma história bem contada, potencializa o interesse na narrativa do curta.


Railander (Alex Kanoff) trabalha como caixa de um pequeno supermercado de uma cidade do interior. Calado, tímido e retraído, ele não se enquadra nos padrões esperados pela sociedade. Railander convive com uma rotina tediosa envolvendo abuso de poder do proprietário do supermercado (Carlos Busato) e bullyings frequentes por estar acima do peso. Seu melhor amigo é um colega de trabalho (Ângelo Sérgio), que ao perceber o dilema existencial que consome Railander o estimula a reagir para virar o jogo daquela opressão permanente. A oportunidade da virada acontece de maneira fortuita, quando seu chefe se envolve em um conflito com o também autoritário juiz local. Ao perceber que até os poderosos também caem, Railander assume uma nova postura frente à vida. Reinventa-se e assume pela primeira vez os destinos da sua própria existência.

O curta-metragem de Alexandre Derlam trata essencialmente de relações pessoais e seus opressores mecanismos de controle social, manifestos pelo preconceito e abuso moral sobre minorias. A realidade vivida pelo personagem central é facilmente identificável e, infelizmente, muito comum em diversas esferas do nosso cotidiano. Assim como qualquer indivíduo introspectivo, o mundo interior de Railander é rico de significados e compreensão da realidade onde está inserido. A questão é o quanto ele se mostra incapaz de manifestar ações que possam efetivamente construir uma nova realidade.


Por ser tão corriqueira, a situação vivida por Railander desperta imediatamente no espectador o sentimento da empatia. Sofremos e torcemos por ele. Não é sem um senso de justiça, portanto, que acompanhamos o início da virada do personagem. Neste aspecto muito feliz é a direção de cena e a direção de arte no processo de desenvolvimento da personagem central. Alguns sinais de que a revolta de Railander está se processando são lançados ao longo do filme. Algo está acontecendo abaixo da superfície visível.  Em dado momento ele ensaia frente ao espelho uma explosão de ira contra sua condição. Mais adiante, aparece lendo um livro que aborda a construção da figura mítica do Herói. E por fim, nos momentos cruciais e decisivos da história, veste uma camiseta preta com a imagem do personagem “Justiceiro” dos quadrinhos (simbolizado por uma caveira), como a nos mostrar que houve uma transformação interior que se exterioriza de forma explícita. Um novo Railander estava nascendo, capaz de desafiar o antigo chefe e afrontar os garotos que diariamente faziam chacota com ele no trajeto até o trabalho.

Premiada em diversos festivais de cinema, a comédia dramática Railander é uma pequena fábula moderna que tem muito a nos dizer sobre o tempo em que vivemos.

Assista o trailer: Railander

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

“Corrida Silenciosa”: jardins do espaço


Em tempos de discussões sobre escassez de recursos naturais que assegurem a sustentabilidade da vida humana no planeta Terra é oportuno o exercício de olhar um pouco para o passado. Mais precisamente para 45 anos atrás. Naquela época foi lançado um filme de ficção científica cuja revisão faz total sentido nos dias de hoje. Em 1972 o longa Corrida Silenciosa (Silent Running) chegou aos cinemas num período muito emblemático. Vivia-se um período de pré-Crise do Petróleo (que estouraria pra valer um ano depois), com acalorados debates sobre fontes alternativas de energia que fossem sustentáveis com o meio ambiente. Foi nesse tempo que a consciência ecológica começou a ser difundida e incorporada pelas grandes massas, além dos ambientes acadêmicos e científicos.

Corrida Silenciosa, primeiro trabalho de direção de Douglas Trumbull, é um produto típico daquele momento. Escrito (entre outros roteiristas) por Michael Cimino (creditado como Mike), o filme é uma fábula ecológica que abraça a causa com paixão, idealismo e poesia.

