sábado, 10 de dezembro de 2016

"Robocop – O Policial do Futuro": uma revisão do clássico dos anos 80


Lançado em 1987, Robocop - O Policial do Futuro foi concebido e desenvolvido na metade dos anos 80, uma década onde o cinema norte-americano ainda não havia se voltado em massa para produções essencialmente direcionadas para os jovens. No entanto, Robocop foi um projeto que, por seu êxito e repercussão, contribuiu decisivamente para atrair e (re)descobrir este público. A produção não surgiu com tal propósito, mas tornou-se um fenômeno pop, revelando-se um produto com imensas potencialidades de exploração comercial, seja como filme, e suas inevitáveis sequências, seja como licenciamento de marca para o mercado de consumo.
Naquele tempo, há mais de 25 anos, as produções de Hollywood ainda revelavam traços de subversão moral e política, mesmo que esporádicos. A praga do politicamente correto ainda não havia entrado de vez em campo. A violência gráfica, explícita, era razoavelmente tolerada. Não como um mero recurso gratuito de catarse para as plateias (o que aconteceu nos anos 90), mas como uma representação estética e conceitual a serviço da narrativa. Robocop surgiu neste momento, como um produto mainstream dos grandes estúdios, que flertava explicitamente com as chamadas produções B.
Dirigido pelo holandês Paul Verhoeven,  Robocop foi o primeiro trabalho do cineasta em Hollywood, após uma carreira de sucesso na Holanda. Aqui, vale uma referência à curiosa similaridade da situação com o caso de José Padilha (após o sucesso no Brasil, estreia em Hollywood também com a mesma produção). Se isto não é apenas uma curiosa coincidência histórica, nos faz pensar se as implicações políticas do tema não são demasiadas para olhar norte-americano, e, portanto, seriam mais adequadamente trabalhadas por cineastas “importados”. Paul Verhoeven acabou fazendo uma carreira ascendente nos Estados Unidos. Após Robocop dirigiu dois outros grandes sucessos de bilheteria: O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992). Sua carreira perdeu fôlego com o enorme fracasso do drama erótico Showgirls (1995), premiado com a Framboesa de Ouro como o pior filme do ano.
O conflito Homem x Máquina sempre foi um tema caro à ficção científica, seja na literatura, seja no cinema. Essencialmente o que se discute é o embate entre o Humano e o Tecnológico, e suas variáveis, quando convergentes em um único ser. A criação do Dr. Frankenstein ou o menino-robô de A.I. – Inteligência Artificial, ambos, em graus distintos, discutem em sua matriz a criação científica e suas decorrências. Quais os limites? Qual a autonomia da criação? Ou, antes: os seres híbridos, sintéticos, criados pelo homem, são dignos de autonomia? O livre arbítrio é um direito, ou tais criações existem apenas para servir? Esse jogo começa a ficar perigoso quando a autoconsciência surge e os questionamentos filosóficos começam a embaralhar a questão.
Esta é a tese de fundo de Robocop. Mas, convenhamos, é exigir demais da plateia. O grande público fica sim com a primeira leitura, e curte apenas a superfície da obra: um divertido e competente filme de ação. Mas, diferente da grande maioria dos filmes do gênero, trata-se de filme de ação com cérebro. A subversão embutida em Robocop é flagrante. Critica-se a ciência, as grandes corporações, a mídia, e também as forças policiais. Mas, e aí está sua esperteza, tudo isto vem embalado em um produto de grande apelo, dissimulado de cinemão-pipoca que não fica nada a dever para nenhum outro do gênero.
Rever hoje o Robocop original traz dois sentimentos. Em primeiro lugar uma certa dose de nostalgia, e depois, alguns questionamentos renovados. O som surdo dos passos e os ruídos hidráulicos das articulações do policial robô marcaram uma geração, e hoje soam não menos do que clássicos. O mesmo ocorre com o criativo e inovador design da armadura do “policial do futuro”, uma criação de Rob Bottin (responsável pelos efeitos especiais de O Enigma de Outro Mundo/82; A Lenda/85; O Vingador do Futuro/90 e Seven/95). Outra constatação é atualidade do tema das grandes corporações privadas, que estendem seus tentáculos também para setores, em tese, públicos. Naquele universo do filme de Paul Verhoeven, o destino e a gestão das grandes cidades estão concentrados nas mãos das mega corporações. Numa Detroit à beira do caos, onde a violência urbana se espalha como uma praga, a Omni Corp. controla a força policial (que é privatizada) e, como qualquer conglomerado capitalista, visa o lucro a qualquer custo. Então, assumindo da lógica de que “robô não faz greve” e não exige direitos trabalhistas, o plano é substituir a força policial de humanos por uma força tarefa de autômatos. O projeto do robô híbrido, que resultado no personagem do Robocop é uma proposta alternativa que parecia fazer mais sentido. Mas, não será tão fácil assim. A porção “humana” do personagem é uma variável que foge ao controle dos poderosos dirigentes da Omni Corp.
Como se vê, há mais de duas décadas e meia, esta produção já lidava com temas potencialmente quentes. Uma raridade no horizonte das produções dos grandes estúdios, sempre em busca de audiências de massa, que dificilmente têm interesses dessa ordem ao assistir um filme de ação. Robocop – O Policial do Futuro marcou época. Suas qualidades resistiram ao teste do tempo e seu valor como produto cinematográfico diferenciado perdura até hoje.
(Publicado originalmente no portal "Facool" em fevereiro de 2014)
Jorge Ghiorzi

