quarta-feira, 15 de novembro de 2017
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
“O Céu Que Nos Protege”: um deserto de paixões
Ao longo de toda a carreira o cineasta Bernardo
Bertolucci evidenciou nos filmes que dirigiu sua crítica à sociedade burguesa,
alternando momentos de maior contundência política, como em A Estratégia da Aranha; O Conformista e 1900, e outros mais amenos, como La Luna; Beleza Roubada ou
Os Sonhadores. No entanto, o que mais
fica flagrante ao examinar-se sua filmografia com a perspectiva histórica, é
que Bertolucci no fundo sempre foi um grande romântico. Por baixo daquele
verniz politizado, tendendo ao intelectual, sempre bateu um coração seduzido
pelas artimanhas do amor.
Uma produção, não exatamente valorizada na sua
obra, meio esquecida até, conseguiu reunir de forma equilibrada estas duas
facetas de Bertolucci. Em O Céu Que Nos Protege (The
Sheltering Sky, 1990) nos deparamos com uma síntese consolidada que acomoda o
projeto estético ao discurso político do realizador. A consagração mundial com O Último Imperador (1987), vencedor de
diversos prêmios internacionais, incluindo 9 prêmios do Oscar, tornou Bernardo
Bertolucci um realizador global com cacife para comandar grandes superproduções.
Nesta fase da carreira ele passa a fazer o que poderíamos chamar de “cinema
étnico”. Deste período, além dos citados O
Último Imperador e O Céu Que Nos
Protege, também podem ser incluídos filmes como O Pequeno Buda e Assédio.
Baseado no livro de Paul Bowles, com roteiro do
próprio Bertolucci em parceria com Mark Peploe (ambos também escreveram O Último Imperador e O Pequeno Buda), o filme tem a ação
centrada no ano de 1948, período marcado pela recuperação global pós-Segunda
Guerra Mundial. O cenário é o Norte da África, particularmente na região dos
desertos, incluindo o Saara.
Os protagonistas são Port Moresby (John Malkovich)
e Kit Moresby (Debra Winger), casal nova-iorquino em crise conjugal. Em busca
de um sentido existencial, e também reacender uma paixão que sucumbiu com o
peso dos anos, eles ficam viajando pelo mundo, sem plano de voo nem destino
definido. Ficam ao sabor do vento e dos desejos da hora. Enquanto viajam,
esperam curar as feridas de um relacionamento desgastado. É sintomática e
reveladora a explicação que ambos dão para a diferença entre “turista” e
“viajante”. Segundo Port, “o turista pensa em voltar para casa assim que chega
a algum lugar”. E Kit complementa: “o viajante pode nem voltar”. Port e Kit
são, portanto, viajantes por definição. Há ainda um terceiro elemento nesta
jornada. Um amigo do casal, George Tunner (Campbell Scott), companheiro de
viagem, que assume o papel de confidente e parceiro de aventuras, ao mesmo
tempo em que nutre sentimentos reprimidos pela amiga Kit. Apresenta-se então
como um fator desagregador num triângulo amoroso involuntário.
Simbolicamente uma viagem tanto pode significar
reciclagem, descoberta ou fuga. A jornada de Port e Kit consegue abarcar todos
estes significados. Um casal em constante movimento, em busca de um porto
seguro, ainda que seja apenas a miragem de um oásis no deserto. Quanto mais se
afastam do mundo urbano das metrópoles, repleto de recursos materiais, e se
embrenham na vastidão de terras desertas, mais se aproximam de seus verdadeiros
sentimentos. Uma viagem de sinal trocado, rumo ao passado, partindo da civilização
para encontrar a plenitude apenas no primitivo. Numa das mais belas e emblemáticas
sequencias de O Céu Que Nos Protege, Port
e Kit saem para passear de bicicleta e se deslumbram com a visão majestosa do
deserto visto do topo de um penhasco. Seduzidos pelo espetáculo da natureza, se
entregam aos desejos e fazem amor sobre as pedras. Sob o manto azul do céu que
tudo cobre e protege, vivem um momento fugaz de sintonia plena, acompanhados
pela trilha sonora grandiosa de Ryuichi Sakamoto e a fotografia espetacular do
mestre Vittorio Storaro.
