terça-feira, 9 de maio de 2017

“Alien - Covenant”: retorno ao terror espacial


O anúncio de retomada dos filmes da série Alien em 2012 com Prometheus encheu de expectativas os fãs, especialmente porque o criador original, Ridley Scott, estava de volta à frente do projeto, assumindo a direção. O resultado final foi um tanto frustrante e decepcionou muita gente (embora hoje a produção mereça uma reavaliação menos apaixonada). Cinco anos depois, estamos diante de mais uma tentativa de dar novo rumo à franquia. Alien – Covenant, que está chegando às telas mundiais com expectativas renovadas, é a aposta de Scott para dar sequência à saga criada em 1979.

Em termos cronológicos, Covenant se passa 10 anos após Prometheus. O início de Covenant repete o início de Prometheus, que por sua vez se baseia na premissa inicial de Alien, ou seja: nave espacial altera os planos iniciais de sua missão e chega uma terra estranha para explorar um “chamado”. Tudo começa com a nave Covenant que transporta milhares de embriões humanos para colonizar o planeta Origae-6. A tripulação está hibernando e o comando da missão (que deve durar mais de sete anos) está sob responsabilidade do andróide sintético Walter (Michael Fassbender).


Um acidente cósmico obriga o despertar antecipado de todos os integrantes da missão. Enquanto realizam os consertos necessários na nave, eles recebem sinais originados de um planeta desconhecido, que apresenta condições de abrigar vida humana. Uma decisão do comandante (que se mostraria equivocada, óbvio) muda os planos da missão e decidem tentar a colonização naquele mundo novo. Ao pousarem na superfície descobrem que naquela terra já houve uma civilização e o único habitante solitário é o androide David (também Michael Fassbender), sobrevivente da missão do Prometheus. Mas será que ele estaria mesmo sozinho?

Um dos destaques do Alien original de 1979 era a forte presença da comandante Ellen Ripley (Sigourney Weaver), a personagem feminina que carregava o filme. Entre tantas outras referências à origem da série, Covenant tenta repetir a experiência com um protagonismo feminino, desta vez com a figura da cientista-comandante Daniels. Mas a personagem é pouco delineada, frágil e mal resolvida com seu arco dramático motivado pela perda do companheiro. Sem falar no pouco carisma da atriz Katherine Waterston (Animais Fantásticos e Onde Habitam) que compromete ainda mais a empatia do público.


A sensação de confinamento está na matriz genética da saga Alien, daí entende-se o protagonismo das naves espaciais nos três filmes dirigidos por Ridley Scott. Os melhores resultados foram indiscutivelmente alcançados na estreia da série. A nave “Nostromo” realmente fechava a ideia de um ambiente isolado e exposto às ameaças do espaço (“onde nenhum grito será ouvido”). O espaço físico, o ambiente, tornava-se simultaneamente cenário e personagem. Ao reencontrar-se com este universo, criado por ele próprio, Scott tentou resgatar este DNA da saga, a ponto de intitular o filme com o nome da nave: “Prometheus”. E fez o mesmo mais uma vez com a “Covenant”. Mas algo se perdeu nesta jornada. O truque perdeu força e a magia não se repete. A exemplo do xenomorfo, o DNA da série sofreu mutação. Os resultados foram diluídos ao longo do tempo e o impacto já não impressiona tanto. Parece que estamos diante de mais um daqueles casos clássicos onde a criatividade artística sucumbe sob o peso da abundância de recursos e tecnologia.

O terceiro ato de Alien – Covenant abandona qualquer vestígio de sua proposta inicial de thriller de ficção científica, com tendência existencialista, e se lança abertamente como um filme de ação. Teria o espírito de J. J. Abrams tomado conta de Ridley Scott? A versão anabolizada do Star Trek de J. J. seria uma inspiração para o ritmo final de Alien - Covenant? O exagerado confronto final com o alienígena deixa muita saudade do primor de suspense e pavor do ato final do Alien original de 1979. Com elementos minimalistas (efeitos sonoros, trucagens analógicas, edição enxuta e Sigourney Weaver em trajes sumários) Ridley Scott foi muito mais eficiente do que desta vez, com toda a opulência visual do desfecho de Covenant.