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Federico Fellini segundo Ettore Scola


Lá se vão quase 21 anos que Federico Fellini partiu. Foi em 31 de outubro de 1993 que o celebrado diretor italiano nos deixou. Por ocasião do 20º aniversário da sua morte, o Festival de Cinema de Veneza encomendou um filme para celebrar a memória do "Maestro". A tarefa coube ao cineasta Ettore Scola (Nós Que Nos Amávamos Tanto; Um Dia Especial; O Baile), que já havia declarado que não filmaria mais. No entanto, Scola abandonou sua aposentadoria e voltou a dirigir após 10 anos. Assim nasceu o personalíssimo documentário biográfico Que Estranho Chamar-se Federico - Scola conta Fellini. Reunindo fragmentos de memória, reportagem, encenação e retrospectiva, o filme revela facetas muito particulares do mestre Fellini.
Em suas primeiras sequências o documentário faz uma recriação ficcional do início da carreira de Fellini, quando era jovem desenhista cartunista que aspirava um lugar na publicação satírica "Marc'Aurélio", famosa por suas críticas políticas. Nestas passagens, reencenadas em preto e branco, de forma cômica, Scola introduz a figura de um "narrador", que entra em cena, olha para o espectador e vai nos contando a história que transcorre ao seu redor.

Federico Fellini foi na verdade um grande mentiroso. Tanto que recebeu o apelido de "Pinóquio" do cinema italiano, por sua habilidade em "recriar a realidade" de maneira que ela se ajustasse à sua visão do mundo, das coisas e das pessoas. Fellini tinha nos pequenos dramas das pessoas comuns sua matéria prima. Para ilustrar esta peculiaridade, Scola recria em dois momentos um dos prazeres de Fellini: passear de carro à noite por Roma, abordando e dando carona para desconhecidos, apenas pelo prazer de ouvir suas histórias. Que, sabemos todos nós, posteriormente seriam fonte de inspiração para futuros filmes.
Outra passagem marcante do documentário é a recriação dos atos fúnebres de Fellini, quando seu corpo ficou exposto para visitação pública nos estúdios Cinecittà. Nesta sequência Ettore Scola opta por uma visão mais poética e menos realista. Inspirado no espírito brincalhão do mestre, o diretor sugere que seu antigo companheiro está na verdade brincando com todos nós. O velho Fellini, quem sabe, ainda anda por aí, criando e (re)inventando histórias. Inclusive a sua própria.
(Texto originalmente publicado na revista "Voto" em junho de 2014)
Jorge Ghiorzi