O ritmo lento, por vezes contemplativo, da
narrativa vai num crescendo emocional das personagens que se (re)descobrem como
agentes do seu próprio destino. Port e Kit podem fugir do passado, mas não
controlam o futuro. Resta apenas o presente, imponderável. Mas, a tragédia
sempre ronda as histórias de amor. Ao aflorarem os verdadeiros sentimentos que
ambos sentem, o destino prega uma peça. O tempo perdido não volta mais. No
terceiro ato, após a jornada sem mapas nem bússola, a roda da vida gira e volta
ao início. Ao retornar ao ponto inicial da jornada, uma nova Kit entra no
restaurante do hotel e recebe um questionamento metalinguístico do próprio narrador
do filme (interpretado pelo escritor Paul Bowles): “Você está perdida?”. E Kit,
derrotada e exaurida, confessa: “Sim”.
Road
movie existencial com forte
caráter intimista, O Céu Que Nos Protege
é um projeto ambicioso, repleto de beleza, paixão e sentimento.
Assista o trailer: O Céu Que Nos Protege
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em janeiro de 2017)
quinta-feira, 2 de novembro de 2017
“Crônica de um Amor Louco”: poesia no caos
Conhecido pela crueza de seus contos, histórias
curtas e crônicas ambientadas no submundo dos excluídos, desiludidos e errantes
sociais, o escritor Charles Bukowski encharcou sua obra com muito álcool, muita
sacanagem, muito sexo, muitos palavrões e muitas mulheres sem nome. O interesse
do cinema por adaptações de seus livros vem desde os anos 70. Mas foi apenas nos
anos 80 que sua obra ganhou maior visibilidade para o grande público graças ao
lançamento de três títulos adaptados de suas histórias.
Um deles foi Barfly
– Condenados pelo Vício, dirigido por Barbet Schroeder em 1987, estrelado
por Mickey Rourke e Faye Dunaway, num período onde ambos gozavam de grande
prestígio na indústria. Ainda naquele mesmo ano, o próprio Schroeder lançaria
também o documentário The Charles
Bukowski Tapes, que reúne uma série de entrevistas com o escritor. Outro
destaque daquele período foi Crazy Love
(também 1987), dirigido por Dominique Deruddere, baseado em três contos do
escritor. No entanto, a melhor de todas as presenças de Bukowski nas telas
surgiu bem no início dos anos 80, permanecendo até hoje como uma das mais bem
sucedidas adaptações da sua vida e obra, que se mesclam de forma simbiótica
pelo forte caráter autobiográfico de seu texto. O filme era Crônica
de um Amor Louco (Storie di ordinária follia, 1981), realizado pelo
cineasta italiano Marco Ferreri, o mesmo de A
Comilança.
Baseado no primeiro dos dois volumes da obra
“Ereções, Ejaculações e Exibicionismos”, particularmente no conto “A mulher
mais linda da cidade”, e também inspirado na vida do próprio Charles Bukowski, Crônica de um Amor Louco conta a
história de Charles Serking (Ben Gazzara), um poeta errante, amante das
bebidas, das mulheres e das letras, que vive perdido na cidade dos anjos
perdidos, Los Angeles. Serking é uma encarnação ficcional, um alter-ego, do
próprio Bukowski, cujas histórias contadas foram também vividas, vivenciadas. Ele
fala (no caso, escreve) com conhecimento de causa.
Naquela vida sem rumo, passando de bar em bar,
vagando pelas ruas em busca de fortuitas aventuras amorosas, e, eventualmente
sentando à máquina de escrever, quando sóbrio, para redigir poesias e contos,
Serking acaba por cruzar com uma alma gêmea, a bela prostituta Cass (Ornella
Muti), também em busca de um sentido para sua atormentada existência. Deste
encontro nasce um romance amargurado, marcado pela urgência e o desespero.
Enquanto Serking purgava sua angústia através da poesia, Cass buscava o
equilíbrio emocional cometendo o autoflagelo físico, punindo-se simplesmente
por ser bela. Um amor de conotações sadomasoquistas se estabelece então.
Serking e Cass são duas peças “defeituosas” que não
se encaixam na máquina da sociedade estabelecida. Forasteiros de um sistema que
corrompe consciências e reprime o individualismo libertário, eles nadam contra
a correnteza e assumem os riscos Como bem diz Serking em dado momento, “os
fracassados são as pessoas mais verdadeiras deste mundo”.
Explorando situações bizarras e episódicas, com
poucos diálogos, o realizador Marco Ferreri explora o embate da beleza contra o
caos, sem, no entanto, abandonar seus personagens à própria sorte. Um olhar de
carinho e atenção está sempre presente. Em meio à derrocada moral do universo
que conspira, há sempre a poesia. A poesia que vence a desgraça. Salva e
redime.