A volta de Ridley Scott, mais de 30 anos depois, ao universo expandido de Alien em Prometheus, e agora com Covenant, talvez tenha sido um tanto tardia, e a mão já não seja mais a mesma de outros tempos. Semelhante ao caso dos retornos de Francis Coppola e George Lucas às sequências de seus maiores êxitos (respectivamente O Poderoso Chefão e Star Wars). Passados tantos anos, algo inevitavelmente se perde pelo caminho.

Dados os resultados alcançados, quando mais uma vez Ridley Scott falha ao retomar o comando da série, parece ter sido prudente que a direção da continuação de Blade Runner tenha saído das mãos de seu criador (Scott será apenas o produtor). Em tese a escolha de Denis Villeneuve foi acertada, apesar de ter sido questionada na época. A cada novo projeto cresce a sensação de que o prestígio de Ridley Scott como diretor sobrevive apenas graças às glórias do passado.

Assista o trailer: Alien - Covenant

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 4 de maio de 2017

"Café Society": a paixão segundo Woody Allen


Tão certo quanto às quatro estações é a confirmação de um novo filme de Woody Allen todos os anos. Pelo menos tem sido assim desde 1982 quando lançou "Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão". São 34 anos de produção regular e ininterrupta. Então, estamos diante do Woody Allen safra 2016: Café Society. E, ficando ainda no campo das analogias, esta safra deve ser degustada com prazer e deleite que somente os bons vinhos podem proporcionar.

Depois de viajar por Londres, Barcelona, Paris e Roma com seus filmes, Woody Allen volta seu olhar carinhoso para uma de suas maiores paixões: a cidade de Nova Iorque. A outra paixão, o Jazz, também compõe a ambiência desta nova obra que se desenrola parcialmente no lado oposto do país, na Los Angeles dos anos 30, época de ouro do cinema de Hollywood, dos grandes estúdios, dos poderosos produtores, da ostentação e do star system que cultuava o glamour das grandes estrelas da tela. É neste cenário de sonhos e promessas que chega à cidade o protagonista Bobby (Jesse Eisenberg), um jovem judeu novaiorquino em busca de oportunidades. Acaba indo trabalhar com seu tio Phil (Steve Carrel), um poderoso agente de cinema. O choque cultural é imediato. Saído da dureza fria de uma Nova Iorque realista, Bobby se vê imerso no universo das futilidades de uma Los Angeles ilusória. A única ponte com o "mundo real" é a jovem secretária do tio, Vonnie (Kristen Stewart). O que inicialmente parecia ser apenas uma identificação de alma com o espírito independente daquela jovem imune ao mundo afetado de Hollywood, acaba se transformando em paixão. Bobby e Vonnie passam a se relacionar. Uma ilha de idílio em meio à frivolidade das relações pessoais daquela cidade ensolarada e existencialmente vazia.


"O sonho é um sonho"

Todo o primeiro ato de "Café Society" tem como cenário esta Los Angeles. Paixão, jazz, amores declarados, amores divididos, amores desfeitos. Escolhas e renúncias. Pano rápido. Estamos em Nova Iorque. Vida nova para os protagonistas. O sonho de L. A. dá lugar à realidade de N. Y. Separados por circunstâncias incontornáveis, Bobby e Vonnie seguem caminhos distintos, porém marcados pelo gosto amargo de impossibilidade de um sonho não realizado em sua plenitude.

Romântico e apaixonado (pela trama e pelos protagonistas) como poucas vezes em sua carreira, Woody Allen entrega um filme de fina sensibilidade, sem deixar de lado sua ironia crítica, sempre amparada por personagens cativantes e diálogos espirituosos. Reconhecido por sua excelência como criador de frases de efeitos e tramas bem montadas, Allen por vezes deixava a sensação de não desenvolver adequadamente seus personagens, ficando apenas na superfície da exposição de tipos meramente característicos. Pois, em Café Society o realizador se entregou totalmente e mergulhou fundo na verdade de seus protagonistas tornando-os críveis, capazes de conquistar a empatia da plateia. Ao opor L. A. e N. Y., sonho e realidade, e todas as contradições intrínsecas das paixões, Woody Allen entrega uma narrativa enxuta, coesa e cativante.