"Clube da Luta": 15 anos depois


Durden. Tyler Durden. Esse é o cara que o cinema nos apresentou há 15 anos no filme Clube da Luta. Antes das telas o personagem vivia apenas nas páginas do livro de Chuck Palahniuk. Sim, o tempo passa, lá se vai uma década e meia que o filme de David Fincher foi lançado. Aquela era uma época onde os celulares não eram populares, a Internet engatinhava, e o planeta vivia a expectativa do início de um novo milênio. O ano era 1999. O Clube da Luta chamou as plateias para a luta e deu um sacode geral na inércia.
Definitivamente o filme de David Fincher marcou um momento de passagem. Algo como passar do analógico para o digital. O impacto do filme naqueles tempos foi grande. Mas, paradoxalmente, não alcançou toda a repercussão que merecia. Foi o que se poderia chamar de "um filme a frente do seu tempo", cujos valores só foram devidamente reconhecidos com o passar do tempo.
Um dos temas centrais do filme, mola mestra que move a narrativa, é a crítica ao consumismo desenfreado. "As coisas que você possui acabam possuindo você", declara Tyler Durden (Brad Pitt) para o incrédulo e insone executivo (vivido por Edward Norton) em seu processo de libertação emocional. Comprar, consumir, possuir. Sem motivos muito claros e sem necessidade definida. Comportamento que o filme antecipou, antes do surgimento do e-commerce de hoje que estimula e facilita a compra por impulso.
Outro tema caro ao filme é a falta de relações emocionais reais entre as pessoas. O que não deixa de ser uma ironia, se pensarmos em todas as possibilidades de interação que as redes sociais de hoje permitem. Mas, como "Clube da Luta" antecipava há 15 anos, as relações sociais nos dia que correm são eventuais e passageiras. E por fim, o filme de David Fincher também abordou o tema do terrorismo social urbano, misto de vandalismo e utopia, que mobiliza grupos sem bandeira, movidos apenas pela gratuidade da violência. Para a trupe de Tyler Durden, sabotar a comida de um restaurante, inserir fotogramas obscenos em meio a um inocente desenho animado infantil ou explodir um prédio comercial são atos indistintos em sua escala de valores. E pensar que apenas dois após o lançamento de "Clube da Luta", Nova York viveria a tragédia das Torres Gêmeas. Naquele caso, parecia um filme. Mas não era. A vida é sempre maior que a ficção.

(Texto originalmente publicado na revista "Voto" em outubro de 2014)
Jorge Ghiorzi

"Capitão Phillips": Davi contra Golias em alto-mar


Em tempos de domínio absoluto das produções de super-heróis, é um alento constatar que Hollywood ainda produz filmes como Capitão Phillips, dirigido por Paul Greengrass. A produção, estrelada por um Tom Hanks, é baseada em um caso real de ataque a um cargueiro norte-americano por piratas somalis, ocorrido em 2009. Daquele ataque resultou o sequestro do comandante do navio, Richard Phillips, tomado como refém e “moeda de troca” nas negociações.
A narrativa, que parte de um caso com alta voltagem dramática, assume características de um empolgante thriller de suspense. O diretor Paul Greengrass conquistou prestígio ao dirigir filmes tensos como Voo United 93 e dois episódios da série Bourne (“Ultimato” e “Supremacia”). Sua forma ágil, nervosa e tensa de filmar fez escola (redefinindo inclusive os novos filmes de James Bond, na fase Daniel Craig) e está toda lá em Capitão Phillips. Mas o realizador vai um pouco além e nos oferece um admirável estudo sobre liberdade, sobrevivência e, sim, geopolítica.
O líder dos esquálidos e famélicos piratas somalis, em dado momento, revela as razões que justificariam os ataques aos navios. Segundo seu discurso a fome do povo da Somália é consequência da exploração capitalista exercida pelas grandes nações. Uma desculpa um tanto romântica, para não dizer ingênua, que esconde as verdadeiras motivações monetárias de um crime disfarçado de “ato político”. Na situação de guerra civil latente do país, desempregados somalis são convocados a pegar em armas para atacar navios aleatoriamente. A missão: confiscar o máximo que pudessem (dinheiro, carga, etc.). Deste embate de desigualdades revela-se uma tragédia anunciada. De um lado um grupo reduzido de “piratas” armados com velhos rifles enferrujados, de outro todo o poderio bélico e tecnológico da Marinha dos EUA. Em essência Capitão Phillips mostra um choque de forças desiguais que reflete o desequilíbrio social e político entre as nações.
Estas são questões de fundo do longa de Paul Greengrass, que, no entanto, só revela sua essência quando reduz o foco de interesse para o elemento humano. O confronto direto dos dois protagonistas, o líder dos piratas e o capitão Phillips, no apertado e claustrofóbico ambiente do bote salva-vidas, revela as verdadeiras motivações de ambos, que se desnudam diante de uma situação limite. Nestes momentos Tom Hanks, até então apenas correto, nos oferece um desempenho arrebatador que culmina na comovente sequência no pequeno ambulatório onde trata dos ferimentos do corpo e da alma. Após momentos de violenta tensão, a fortaleza emocional do personagem de Hanks desaba em cena, e com ele desabamos também todos nós. Só por estes poucos minutos de intensa entrega emocional, Tom Hanks possivelmente receba uma (merecida) indicação ao Oscar. Final digno de um belo thriller de ação com cérebro e sentimento.
(Texto originalmente publicado na revista "Voto" em novembro de 2013)
Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Godzilla: o imortal