Neste sentido, é exemplar a sequência final que se
passa na amplitude de uma praia deserta. Em cena, apenas Serking, amargurado
pela tragédia com sua amada, e uma adolescente solitária. Enquanto ele recita
uma poesia, ela desnuda o corpo jovem. Um momento que evoca a busca por uma juventude
que se perdeu no passado ao mesmo tempo em que confronta a necessidade de
encarar um futuro sem perspectivas. A sequência, bela por si só, remete ainda
ao antológico e emblemático final de A
Doce Vida, de Federico Fellini, que mostra Marcello Mastroiani também se
deparando com uma jovem enigmática numa praia, com a qual não consegue se
comunicar com palavras.
Consta que Charles Bukowski não aprovou o
desempenho de Ben Gazzara, mas, neste caso, vamos deixar de lado a opinião do
“velho safado”. O fato objetivo é que Ben Gazzara é a grande força emocional de
Crônica de um Amor Louco, e seu
desempenho visceral evidencia um ator totalmente mergulhado nas entranhas do
personagem.
Assista o trailer: Crônica de um Amor Louco
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)
quarta-feira, 25 de outubro de 2017
“O Formidável”: Godard 24 quadros por segundo
O Formidável (Le redoubtable), dirigido por Michel Hazanavicius, é baseado no livro "Um Ano Depois" escrito pela atriz Anne Wiazemsky que relata sua relação com Godard, com quem foi casada por alguns poucos anos (após o fim do relacionamento do diretor com Anna Karina). O auge do romance ocorre durante o período das filmagens de A Chinesa, em 1967, às vésperas dos movimentos de Maio de 68. No papel de Godard está o ator Louis Garrel (num desempenho excepcional) conhecido por interpretar um dos jovens do trio central de Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci.
O retrato de Godard apresentado na obra de Anne
Wiazemsky, e por consequência no filme de Hazanavicius,
não é exatamente lisonjeiro, pelo contrário, revela uma pessoa extremamente
complexa, cuja convivência na intimidade estava longe de ser das mais agradáveis.
Polemista por excelência, o realizador francês não deixava barato nenhuma
discussão e comprava todas as brigas que estivessem ao seu alcance. Apontar
incoerências dos adversários – e da sociedade francesa em geral – era seu
esporte favorito. Enfim, um ranzinza de carteirinha em tempo integral, a 24
quadros por segundo.
Toda uma iconografia clássica de símbolos,
características dos filmes de Godard, estão presentes em O Formidável. Lá estão os reconhecidos créditos em letras vermelhas
e azuis, uma profusão de imagens de cartazes, placas e painéis de rua, e a referência
constante aos livros, especialmente aos populares policiais pulp. Além destas citações gráficas, que
remetem ao imaginário fílmico de Godard, o filme de Michel Hazanavicius por vezes emula também o clima de
alguns dos mais significativos trabalhos do diretor, como A Chinesa (por óbvio, pois retrata alguns bastidores da produção), O Demônio das
Onze Horas (Pierrot le fou), Week-end à Francesa, Made in U.S.A. e especialmente a
obra-prima O Desprezo, narrativa com
a qual espelha uma similaridade direta por narrar também a relação turbulenta de
um artista intelectual com uma estrela do cinema em ascensão, em meio a um permanente
embate entre a arte, a política e o capital.
O
Formidável oferece, com a devida excusa
pelo trocadilho, um formidável painel de uma época de intensa agitação política
e cultural, cujo ápice foram as manifestações e passeatas do movimento de Maio
de 68 nas ruas de Paris. Este episódio também foi rememorado em 2003 no já
citado Os Sonhadores, de Bertolucci,
realizador que também aparece em O
Formidável na recriação de um episódio polêmico onde Godard ofende e
desacata o diretor italiano, fato que resultou num rompimento dos dois.
Vencedor do Oscar de Filme e Diretor de 2012 com O Artista, Michel
Hazanavicius faz em O Formidável
um trabalho ainda mais inspirado e coerente, e, em muitos aspectos, superior ao
trabalho oscarizado. Não cai na tentação de referenciar em demasia a figura
mítica do seu conterrâneo, colega de profissão. Ao contrário, não se recusa a
expor todas as fragilidades e contradições de Jean-Luc Godard, cuja
personalidade egocêntrica transita da arrogância ao bom humor, do ativista radical
ao bom burguês num piscar de olhos. A tarefa arriscada e perigosa de retratar
uma personalidade pública ainda viva é, antes de tudo, uma ousadia, mas Hazanavicius sai ileso desta missão ingrata e realiza um filme que se assiste com imenso prazer. Para um cinéfilo o prazer é ainda maior.