(Originalmente publicado no site DVD Magazine em setembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 25 de abril de 2017

Alan Smithee: o cineasta das mil faces


Ele dirigiu mais de 31 longas-metragens de ficção para cinema e outros 34 para a televisão, sempre transitando por diversos gêneros cinematográficos. Dirigiu também documentários, curtas e vídeos. Atuou como roteirista, produziu e assinou várias funções técnicas com editor, diretor de fotografia, compositor e diretor de arte. A versatilidade é sua marca registrada. Seu nome é Alan Smithee, mas .... sempre tem um mas. Este cineasta completo nunca concedeu entrevistas, foge de qualquer exposição midiática e não se conhece sequer sua fisionomia. Alan Smithee poderia ser considerado uma espécie "prima donna" inatingível, à la Terrence Malick, não fosse por um detalhe muito peculiar: esta pessoa não existe. É um fantasma.


Vamos aos fatos.

"Nascido" em 1968, já no ano seguinte o precoce e prolífico cineasta assinava sua primeira direção para o cinema, o western Só Matando (Death of a Gunfighter). Na verdade a direção foi de Don Siegel, mas o crédito ficou com Alan Smithee. Explica-se: Alan Smithee é apenas um pseudônimo criado pela DGA (associação dos diretores norte-americanos) para assinar a direção (e outras funções) de filmes renegados por seus verdadeiros realizadores, pelas mais diversas razões: falta de controle criativo, montagens não autorizadas, vergonha ou constrangimento pelo produto final. O nome "Alan Smithee" é um anagrama para a expressão "the alias men", algo como "o homem apelido".


Na medida em que Smithee assina apenas projetos renunciados, pode-se imaginar a quantidade de "abacaxis" que fazem parte de sua filmografia. Com uma relação interminável de tranqueiras associadas ao seu nome pode-se considerar Alan Smithhe um realizador que se habilita a roubar de Ed Wood o título de "pior cineasta de todos os tempos".

Ao se ver obrigada a adotar a solução de um "realizador virtual", Hollywood acabou, por tabela, criando a figura de um diretor ideal, submisso, controlado, que não contesta, acata as regras da indústria e se submete aos desmandos dos chefões dos estúdios. É o cinema industrial em sua essência mais cruel.


Muitos diretores conhecidos já recorreram aos "serviços" de Alan Smithee, entre eles Dennis Hopper, Richard C. Sarafian, Arthur Hiller, Rick Rosenthal, Sam Raimi e David Lynch. Como destaques (se é que podemos falar assim) da filmografia de Smithee pode-se citar a continuação Os Pássaros II (1994 - TV); Atraída Pelo Perigo (1990), com Jodie Foster no elenco, e Duna (versão alternativa lançada em 2006).



Essa história tão curiosa de Hollywood poderia muito bem dar um filme. E deu mesmo. Em 1997 foi lançada a sátira Hollywood Muito Além das Câmeras, (An Alan Smithee Film: Burn, Hollywood, Burn) que conta a história de um diretor de cinema chamado Alan Smithee (interpretado por Eric Idle, do Monty Python) que não pode renegar seu filme justamente porque possui o mesmo nome do diretor "coringa" do pseudônimo criado pela DGA. Então, ele decide roubar os negativos do próprio filme para destruí-los. Mas, olha só que ironia, Hollywood Muito Além das Câmeras é tão, mas tão ruim, que o próprio diretor Arthur Hiller decidiu utilizar o pseudônimo de Smithee para assinar o desastre. E como desgraça pouca é bobagem, para desespero de todos os envolvidos o filme acabou ganhando cinco Framboesas de Ouro naquele ano. A partir deste caso, a própria DGA passou a adotar outros pseudônimos para assinar filmes fracassados. Mas o mito Alan Smithee segue assombrando os cineastas que pisam na bola.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em agosto de 2016)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 17 de abril de 2017