Num futuro incerto, mas absolutamente plausível, as florestas e a vida selvagem foram extintas na Terra, vítimas dos efeitos climáticos combinados com a ação devastadora da exploração humana dos recursos naturais não renováveis. Os problemas de fome, desemprego e doenças estavam resolvidos. Porém, o fim do nosso bioma era uma questão de tempo. Para preservar o pouco do que ainda resta da flora e fauna uma frota de naves cargueiro carrega para o espaço os últimos exemplares de plantas, árvores e alguns poucos pequenos animais silvestres, confinados em gigantescas estufas com ambiente controlado. Uma espécie de Arca de Noé com florestas nativas. Um Éden bíblico.


A bordo de uma destas naves, chamada Valley Forge, está uma tripulação de quatro pessoas. Um deles é o botânico Freeman Lowell (Bruce Dern), um apaixonado pela natureza e grande entusiasta da missão espacial. Idealista, sonhador e cheio de boas intenções, Lowell está em constante atrito com seus companheiros de viagem. Indiferentes aos objetivos nobres do projeto, eles só pensam em acabar a missão e voltar logo para casa. E este momento chega quando o comando da missão na Terra decide abortar o projeto (por razões não esclarecidas) e ordena a destruição das cúpulas com os espécimes vegetais e animais preservados. Inconformado com o fim do projeto Lowell se rebela e decide agir por conta própria para salvar o que resta do seu sonho.

Corrida Silenciosa é um libelo ecológico que ainda faz total sentido nos dias de hoje. Aliás, muito mais sentido do que 45 anos atrás. Seu recado é claro e objetivo, ainda que por vezes demonstre alguma ingenuidade de propósitos. Como estrutura narrativa o filme de Douglas Trumbull se recente de uma trama mais elaborada e o conflito do protagonista, que se estende do início ao fim sem grandes questionamentos, deixa pouco espaço para explorar suas reais motivações. Nada sabemos de sua história, seu passado ou relações. Apenas somos apresentados à sua utopia, e com ela embarcamos em sua jornada pessoal. Vale atentar para o significado metafórico que se esconde sob o nome do personagem principal, Freeman, o “homem livre”.


Normalmente os filmes de ficção científica privilegiam a frieza dos cenários e a eficiência da tecnologia, quase sempre apresentando robôs e androides como personagens duros e sem emoção. Pois Corrida Silenciosa quebra esta regra. A bordo da Valley Forge, além dos quatro tripulantes, também há três pequenos robozinhos, responsáveis por pequenas tarefas de manutenção e reforma da nave. O detalhe é que esses simpáticos robozinhos são muito amigáveis com os seres humanos. Demonstram sentimentos e empatia por vezes até comoventes com seus “donos”. Criativos pelo design e convincentes em ação, os robozinhos são resultado de uma bem sucedida experiência de utilizar atores reais amputados (sem as pernas) para manipular e dar “vida” às máquinas.

Com sua mensagem explicitamente ecológica Corrida Silenciosa carrega ecos do espírito do movimento hippie que pregava (entre outras coisas) um retorno dos homens às coisas básicas da natureza. Este espírito meio “hiponga” se manifesta tanto pelos discursos de Lowell quanto por seu figurino. Mas o grande vínculo com o “flower-power”, sem dúvida, são as canções de Joan Baez que pontuam a narrativa em momentos chave.


Ao ser lançada em 1968, a ópera espacial 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, resgatou o interesse da ficção científica no cinema ao apontar as imensas potencialidades do gênero para além de uma mera aventura de entretenimento, como era usual até então. A ficção científica podia sim tratar de temas mais profundos, questionando a humanidade frente aos desafios de sua própria sobrevivência como espécie, sempre sob uma perspectiva filosófica. Corrida Silenciosa, lançado quatro anos após, é fruto direto da obra de Kubrick. Não apenas por tratar também de assuntos de fundo existencial, mas por uma outra questão mais objetiva. O supervisor dos inovadores efeitos especiais e fotográficos de 2001, Douglas Trumbull, estreou na direção de longas-metragens com esta produção que conquistou, ao longo dos anos, o status de filme cult.