O título do filme é uma referência
ao primeiro submarino nuclear francês, lançado no mesmo período em que se passam
os fatos narrados, que recebeu da imprensa local o apelido de “O Formidável”.
quarta-feira, 18 de outubro de 2017
“Como Roubar Um Milhão de Dólares”: irresistível sedução
Paris é uma festa. Mas acrescente a este cenário lúdico
uma estrela de cinema que esbanja elegância a cada movimento de seu corpo
esguio. Inclua um requintado ator inglês exalando simpatia a cada frase
pronunciada. Envolva tudo com uma história de conquista amorosa. E, toque
final, acrescente uma pitada de suspense, e doses generosas de bom humor. Voilà! Estamos diante de uma clássica
comédia romântica, que neste caso chama-se Como Roubar Um Milhão de Dólares
(How to steal a million, 1966). Por fim, um conselho: consuma sem moderação.
Deixe-se levar por este “guilty pleasure”, sem remorso.
Estrelado pela dupla Audrey Hepburn e Peter O’Toole,
muito confortáveis em seus papéis, este típico produto da fase final da velha
Hollywood foi dirigido com hábil leveza por William Wyler (Ben-Hur; Os Melhores Anos de
Nossas Vidas; Da Terra Nascem os
Homens) um dos mais versáteis e confiáveis artesãos da época que eles trabalham
a soldo dos grandes Estúdios. Ao realizar Como
Roubar Um Milhão de Dólares, o cineasta estava já no apagar das luzes de
sua vasta e portentosa filmografia, iniciada praticamente com a adoção do
cinema falado (seu primeiro filme foi realizado em 1928) e que se prolongaria
ainda por mais dois trabalhos, lançados em 1968 e 1970.
Esta comédia romântica se insere também no
subgênero dos filmes de grandes roubos, do qual Rififi e Topkapi (ambos
de Jules Dassin) e O Grande Golpe (de
Stanley Kubrick) são exemplos muito lembrados. Inclusive, durante a produção,
William Wyler chegou a se aconselhar com Kubrick, em busca de inspiração para a
abordagem que deveria adotar. Porém, num decisão que se mostrou acertadíssima,
Wyler mudou o rumo da história e assumiu o tom de farsa, flertando abertamente
com a pura comédia.
O universo da narrativa se circunscreve ao mundo
das artes plásticas, onde pinturas e esculturas são supervalorizadas e
disputadas em leilões por milionários em busca de um verniz cultural. É neste
circuito da elite endinheirada e perdulária que circula Charles Bonnet (Hugh
Griffith), um espertalhão habilidoso, especializado em falsificar obras de
grandes artistas. Nas altas rodas ele é conhecido como um grande colecionador
de artes. Eventualmente, quando precisa de dinheiro, ele coloca uma obra de
arte “falsa” em leilão. Sem nenhum receio, afinal, quem compra é um milionário
qualquer, que não está nem um pouco preocupado com autenticidade. O que vale é
o status de contar com a obra de arte na sua parede.
A sorte do falsário muda quando o governo francês
solicita o empréstimo de uma famosa escultura do acervo de Bonnet (obviamente
falsificada) para expor no museu em Paris. Para efeitos da apólice de seguro da
obra, o museu necessita fazer uma perícia técnica (mera formalidade) para
comprovar sua autenticidade. Prestes a ser desmascarado e acusado de
falsificador, entra em cena a filha de Bonnet, Nicole (Audrey Hepburn),
disposta a tudo para salvar a reputação do pai. A única saída é arquitetar um
plano para roubar a própria escultura exposta no museu (avaliada em um milhão
de dólares). Para esta tarefa Nicole conta com a ajuda do misterioso e
sofisticado ladrão Simon Dermott (Peter O’Toole). E, por tratar-se de uma
comédia romântica, sabemos todos, de antemão, que Simon haverá também de
“roubar” o coração de Nicole.
Com uma trama bem construída e igualmente bem
solucionada, Como Roubar Um Milhão de
Dólares propõe um pequeno jogo de aparências com o espectador, contrapondo
a questão básica do original x falso ao perfil das personagens. Eles são
exatamente o que sugerem de fato serem? Seus atos são honestos, sinceros? Ou
são dissimulados e manipuladores? “Farsa”, esta é uma boa palavra para definir
está ótima comédia que anda meio esquecida, mas merece uma revisão.
Em tempos politicamente corretos que vivemos,
parece uma ousadia torcermos pelo ladrão em detrimento da lei. Mas o gênero da
comédia permite tal tipo de transgressão. Além disso, como não ser seduzido
pelo irresistível charme dos contraventores Simon e Nicole. Sem falar na fina
ironia dos espirituosos diálogos, cheios de duplo sentido e segundas intenções,
do casal em constante e ostensivo flerte.