Os 100 melhores do Cinema Brasileiro


Ainda que sujeitas a críticas, suspeitas, falhas, omissões e injustiças, o fato é que as listas são questionáveis já por definição. Ao ambicionar o ordenamento do juízo de valores, sejam eles positivos ou negativos, uma lista necessariamente sempre lida com o imponderável elemento subjetivo de uma avaliação particular. No entanto, ainda assim, não há como negar o irresistível apelo que elas, as listas, provocam. Ao concentrar uma imensa carga de informação, as listas fazem todo sentido nesses tempos de avassaladores volumes de conteúdos dispersos (por vezes desconexos) a que somos submetidos diariamente. Separar o joio do trigo é uma tarefa que devemos nos impor diariamente. E, convenhamos, uma lista facilita demais este trabalho.

Dito isto, vai uma ótima notícia para os cinéfilos interessados no cinema brasileiro. Os principais críticos de cinema do Brasil consolidaram uma oportuna e necessária lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. A grande virtude da iniciativa é a diversidade da avaliação, que não ficou limitada ao campo apenas dos longas-metragens e nem restrito ao universo dos filmes de ficção. Tratou-se da produção brasileira como um todo, independente de gênero, forma ou bitola. Some-se a esta amplitude a origem dos votantes. Participaram críticos de cinema de todas as regiões do país, todos eles integrantes da “Associação Brasileira de Críticos de Cinema” (Abraccine).


O resultado final da votação resultou no livro 100 Melhores Filmes Brasileiros (Letramento) que publicou textos críticos/analíticos de cada um dos filmes, contextualizando sua origem, seu valor fílmico e sua importância na história da produção cinematográfica do Brasil em seus 120 anos de existência. O critério de redação dos textos foi simples: cada filme, um crítico. O resultado é um amplo panorama do cinema brasileiro onde constata-se a consolidação de alguns títulos unanimemente reconhecidos, ao lado de outros tantos que ganham uma projeção que não tiveram na época de seu lançamento e também alguns resgates históricos de obras que pareciam relegadas ao esquecimento.


Ao percorrer a lista, desde o 1º colocado (Limite, de Mário Peixoto) até o 100º filme (Meteorango Kid, Herói Intergalático, de André Luiz Oliveira), através das excelentes críticas, o leitor pode ficar certo de estar fazendo uma incrível viagem pelo o que de melhor o cinema brasileiro já produziu. Ainda que, com as ressalvas já feitas, uma lista sempre ofereça motivos para eventuais questionamentos justamente por não ser resultado de um experimento científico, mas sim fruto de uma reflexão específica, momentânea, sujeita ao tempo e espaço onde nascem. Assim, por este viés, entende-se que cerca de um terço dos filmes selecionados foram produzidos nos últimos 20 anos.


Claramente isto representa uma questão geracional que se manifesta pela predominância de uma grande presença de críticos mais jovens em detrimento da “velha guarda” da crítica brasileira. Mas, absolutamente isto não invalida nem contamina de forma injusta e comprometedora o resultado final da votação. É louvável e muito bem-vinda esta iniciativa e sua construção, ao longo do tempo, certamente pode ser revista, ajustada e reavaliada. Parabéns à Abraccine pela iniciativa e aos críticos pela virtuosa e abrangente seleção e seus fantásticos textos. O cinema brasileiro agradece. E aos cinéfilos, um recado final: vejam os filmes e leiam o livro.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em novembro de 2016)

Jorge Ghiorzi

domingo, 9 de abril de 2017

O filme proibido de Jerry Lewis


No filme Crimes e Pecados, de Woody Allen, em dado momento o personagem de Alan Alda responde a uma questão crucial: "o que é comédia?" Segundo sua explicação, "comédia é tragédia somada ao tempo". Ou seja, decorrido algum tempo, qualquer tragédia pode ser transformada em comédia. Exemplo prosaico e elementar: o cidadão escorrega numa casca de banana, cai e quebra a perna. Fazer piada e rir disto no ato é constrangedor e inadequado. Mas, dê tempo ao tempo, e chegará o momento em que até a vítima será capaz de rir de si próprio. Essa é a magia. É necessário se distanciar da dor para rir.