Nunca é demais falar de ecologia. E o cinema sabe muito bem disso. Volta e meia os filmes de ficção científica voltam ao tema. Vale lembrar que em 2009 foi lançado Avatar, de James Cameron, que também tinha essa pegada ecológica, provando que o tema segue sempre atual e oportuno.

Assista o trailer: Corrida Silenciosa

      (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em julho de 2017)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

“Procura Insaciável”: choque de gerações


O movimento hippie, quem diria, já é um cinquentão. O “verão do amor”, marco da proposta de mudança de comportamentos apregoada pela juventude, aconteceu no distante ano de 1967 na icônica cidade de São Francisco, na Califórnia (EUA). A contestação aos padrões sociais estabelecidos ganhava força através da cultura que conquistou os corações e mentes dos jovens com um fortíssimo aliado: o rock. A liberdade absoluta era um direito a ser exercido na plenitude. Sem limites. E de preferência com flores (e algo mais) na cabeça. O cinema, é claro, não podia ficar de fora daquela nova onda. Naquele período em particular surgiram muitos filmes explorando aquele universo social e suas ideias. Ora tratando o tema com interesse genuinamente sociológico, ora com algum caráter de exploração gratuita ou cômica, ou ainda, na maior parte das vezes, apenas incluindo personagens hippies na história para aproveitar o modismo e atrair público.

Um dos filmes mais significativos e simbólicos daquele período foi realizado tardiamente, apenas em 1971, por um diretor europeu, portanto, com um olhar estrangeiro, crítico e não comprometido com aquele ambiente social dos Estados Unidos. O realizador foi o checo (hoje naturalizado norte-americano) Milos Forman e o filme em questão é Procura Insaciável (Taking Off). Esta foi sua primeira realização em terras americanas, com a qual ganhou o Prêmio Especial do Júri do Festival de Cinema de Cannes daquele ano. O projeto inicial de Forman ao viajar para a América era filmar a peça “Hair”, de grande sucesso na época, mas o projeto acabou sendo adiado, só concretizando-se oito anos depois, no final da década de 70. Partindo de um roteiro original, escrito em parceria com Jean-Claude Carrière, Milos Forman aborda em Procura Insaciável temas semelhantes e afins com Hair. Substancialmente o que diferencia os dois filmes é a mudança de foco narrativo. Em Hair acompanhamos a trama pela ótica dos jovens, já em Procura Insaciável o eixo de interesse se dá sob a perspectiva dos adultos, no caso, os pais da jovem influenciada pelo universo da contracultura.


O modo de vida hippie é envolvente e sedutor para os adolescentes presos às tradições sociais das famílias conservadoras. É esta promessa de um mundo de liberdade que faz a cabeça da jovem aspirante à cantora Jeannie Tyne (Linnea Heacock). Ao participar, sem avisar aos pais, de uma audição para o elenco de uma produção teatral (uma longa sequência inicial) a jovem fica fora de casa por muitas horas. A ausência da filha faz os pais imaginarem que ela decidiu fugir de casa para viver com os hippies. Ou, quem sabe, ela foi sequestrada por um bando deles. Decididos a descobrir o paradeiro da filha, o casal Larry (Buck Henry) e Lynn (Lynn Carlin) decide que eles próprios devem procurar por ela. Nesta busca por bares e ruas da cidade conhecem outros pais em situação semelhante e se envolvem numa viagem de descobertas pessoais que superam inclusive o desejo de encontrar a própria filha.

Procura Insaciável retrata uma espécie de ressaca do movimento hippie no início dos anos 70. O fim de um tempo de utopia se aproximava e o movimento chegava num impasse por não propor caminhos viáveis para alcançar resultados concretos e objetivos. Mas que deu uma sacudida na sociedade ocidental, disso não há dúvida. Ao forçar os limites comportamentais provocou reflexões mais do que oportunas. E a família tradicional nunca mais foi a mesma. Milos Forman faz um retrato deste tempo de mudanças e troca da guarda. O filme, que na essência mostra o choque de gerações e suas respectivas visões de mundo, se constitui hoje num preciso documento histórico.