O Cinema já produziu inúmeros ícones que estão incorporados ao imaginário coletivo e integram o patrimônio cultural de diversos países. Quando se fala de Japão, por exemplo, um ícone cinematográfico se impõe por sua tremenda popularidade que ultrapassa as fronteiras do país. Estamos falando do gigantesco e temível Godzilla. Sua origem (na ficção) é pré-histórica. Mas, no mundo “real” dos filmes, ele está barbarizando Tóquio e Nova Iorque, seus alvos preferenciais, há apenas 60 anos.

Godzilla surgiu no cinema em 1954, numa produção da Toho Film. Aliás, esta estreia ocorreu apenas no Japão. A verdadeira face (e nome) do monstro só ganhou repercussão mundial a partir da versão norte-americana, lançada dois anos após (1956), com o título de Godzilla, O Rei dos Monstros (também conhecido como Godzilla, O Monstro do Mar). Tratava-se de uma americanização do filme japonês original, com a montagem modificada e alterações de roteiro, que introduziram na trama um personagem americano, interpretado pelo ator Raymond Burr, fazendo o papel de um repórter.


O Godzilla, que na versão original japonesa se chamava “Gojira”, uma mistura de Gorila com Kujira (“baleia”, em japonês), foi criado pelo produtor Tomoyuki Tanaka; o especialista em efeitos especiais Eiji Tsuburaya; os roteiristas Takeo Murata e Shigeru Koyama e o diretor Ishiro Honda, que se notabilizou pela direção de vários títulos da série. A ideia dos produtores da Toho Film era desenvolver seu próprio “filme de monstro gigante”, gênero conhecido no Japão como “Kaiju Eiga” (Kaiju Movies).

Reconhecidamente a inspiração maior para a criação do monstro foi o temor das consequências da radiação nuclear após o uso das armas atômicas. O lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, certamente faz parte do contexto da criação de Godzilla. Mas não foi a única fonte de inspiração. No próprio ano de 1954 (menos de uma década após o fim da Segunda Guerra Mundial) outro episódio terrível das consequências da radiação chamou atenção da equipe de criação da Toho. No início daquele ano um navio pesqueiro japonês se aproximou inadvertidamente do Atol de Bikini, onde os EUA realizavam testes com bombas nucleares. De repente, um clarão surgiu no horizonte e, logo após, uma chuva de cinzas começou a cair sobre o barco. Sem saberem de nada, os pescadores foram expostos a altas taxas de radiação. Logo começaram a surgir os primeiros sintomas: enjoos, queimaduras e sangramentos. Ao retornar para o Japão, a tripulação do navio ficou confinada em quarentena. Porém, o peixe capturado pelos pescadores foi comercializado normalmente, o que ocasionou a morte de algumas pessoas, além de vários pescadores. Em lembrança a esta tragédia, a cena de abertura do primeiro filme de Godzilla mostra um barco sendo destruído pelo monstro. Uma metáfora poderosa para os perigos do uso das armas nucleares e suas consequências.