A regra parece simples na teoria. Mas na realidade, quanto tempo é necessário para rirmos de uma tragédia? É difícil saber. Que o diga o comediante Jerry Lewis que experimentou fazer comédia com um tema difícil, como o extermínio de judeus nos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. As torturas da Inquisição na Idade Média já foram motivo de gags pelo grupo Monty Python, a Guerra da Coréia já foi esculachada por Robert Altman em Mash e a própria Segunda Guerra já foi inspiração para uma comédia semelhante como A Vida é Bela de Roberto Benigni. Mas, parece que Jerry Lewis foi um pouco além em seu filme proibido: as vítimas do extermínio eram crianças!


The Day the Clown Cried (O Dia em que o Palhaço Chorou), de 1972, é o filme maldito de Jerry Lewis, jamais lançado. Na verdade o filme nunca foi devidamente finalizado pelo diretor, o próprio Lewis. A morbidez do tema foi demais em sua época (e talvez ainda seja), e o filme tornou-se um daqueles mistérios a que poucos tiveram acesso ao material. O realizador retirou as filmagens de circulação, proibiu seu acesso e decidiu mante-la longe dos olhos do público. Apenas a sinopse já dá ideia das razões da proibição: um palhaço diverte crianças judias em seu caminho para as câmaras de gás nos campos de concentração nazista na Segunda Guerra Mundial.


A abordagem totalmente inesperada para um comediante popular como Jerry Lewis, cuja filmografia jamais faria supor algo sequer parecido, surpreendeu meio mundo. Parecia totalmente inapropriado um filme com esta temática se considerarmos que o artista sempre foi reconhecido como um artista voltado para ações humanitárias em benefício das crianças, particularmente por seu famoso programa anual de TV "Jerry Lewis Telethon", que objetiva arrecadar recursos para crianças com distrofia muscular.


Recentemente foi divulgado que a Biblioteca do Congresso norte-americano recebeu o espólio do filme para seus arquivos, doados pelo próprio Jerry Lewis, que autorizou a liberação para o público somente em 2024

Algumas cenas de bastidores das filmagens de The Day the Clown Cried estão disponíveis no YouTube: goo.gl/aqqjkG

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em julho de 2016)

Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 31 de março de 2017

"Ponto Zero": longa jornada noite adentro


O período da puberdade é um momento de descobertas e perda da inocência, diante do mundo adulto que se descortina. A riqueza dos sentimentos intensos e contraditórios que esta fase provoca é fonte de inspiração para inúmeros filmes que narram o rito de passagem. Quando este caldeirão de anseios evocados pela chegada da adolescência não é tratado como um banal clichê, mas colocado a serviço de uma narrativa analítica, tem-se um encontro que tangencia o encantamento de uma poesia. É isto que nos oferece o filme Ponto Zero, dirigido por José Pedro Goulart.

Primeira experiência do realizador no formato de longa-metragem, Ponto Zero conta o drama de um núcleo familiar de quatro pessoas em desagregação, uma bolha de sentimentos represados prestes a explodir. Pai ausente, mãe fragilizada, filha indiferente e filho dividido. O protagonista, condutor da narrativa, é o adolescente Ênio (Sandro Aliprandini) que precisa sintonizar seus sentimentos de acordo com a dureza da realidade que o cerca. Em meio a um inevitável processo de separação dos pais o jovem busca restabelecer o equilíbrio emocional justamente no momento mais emocionalmente instável do ser humano: a passagem da adolescência para a vida adulta. Os hormônios em ebulição convivem com um mundo que conspira, e o sentimento de incompletude é uma fatalidade incontornável.


Oprimido, retraído, enclausurado em si próprio, o jovem não verbaliza seus sentimentos nem se rebela de forma efetiva ao mundo que o sufoca. A válvula de escape para manter a sanidade é o vasto universo interior do personagem. Dos silêncios externos se constrói uma sinfonia interior. A intensa realidade introspectiva de Ênio se transfigura numa realidade distorcida, utópica e idealizada. Neste aspecto, o filme de José Pedro Goulart assume contornos de uma experiência expressionista, quando a subjetividade do personagem se projeta para a realidade circundante.