A procura dos pais pela filha os tira de um estado de letargia. Viver o mundo real além das paredes confortáveis do lar seguro possibilita que eles “vejam” o mundo com outros olhos. Mais do que isto na verdade. Permite que eles experimentem novos desejos e sensações que estavam adormecidas, ou domesticadas em nome dos bons modos de uma sociedade repressora e careta. Na prática eles descobrem um mundo de liberdades que eles próprios reprimiam em sua filha. Milos Forman é sarcástico e implacável com esta hipocrisia. O resultado é um riso amargo no rosto do espectador.


Impossível ficar impassível diante da impagável sequência de um grupo de pais tendo aulas de como fumar um cigarrinho de maconha, ministrada por um expert no assunto, um interno com problemas de dependência química. Rico em detalhes de como preparar o baseado, passando pelos atos de acender e tragar a fumaça, a experiência deveria ser importante para os pais realmente entenderem seus filhos. Se entenderam realmente não se tem certeza, mas que o experimento foi um barato, não resta dúvida.

Procura Insaciável é um registro histórico também por mostrar na sequência inicial (da audição musical) duas artistas que ganhariam notoriedade anos depois: a atriz Kathy Bates e a cantora Carly Simon. Consta que a cantora Madonna (então com cerca de 10 anos de idade) disputou sem sucesso um papel para participar desta sequência. E mais: Tina Turner aparece se apresentando num show real filmado numa casa de espetáculos.

Assista o trailer: Procura Insaciável

     (Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em julho de 2017)

Jorge Ghiorzi

domingo, 9 de setembro de 2018

“Mulheres Apaixonadas”: ciranda de amores e desamores


O escritor inglês D. H. Lawrence (1885 – 1930) é reconhecido por uma obra marcada essencialmente pela contundência de uma crítica social que, ao mesmo tempo em que contesta a hipocrisia moral da elite inglesa, aborda abertamente e sem pudor temas relacionados ao sexo e erotismo como um caminho de prazer rumo à libertação pessoal. Seu livro mais conhecido é o polêmico “O Amante de Lady Chatterley”, escrito em 1928. Acusado de pornográfico, o livro ficou proibido na Grã-Bretanha até os anos 60. E foi também apenas no final desta década que a obra do autor ganhou repercussão no cinema com a adaptação cinematográfica do livro “Mulheres Apaixonadas”, seu quarto romance.

Lançado em 1969, Mulheres Apaixonadas (Women in Love) foi dirigido pelo não menos polêmico cineasta inglês Ken Russell, provocativo e estiloso realizador de filmes como o drama religioso Os Demônios (1971); a ópera-rock Tommy (1975); as cinebiografias Lisztomania (1975) e Valentino (1977) e o sexo-thriller Crimes de Paixão (1984). A combinação entre D. H. Lawrence e Ken Russell tinha tudo para ser explosiva. E foi mesmo. Mulheres Apaixonadas foi imediatamente reconhecida como uma da mais fiéis transposições da literatura para o cinema. Mas o que mais chamou atenção de verdade, fonte de escândalo nos círculos mais conservadores, foi a franqueza da abordagem dos temas sexuais e relacionamentos amorosos. O tratamento aberto, ousado e despudorado, em níveis nunca vistos até então em produções de grande porte com estrelas de primeira grandeza no elenco, marcou época, chocou puritanos e rendeu discussões acaloradas na imprensa.


A época é os anos 20. O cenário é cidade mineira de Beldover, na Inglaterra. Os protagonistas são dois casais formados por pessoas de personalidades, temperamentos e objetivos de vida distintos. As mulheres são as irmãs Brangwen. Gudrun (Glenda Jackson), identificada com as artes e a cultura, é independente e crítica das regras sociais. Ursula (Jennie Linden) é uma jovem inocente e apaixonada, a procura de um príncipe encantado para viver a sonhada grande paixão. Elas são bem diferentes, mas algo as une: ambas estão em busca do amor, cada uma a sua maneira. Gudrun se envolve com o rico proprietário de minas de carvão, Gerald Crinch (Oliver Reed), um homem arrogante que considera o casamento apenas outra forma de exercer o seu desejo de poder e dominação. Ursula, por sua vez, acaba se relacionando com Rupert Birkin (Alan Bates), um inspetor escolar, sonhador, poético e admirador das belezas que a vida oferece. E amigo de Gerald.

