Um homem negro caminha à noite pelas calçadas de um
típico bairro de classe média. Quando se dá por conta, está sendo seguido por
um carro suspeito. A respiração fica ofegante, pois ele sabe que o seu destino
já parece estar traçado.
O surpreendente drama de suspense Corra!
(Get Out, 2017) abre com este prólogo que já oferece a linha temática que
conduzirá a história que acompanharemos na sequência: o preconceito racial. Porém,
a abordagem que o filme dará ao tema foge do óbvio e vai muito além de uma mera
manifestação de preconceito, ao combinar crítica social e supremacia étnica e
discriminação racial com doses pesadas de terror e angústia. Mistura inusitada,
mas altamente letal para abalar os nervos da plateia. Sucesso de público e
crítica nos Estados Unidos, Corra!
está chegando aos cinemas brasileiros. Dirigido e escrito pelo comediante Jordan
Peele, o filme pode ser descrito como uma fábula de terror que explora medos e
fantasias de uma sociedade que hipervaloriza as aparências e cultua o
individualismo. Alguém aí lembrou de Black
Mirror?.
O bem sucedido fotógrafo Chris (o ótimo Daniel
Kaluuya) namora a bela Rose (Allison Williams, da série Girls). Tudo corre bem com o relacionamento do casal, mas a luz
vermelha de alerta acende para ele quando ela decide finalmente levá-lo para
ser apresentado a seus pais, Dean (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener).
A preocupação de Chris se justifica, afinal, eles formam um casal inter-racial
(ele, negro, ela, branca). A inicialmente calorosa recepção dos pais da
namorada logo começa a dar sinais de que algo muito perturbador está se
passando e algum segredo se esconde naquela casa.
Corra! desenvolve uma curiosa versão do que poderíamos
chamar de “eugenia reversa”. Lembrando o conceito básico, a Eugenia, segundo a
ideologia nazista, preconizava a “supremacia racial” dos arianos em relação aos
judeus, negros e outras raças. Pois no filme de Jordan Peele os personagens caucasianos
(brancos), antes de se limitarem apenas a exercer seu preconceito racial, na
verdade estão mais interessados justamente nas reconhecidas vantagens genéticas
e biológicas atribuídas aos negros, tais como força, saúde e longevidade.
Em certa passagem o patriarca da família, Dean,
lembra e exalta as qualidades físicas e atléticas de Jesse Owens, o atleta
negro norte-americano que venceu todos seus oponentes brancos, especialmente os
alemães, para desgosto de Hitler, nos Jogos de Olímpicos de Berlim em 1946. A
tese da supremacia atlética dos arianos caiu por terra. A ideia que Dean pretendia
passar é de que reconhece o valor da conquista de Jesse Owens, apesar dele ser
negro. E completa afirmando com ele próprio possui amigos negros e até votaria
novamente em Barack Obama, se fosse possível. Atitude clássica que mais revela
do que dissimula um mal disfarçado preconceito.
O tema do racismo permeia o longa do primeiro ao
último minuto, ora de forma explícita, ora de forma oblíqua, ora de forma
velada. Os diferentes tons desta questão fazem o jogo no qual se sustenta o
suspense da narrativa. Tudo poderia ser apenas um grande equívoco. Ou na
verdade o apavorado Chris estaria apenas superestimando seu próprio racismo
defensivo. Ou sim, estaríamos diante de uma história assustadora e impensável.
A plateia alterna constantemente seus sentimentos, se agarrando em pequenos
sinais e avisos que vão surgindo enquanto as situações evoluem. A angústia do
personagem é também a nossa angústia. Este é o grande trunfo de Corra!.
Os problemas de um casal inter-racial já foram
objeto de atenção em inúmeros filmes, de diversos gêneros. Um dos mais estimados
e lembrados é Adivinhe Quem Vem Para
Jantar, estrelado por Sidney Poitier, Spencer Tracy e Katharine Hepburn.
Lançada há exatos 50 anos, esta produção guarda semelhanças com a premissa de Corra! ao também contar a história de uma
jovem (branca) que vai visitar os pais para apresentar seu namorado (negro) com
quem pretende se casar. O tratamento é de comédia dramática, mas o tema revelador
da discriminação racial está igualmente presente.
O roteiro de Corra!
é original e bem resolvido em termos dramáticos, apesar de ser um tanto rápido
e inconclusivo no desfecho em relação a certas questões que ficam em aberto. A
experiência exasperante do protagonista é envolvente e perturbadora na medida
adequada, sem excessos. O tema de fundo, a questão racial, recebe uma abordagem
criativa, a milhas de distância de um discurso meramente panfletário. Corra! é uma produção admirável, seja
pela ótica da crítica social, seja como exercício de terror.
Assista o trailer: Corra!
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