Uma curiosidade da saga de Godzilla no cinema é o fato de que o monstro surgiu nos filmes como um vilão da humanidade, sempre disposto a arrasar com as metrópoles. No entanto, com o passar do tempo, e suas várias reencarnações, o personagem (sim, ele era o verdadeiro protagonista das histórias) foi demonstrando um poder cada vez maior de seduzir as plateias, especialmente os jovens e crianças, chegando ao ponto de ser apresentado em alguns filmes como o verdadeiro herói da história. Ainda que este herói tenha a aparência horripilante de um dinossauro mutante, com corpo de um Tiranossauro, os braços de um Iguanodonte e barbatanas dorsais de um Estegossauro. Com algumas variáveis aqui, outras ali, esse é o visual clássico do Godzilla ao longo dos seus 60 anos de vida.


Olhando com os olhos de hoje, não podemos deixar de constatar a precariedade dos efeitos especiais dos primeiros filmes da saga. No entanto, é justamente aí que reside grande parte do charme destes filmes que fizeram a alegria das matinés de muita gente. Antes da chegada dos efeitos de computação gráfica (CGI), utilizados em larga escala após a segunda metade dos anos 90, todos os filmes de Godzilla utilizaram a velha técnica de "suitmation", que consiste em colocar um ator dentro de uma fantasia articulada feita de látex. Para completar a magia do cinema, e dar a verdadeira dimensão do monstro, bastava colocar no set de filmagem pequenas maquetes reproduzindo os prédios, as pontes e os monumentos da realidade.


Entre produções memoráveis, e outras tantas esquecíveis, já foram produzidos cerca de 30 filmes do Godzilla. Suas reencarnações são regulares, seja no cinema japonês, seja no norte-americano. A novíssima versão, com os requintes da tecnologia digital 3D, está chegando às telas com uma missão: apresentar às novas gerações, que dominam as salas de cinema, um senhor monstro que apavora as plateias há 60 anos. Que a honra de uma tradição seja mantida.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em maio de 2014)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

"Laranja Mecânica": fábula visionária


Rodado em Londres no ano de 1970 e lançado mundialmente no ano seguinte, Laranja Mecânica virou alvo da censura na época e foi proibido no Brasil. Por quase toda a década de 70 os brasileiros só ouviram falar daquele polêmico filme realizado por Stanley Kubrick, após a obra-prima 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Durante anos, para os brasileiros a única referência ao filme era sua inovadora trilha sonora que misturava experiências eletrônicas do compositor Walter Carlos (antes de virar Wendy Carlos) com as composições de Beethoven. Naquela época era comum grupos de cinéfilos brasileiros viajarem para Montevidéu e Buenos Aires para assistir aquele famoso filme do qual tanto de falava no mundo todo. O filme só foi liberado para exibição no Brasil em 1978 em cópias onde foram incluídas “bolinhas pretas” sobre as genitálias dos corpos nus. A anacrônica censura da época achava mais importante esconder a nudez do que expor as plateias à violência exacerbada que o filme mostrava de maneira até então nunca vista em uma produção de grande estúdio. Hoje as “bolinhas pretas” não passam de curiosidade e mico histórico ao qual os brasileiros foram submetidos.

O tema central e pano de fundo de Laranja Mecânica é a violência. A obra de Kubrick, no entanto, expõe duas formas distintas de violência, cada qual com suas origens e consequências. Existe a violência do indivíduo, ancestral e intrínseca no ser humano quando não reprimida pela convivência social, e existe a violência do Estado, institucionalizada, amparada pela Lei e justificada pela manutenção do status quo e controle do coletivo. O filme de Kubrick trata destas duas formas dedicando a cada uma delas metade do filme.


Na primeira parte conhecemos o jovem Alex (Malcolm McDowell) o anti-herói que conduz a ação. Numa sociedade de futuro incerto as leis já não fazem muito efeito e a desagregação social parece chegar ao seu limite. É nesse ambiente que Alex leva sua vida despreocupada onde seus únicos prazeres são encher a cara de “moloko”, uma espécie de leite aditivado com drogas, fazer arruaças com os amigos e ouvir músicas de Beethoven, a quem chama de “Ludwig Van”.