Mesmo sendo um filme de época, em certa medida Mulheres Apaixonadas representa o espírito de efervescência cultural e contestação da época em que a produção foi filmada, a agitada swing London do final dos anos 60. O que, aliás, apenas reforça a ideia de que a obra de D. H. Lawrence, escrita há quase um século, estava à frente de seu tempo no que refere a comportamentos individuais mais libertários. O rompimento com as convenções sociais, um tema caro na obra do escritor, está presente com grande força na adaptação de Ken Russell. A proposta é quebrar as barreiras, incluindo as de classe. E isto fica muito bem representado pela “mobilidade social” das irmãs. Provenientes da classe proletária, as duas transitam livremente, e com muita naturalidade, diga-se, entre os dois mundos, o dos ricos da elite e o dos trabalhadores e operários de uma Inglaterra que vivia a industrialização das grandes cidades.


“Tente me amar um pouco mais e me querer um pouco menos”

Gudrun e Ursula são duas mulheres em busca de seu lugar no mundo, mas não a qualquer custo. Não cedem facilmente às convenções familiares, nem às expectativas do papel social que lhes parecia reservado na comunidade onde viviam. O comportamento livre que adotam, ao mesmo que afronta, atrai os homens a sua volta. “Eles” comandam, mas “Elas” é que conduzem o jogo da vida.

Aqui, vale um comentário para os homens da trama. Gerald e Rupert são dois personagens que na superfície parecem ser donos de seus destinos, mas frente às armadilhas do coração e da paixão revelam fragilidades internas. Certezas transformam-se em incertezas. Desnudam-se exibindo seus mais profundos sentimentos refreados. Ken Russell explicita esta situação com a polêmica (e famosa) sequência que mostra os dois nus praticando uma amigável luta livre sobre os tapetes de uma sala aquecida por uma lareira. Esta sequência em especial, mas em outras passagens também, parece indicar, com um grau de liberdade inesperado e inédito para a época, que haveria alguma paixão reprimida entre eles. As relações de Gerald e Rupert com suas respectivas mulheres sugerem então que não passariam de um artifício para afastá-los de uma homossexualidade latente e não consumada.


Mulheres Apaixonadas foi um filme moderno em seu tempo. Ainda hoje resiste como uma obra significativa e importante com seus questionamentos das convenções sociais e apresentação do sexo com uma fonte de prazer. Na ciranda de amores e desamores, o filme de Ken Russell se apresenta como uma espécie de “quatrilho à inglesa”, ora contestando a opressão moral que as sociedades exercem, ora se entregando aos prazeres carnais sem nenhum resquício de culpa católica. Mulheres Apaixonadas é provocativo na forma e romântico no conteúdo.

Assista o trailer: Mulheres Apaixonadas


(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em junho de 2017)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 17 de julho de 2018

“Tesis”: manipulação do olhar


As imagens se sucedem. A sensação do movimento é uma miragem, uma ilusão de ótica provocada pela persistência da visão. A retina retém a visão por uma fração de segundo após sua percepção. Imagens projetadas a um ritmo superior a 16 quadros por segundo enganam o cérebro que acaba registrando o movimento onde ele não existe de fato. Este é o princípio do Cinema. Um engodo consciente.