Como
Roubar Um Milhão de Dólares é um filme
que inspira certa nostalgia de um tempo de inocência que não volta mais. Um
prova indelével da marca da passagem do tempo (lá se vão 50 anos do lançamento)
é a então quantia “astronômica” de 1 milhão de dólares, que hoje, convenhamos,
é coisa de ladrão de segunda linha.
Assista o trailer: Como Roubar Um Milhão de Dólares
(Texto originalmente publicado na
coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em dezembro de 2016)
segunda-feira, 16 de outubro de 2017
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
“A Morte Te Dá Parabéns”: eterno recomeço
O artifício do pesadelo, amplamente utilizado nas
histórias de terror, seja na literatura, seja no cinema, é extremamente
eficiente por seu efeito perturbador nos personagens – e no público também.
Efeito este que é potencializado quando o pesadelo é recorrente, enredando os
protagonistas numa teia de acontecimentos que parece não ter fim, apenas um
eterno recomeço. Este é o truque utilizado no thriller de terror A
Morte Te Dá Parabéns (Happy Death Day), uma produção com a grife da
Blumhouse Productions, que há uma década atua no gênero, responsável por
títulos de sucesso como Atividade
Paranormal, A Entidade, Corra! e Fragmentado.
O alarme de um celular soa com uma musiquinha
lembrando que é aniversário de Tree Gelbman (Jessica Rothe, uma revelação). Ela
desperta num susto. No primeiro momento não entende o que se passa. Logo percebe
que está no quarto de um rapaz, num dormitório universitário. Se dá conta que a
noitada anterior foi forte. Arruma-se rapidamente e sai do quarto. Mais tarde,
naquele dia, é surpreendida com uma festa surpresa de aniversário, organizada
por colegas do campus. Inesperadamente é atacada por um estranho e morre
assassinada. Corta. Na sequência, o alarme de um celular soa com uma musiquinha
lembrando que é aniversário de Tree Gelbman. Ela desperta num susto. E um novo
ciclo dos mesmos acontecimentos se sucede. E de novo. E de novo. Sempre com
algumas alterações e acréscimos de informações, mas o mesmo desfecho já
conhecido.
Os mais atentos podem lembrar de outros filmes onde
os personagens ficam presos numa situação que se repete indefinidamente até sua
resolução libertadora. Recentemente este recurso narrativo foi utilizado na ficção
científica No Limite do Amanhã, com
Tom Cruise, e também na comédia de 1993 Feitiço
do Tempo, estrelada por Bill Murray, que é assumidamente a maior referência
de A Morte Te Dá Parabéns, incluindo até
uma citação explícita no final.
Outra inspiração do thriller são os filmes da série
Pânico, com suas brincadeiras de autoconsciência
de filme de terror e a presença de um icônico assassino mascarado. E claro, sem
esquecer ainda da extensa tradição dos filmes slasher com os quais se alinha (com pouco sangue, é verdade), com
direito inclusive à clássica figura da final
girl. Dessa salada toda resulta um filme acima de tudo divertido que brinca
o tempo todo com as expectativas dos clichês, confirmando alguns, ao mesmo tempo
em que busca soluções criativas para outras tantas armadilhas que as regras do
gênero impõem.
A repetição interminável de fatos/situações já
conhecidos, sempre incômoda e angustiante num primeiro momento, costuma, ao
longo das experiências revividas, provocar um efeito colateral benéfico: o
aprendizado. Uma lição repetida para um mau aluno que precisa superar-se. Este
é o dilema que aprisiona a personagem Tree, que a cada novo ciclo encara a
situação recorrente com um novo espírito. Inicia com aflição e incredulidade,
passa pela aceitação, a diversão e o tédio, até assumir de vez entendimento
pleno do que ocorre e o que deve ser feito para escapar daquela situação.
Assim como a imensa maioria dos filmes de terror adolescente, não busque
obsessivamente por explicações coerentes, razões consistentes e justificativas plausíveis
para fatos e ações dos personagens. Nem fique catando furos no roteiro. Eles
estão todos lá. Não perca tempo com isto. Assuma o pesadelo da protagonista,
compartilhe sua tragédia pessoal, mas não deixe de se divertir, confortavelmente
seguro na poltrona do cinema. Afinal, somos todos voyeur, e um déjà vu de
vez em quando não faz mal a ninguém.
Jorge Ghiorzi
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