A segunda parte inicia quando Alex é detido pela polícia e conduzido para uma instituição penal. Com a perspectiva de ganhar a liberdade, Alex se submete voluntariamente a um tratamento experimental que promete reabilitar delinquentes eliminando seu instinto natural para a violência. Ministrado por psicólogos a serviço do Estado, o tratamento consiste em expor o criminoso a sessões contínuas de cenas chocantes de violência explícita ao som da 9ª Sinfonia de Beethoven! Depois desta lavagem cerebral o pobre Alex é transformado numa pessoa totalmente indefesa que reage com náuseas e ânsia de vômito a qualquer manifestação de violência. Vira uma “laranja mecânica”, um ser orgânico que age mecanicamente. Redimido, Alex retorna para a sociedade e vive como um pária, sem papel social, renegado pela própria família, vingado por vítimas do passado e humilhado por seus antigos companheiros de delinquência.


A possibilidade do livre arbítrio é um ponto de discussão que Kubrick expõe com clareza em Laranja Mecânica. No processo de controle da criminalidade o Sistema impõe uma solução que transforma o indivíduo num ser robotizado, um sujeito sem a opção da escolha. E no dizer do religioso que acompanha Alex na prisão “se o homem não pode escolher, deixa de ser um homem”. Condicionado e sem opções de comportamento só resta a Alex o papel de inocente útil, manipulado por interesses políticos que o transformam em exemplo bem sucedido de reabilitação.

Repleto de ironia e sarcasmo, a adaptação de Stanley Kubrick preserva a essência da obra original. Diálogos quase literais do livro e a utilização de neologismos como “vidiar” (ver), “entra-e-sai” (sexo), “guliver” (cabeça) e “horrorshow” (espetacular) estão na adaptação, revelando a genialidade da criação de Anthony Burgess. Mas Kubrick, um mestre com pleno domínio do meio cinematográfico, fez uso de inúmeros recursos para valorizar o rico material que tinha nas mãos. Sua reconhecida habilidade em utilizar músicas clássicas nas trilhas sonoras foi mais uma vez exercida com talento em Laranja Mecânica. O mesmo se pode dizer de seu talento em criar sequencias climáticas, seja pelo uso da câmera de mão, seja pela cenografia elaborada, repleta de referências artísticas e pictóricas. Em todos seus trabalhos o realizador sempre evidenciou que reconhece o poder da imagem e seus significados, e as manipula com maestria.


Todos os elementos cinematográficos de Laranja Mecânica parecem hipnóticos e exagerados. Figurinos, cenografia, interpretações, música, tudo parece transmitir uma explosão sensorial de cores, sons e ritmos, como se a visão do mundo fosse resultado de algumas doses a mais de “moloko”. Nada mais correto se levarmos em conta que o “humilde narrador” da história é o próprio Alex, presente em 100% das cenas. É através de seus olhos e de sua percepção que somos introduzidos naquela realidade distorcida. O cinismo e a hipocrisia denunciam a personalidade egoísta do narrador que constrói o mundo de acordo com suas convicções e conveniências. Quando Alex percebe que se transformou em “objeto” cobiçado pelo Sistema assume sem escrúpulos o discurso dos poderosos. O cinismo do pragmatismo vence. O povo quer ouvir mentiras com aparência de verdades, então Alex declara em alto e bom som: “Sim, estou curado”.

Se no início do filme Alex era o algoz da sociedade, adepto da ultraviolência inconsequente, ao final se apresenta como uma vítima do Sistema. Apenas mais uma peça da engrenagem da máquina de moer pessoas. Na sequência final o verdadeiro Alex se revela. Seu refúgio de sanidade ficava num cantinho intocado da mente, capaz de fantasiar e imaginar uma sessão de sexo selvagem cercado por uma plateia que o aplaude ao mesmo tempo em que é bajulado pela imprensa e políticos em seu leito hospitalar. Alex aprendeu o jogo da mídia que se apodera da imagem e transforma a fantasia em realidade e a realidade em fantasia.


É bastante comum a constatação de que a adaptação cinematográfica de livros sempre deixa a desejar. Normalmente o livro é sempre melhor. Definitivamente este não é o caso de Laranja Mecânica. O original de Anthony Burgess já era uma obra respeitável, no entanto, nas mãos de Stanley Kubrick o material ganhou uma dimensão superior. Seu talento em sustentar visualmente uma narrativa está todo lá, em cada cena, em cada sequencia. Em Laranja Mecânica, o filme, Kubrick foi além de “Laranja Mecânica”, o livro. Ampliou o universo de Burgess e concebeu uma fábula provocante, assustadora e visionária que mantém sua força até hoje.