Este artifício de manipulação do olhar está na base criativa do primeiro longa-metragem do cineasta espanhol, Alejandro Amenábar, o mesmo realizador de Os Outros e Mar Adentro. Realizado há mais de duas décadas, Tesis: Morte Ao Vivo (Tesis, 1996) manipula o olhar do espectador contando a história de uma protagonista guiada apenas pelo o que vê, ou pensa (ou deseja) ver, num misto de real e imaginário. O que pensamos estar vendo é tão ou mais ilusório quanto o que não podemos enxergar. Este é um tema que parece muito caro à Amenábar, que voltou a tratar do assunto, de forma diversa, em seu filme seguinte, Preso na Escuridão (Abre los ojos). Entre o abrir e o fechar dos olhos, um mundo inteiro se esconde. Ora revelado, ora oculto.

Em Tesis uma estudante de Cinema da Faculdade de Ciências da Informação de Madri, Angela (Ana Torrent), está desenvolvendo uma pesquisa para sua tese sobre a violência registrada em imagens e seus efeitos no comportamento das pessoas a elas expostas. Ela pede ajuda ao professor para ter acesso aos arquivos de vídeo da universidade. Disposto a ajudá-la, o professor decide pesquisar o acervo por conta própria e acaba descobrindo um compartimento secreto que guarda uma coleção de fitas de vídeo VHS (estamos nos anos 90!). Após assistir um dos vídeos o professor sofre um ataque cardíaco e morre. Angela resgata a fita de vídeo e descobre que trata-se de uma gravação caseira que mostra uma garota sendo torturada até a morte, registrada ao vivo, diante da câmera. Com ajuda de um colega de faculdade, Angela assume a missão de descobrir quem está por trás da produção daquele vídeo.


Tesis: Morte ao Vivo é um filme desenvolvido a partir de uma tese: a exposição e superexposição da violência pelos meios de comunicação (cinema, TV, mídia em geral). Tema já relevante há 20 anos, e muito mais ainda hoje, com a proliferação de imagens de violência gráfica, disseminadas massiva e indiscriminadamente pelas redes e dispositivos móveis. Como pano de fundo, e motor da narrativa, o filme de Amenábar se utiliza porém de um elemento fictício: a lenda urbana dos filmes “Snuff”, produções baratas, originadas no submundo, que exibem cenas de tortura e mortes, supostamente reais, registradas ao vivo, sem censura nem efeitos especiais.

A atração pelo mórbido consome o olhar da protagonista Angela, situação explicitamente definida na sequência de abertura que mostra um acidente no metrô. O desejo de ver a qualquer custo o corpo destroçado por um acidente na linha do trem supera qualquer racionalidade. Um desejo primal de testemunhar, apropriando-se da imagem como algo a ser conquistado. Lembremos que civilizações ancestrais temiam os efeitos da fotografia alegando que “roubavam” a alma, a essência da pessoa.


A levada do filme de Amenábar é de um thriller. Há uma ameaça, um suposto assassino e uma vítima potencial, elementos primordiais típicos de um suspense bem temperado. Aqui e ali, como qualquer exemplar do gênero, encontram-se furos de roteiro, incongruências que ferem a lógica e concessões demasiadas em favor do necessário ritmo crescente de inquietação e apreensão que se deseja provocar na plateia. Mas, absolutamente, isto não faz de Tesis um filme menor. Pelo contrário. Apenas reforça o controle do realizador sobre os destinos de sua obra. Amenábar manipula com habilidade todos estes elementos e nos entrega um filme eficiente em sua proposta de suspense e contundente na exploração de uma temática perturbadora.

Um destaque que faz a alegria de todos os cinéfilos é o reencontro com Ana Torrent, cuja imagem de garotinha ficou cristalizada em pelos menos dois clássicos dos anos 70, O Espírito da Colmeia e Cria Cuervos, quando ela tinha cerca de dez anos de idade. Passados vinte anos, a reencontramos em Tesis, e descobrimos que seus expressivos grandes olhos negros permanecem lá, no rosto de uma respeitável atriz de 30 anos de idade. Na época de seu lançamento, Tesis: Morte ao Vivo foi exibido no Festival de Cinema de Gramado (RS), em 1996, com direito à presença da própria Ana Torrent na plateia.

Assista o trailer: Tesis

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)

Jorge Ghiorzi