A Alemanha conviveu com os fantasmas da Segunda
Guerra Mundial por cerca de três décadas até abordar abertamente o tema no
cinema. Neste período de cicatrização dos traumas e reconstrução do país, um
grupo de novos cineastas alemães (nascidos justamente no período da guerra)
assumiu o compromisso de fazer este reencontro nas telas com o passado. O
movimento do Novo Cinema Alemão reuniu um grupo de realizadores
intelectualizados e cinéfilos. Coube a eles este acerto de contas com sua
própria história, sempre com o pesado olhar crítico da primeira geração que
viveu as consequências diretas da guerra.
Um dos primeiros filmes alemães a tratar diretamente
do papel do país no conflito mundial, sem qualquer traço de ufanismo mal
disfarçado, foi a superprodução Lili Marlene (Lili Marleen, 1981)
dirigida pelo enfant terrible do
movimento, o intenso e prolífico Rainer Werner Fassbinder (1945 – 1982).
Projeto de encomenda de um poderoso produtor alemão, o longa-metragem mirou o
mercado global, o que justifica as filmagens em inglês (posteriormente o filme
foi dublado em alemão) e a presença de elenco internacional. O longa-metragem
foi, em sua época, o mais caro já produzido no país. Com orçamento generoso e sua
a exuberância de cenografia, figurino e direção de arte, Lili Marlene destoa da escassez habitual de recursos com as quais
Fassbinder sempre se defrontou em seus projetos mais pessoais, muitos deles nos
limites de uma produção amadora, ainda assim criativas e íntegras como
realização artística de qualidade diferenciada.
A narrativa de Lili
Marlene se constrói a partir do confronto entre política e arte, entre
ideologia e entretenimento, e como estes dois campos se atraem, se repelem,
mas, invariavelmente, se valem um do outro para alcançar seus objetivos. Uma
comunhão de interesses num momento histórico peculiar de uma Alemanha utópica,
à beira da catástrofe.
Lili
Marlene coloca no protagonismo uma
mulher forte e poderosa, fato recorrente na filmografia de Fassbinder. Basta
lembrarmos de Petra Von Kant, Veronika Voss, Lola e Maria Braun. O filme é baseado
na autobiografia da cantora Lale Andersen e seu romance com o músico Rolf
Liebermann, tendo como pano de fundo a trajetória de sucesso da famosa canção
“Lili Marlene”.
No filme Lale e Rolf foram rebatizados como Willie
(interpretada pela musa de Fassbinder, Hanna Schygulla) e Robert Mendelsson (o
italiano Giancarlo Giannini). Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, ambos vivem
um romance idílico em Zurique, na Suíça. Ele é boêmio judeu, de família rica e
tradicional. Ela é alemã, cantora de cabaré. A família de Robert é contra o
relacionamento dos dois. Após retornarem de uma viagem à Alemanha, Willie é
impedida de cruzar a fronteira e retornar à Suíça. O casal acaba se separando,
graças a uma trama bem sucedida do pai de Robert, o poderoso David Mendelson
(Mel Ferrer).
Sozinha na Alemanha, que vivia o período de
ascensão do partido Nazista ao poder, Willie volta a cantar na noite de Berlim,
onde conhece Henkel, um ambicioso comandante nazista. Com a ajuda do novo amigo
e admirador, Willie grava um disco com a canção “Lili Marlene”. Para surpresa
de todos a música se torna um inesperado e estrondoso sucesso entre as tropas
alemãs no campo de batalha, já com a guerra em pleno andamento. A notoriedade
repentina torna Willie uma estrela. Famosa e popular, ela recebe os privilégios
do poder, chegando inclusive a encontrar pessoalmente Adolph Hitler, a pedido
dele próprio. O propósito é utilizá-la como um símbolo do regime nazista.
Inconformado com o destino de sua amada, Robert decide cruzar a fronteira para uma
perigosa missão de resgate.
O conceito de melodrama é muito flexível e se
adapta a muitas situações. Mas Fassbinder propõe uma definição certeira quando
diz que melodrama é essencialmente uma história sobre pessoas. E é exatamente
disso que se trata Lili Marlene. Um
olhar fechado sobre a paixão interrompida entre dois amantes em meio ao
fantasma do nazismo que se insinua sorrateiramente na sociedade até o golpe
final da conquista que coloca uma nação de joelhos.
Ainda que o roteiro avance aos solavancos, as
interpretações beirem ao teatral (reverência estética de Fassbinder aos palcos
do início da carreira) e a montagem descontinuada perturbe o entendimento de
certas passagens, o certo é que o realizador sabe exatamente as feridas que
deve cutucar. Um país remoendo suas culpas se viu frente a frente com um
passado que condena.
O sucesso da canção “Lili Marlene” foi um daqueles
acasos da natureza. A melodia é triste e a letra contradizia os ideais da luta
nacional socialista. Segundo o Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels,
o final mórbido da canção não inflamava o patriotismo, por esta razão ele a
chamava de “besteira com cheiro de morte”. Mas o líder nazista, fazendo jus ao
título de “gênio do mal”, soube perceber o poder e o apelo da música nos
corações e mentes das tropas alemãs (e dos aliadas também, diga-se). O poder de
convencimento da palavra, e da arte em especial, pode mover montanhas e
conquistar mentes quando utilizada com propósitos nefastos.
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em maio de 2017)