(Texto originalmente publicado no portal "Facool" em março de 2014)

Jorge Ghiorzi

Luis Buñuel: um cineasta não-conformista, graças a Deus



Nascido no início do Século XX, Luis Buñuel marcou como poucos um lugar na história do cinema mundial. Criado em uma família religiosa de posses, quando jovem foi preparado para viver uma vida religiosa. A perda da fé veio cedo, aos 15 anos, e tornou-se “ateu, graças a Deus”, como bem se definiu numa das declarações mais icônicas de sua personalidade. Antes de se encontrar atrás das câmeras, Buñuel foi boxeador, músico e poeta. Em Paris, seduzido pelos artistas de vanguarda, particularmente os surrealistas, Luis Buñuel descobriu o cinema. Ateu, rebelde, anarquista, encontrou no cinema seu veículo de expressão artística. Para ele os filmes eram pretexto para expressar suas verdadeiras convicções. Ou melhor, reforçar e explicitar sua vocação para contestar o conformismo social e seus padrões de comportamento ditados por uma moral burguesa que Buñuel nunca aceitou plenamente.

Se como cineasta sua mise en scène, ou mesmo a direção de atores, não eram exatamente um primor, o mesmo não se pode afirmar em relação a sua habilidade em provocar as plateias. Isto por conta de seu indisfarçável prazer em chocar a moral da sociedade cristã ocidental. Neste aspecto devemos ter em mente uma particularidade do “estilo Buñuel”. Ele nunca abriu mão do bom humor, proveniente das inusitadas (e surrealistas) situações onde jogava seus personagens.




Descrente convicto, Luis Buñuel era um cineasta constantemente preocupado com as questões religiosas. Não exatamente para fazer sua apologia. Seu desejo na verdade era confrontar constantemente os dogmas cristãos e buscar a reflexão através das contradições éticas e morais que a religiosidade impõe aos fiéis. A exacerbação deste conflito aproxima o cineasta espanhol do surrealismo e do nonsense. Seus filmes subvertem o status quo da sociedade colocando em cheque seu conformismo. O cineasta não apresenta respostas. Pelo contrário, provoca as questões mais seminais. Uma revisão histórica de seus filmes comprova que Buñuel era um ateu atormentado por dúvidas existenciais que expiava através dos filmes, que em sua grande maioria eram vistos como anticlericais.

Em certa medida Luis Buñuel sempre foi um cineasta em busca de uma pátria. Descobriu o cinema na França. Conquistou prestígio (e escândalo) com os primeiros trabalhos na Espanha. Proibido e perseguido, foi passar uma temporada nos EUA, onde fez estágio na MGM. Foi expulso de Hollywood e caiu no ostracismo por mais de uma década. Passou uma temporada no México onde deu um reinício na carreira, dirigindo produções baratas com alto teor de crítica social. Depois retornou à Espanha, onde viveu um período e glória e consagração mundial. Nesta fase final carreira venceu o Festival de Cannes (Viridiana) e levou um Oscar de Filme Estrangeiro (O Discreto Charme da Burguesia).


“Anarquista, graças a Deus”. “Ateu, graças a Deus”. Luis Buñuel foi um cineasta não conformista, jamais abriu mão de suas convicções. Ainda que por vezes nem ele próprio soubesse quais eram. Seu olhar crítico incomodou a Igreja, os políticos, a sociedade, a burguesia. Enfim, tudo que aí está. Cineasta dominado pelo sonho e a memória, Buñuel nunca abandonou a poesia, mesmo em seus momentos mais contundentes. Filmou os humildes e cutucou os poderosos. Colocou os mendigos na sala de jantar e jogou os ricos no ridículo. Luis Buñuel foi um realizador que nunca escondeu suas contradições. Pelo contrário, fez delas a matéria prima de sua obra, uma das mais influentes do primeiro século do cinema.

(Texto originalmente publicado no site "Papo de Cinema" em junho de 2012)

Jorge Ghiorzi