A trajetória errante do jovem protagonista se configura em uma odisseia pessoal com a qual eventualmente nos identificamos ou, alternativamente, apenas testemunhamos. Mas sempre com grande interesse e nunca com passividade. Tecnicamente exuberante e sedutor, Ponto Zero é uma experiência sensorial na qual a plateia deve deixar-se levar, sob pena de não extrair na plenitude sua essência. 
(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em junho de 2016)
 Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 23 de março de 2017

O retorno de Sônia Braga


O Festival de Cannes de 2016 ficará marcado na história pelos brasileiros por um fato de repercussão internacional: o protesto da equipe do filme Aquarius no tapete vermelho da Croisette. Mas à esta edição do Festival deverá também ser creditado o bem-vindo resgate de uma importante personalidade do cinema brasileiro, nossa maior estrela internacional em atividade – Sônia Braga. Após alguns anos de relativo afastamento do protagonismo e das manchetes, a atriz recebeu o reconhecimento de uma verdadeira estrela que sempre foi. Seu elogiado desempenho em Aquarius foi apontado, na ocasião, como um dos favoritos ao prêmio de interpretação do Festival, que acabou agraciando a atriz filipina Jaclyn Jose do filme Ma’Rosa.


Neste momento tão especial na carreira da atriz, vale a pena relembrar um pouco de sua trajetória. Natural de Maringá (PR), Sônia Braga, ainda adolescente, iniciou a vida artística pelo teatro em pequenas montagens. Em 1970 participou da primeira montagem brasileira da icônica peça Hair, onde causou escândalo por aparecer nua em cena. Neste mesmo ano participou da sua primeira novela na TV, Irmãos Coragem, e atingiu o auge de popularidade em 1975 quando estrelou a novela Gabriela.


O cinema entrou na vida de Sônia Braga um pouco antes. Foi em 1968, quando a atriz ganhou um pequeno papel no clássico O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla. O primeiro grande papel de Sônia Braga no cinema aconteceu oito anos depois. E que papel. Ela foi a Dona Flor no grande sucesso e recordista de bilheteria do cinema brasileiro: Dona Flor e Seus Dois Maridos, dirigido por Bruno Barreto. Dois anos depois fez A Dama do Lotação, que filme que a tornou o maior símbolo sexual brasileiro dos anos 70. No início da década de 80 faz Eu Te Amo, sob a direção de Arnaldo Jabor, papel com o qual conquista o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado.


Poucos anos depois vive uma primeira experiência internacional ao participar da adaptação cinematográfica Gabriela (1983), ao lado do astro italiano Marcello Mastroianni. O ano de 1985 marcou uma virada na carreira da atriz. Ao estrelar a coprodução Brasil-EUA O Beijo da Mulher Aranha, dirigida por Hector Babenco, Sônia Braga atraiu a atenção da imprensa internacional e dos produtores norte-americanos. Aproveitando o momento favorável, Sônia Braga decide tentar carreira internacional e se transfere para os Estados Unidos.


Em 1987 se torna a primeira brasileira a apresentar uma categoria na cerimônia de entrega do Oscar, ao lado de Michael Douglas. E logo no ano seguinte inicia de fato sua carreira em Hollywood ao fazer par romântico com Robert Redford no drama Rebelião em Milagro, papel que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro. Logo em seguida participa de Rookie – Um Profissional do Perigo, filme policial de ação dirigido e estrelado por Clint Eastwood.

Uma década depois volta ao Brasil e mergulha mais uma vez no universo de Jorge Amado, protagonizando a versão cinematográfica Tieta do Agreste (1996), dirigida por Cacá Diégues. No seu retorno aos EUA Sônia Braga participa de muitos telefilmes (de baixa repercussão e interesse) e episódios em várias séries de TV (Alias; C.S.I.; Sex and the City; Law & Order; Ghost Whisperer; Desperate Housewifes e outras).


Agora, Sonia Braga vive um comeback graças à Aquarius e tudo indica que retomará sua carreira em grande estilo.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em maio de 2016)

Jorge Ghiorzi