O recente (2016) falecimento de Michael Cimino,
além de lamentável em si, atraiu a atenção para a filmografia do realizador que
andava com prestígio em baixa na indústria. Ainda que tenha sido homenageado
pelo Festival de Veneza em 2012, a verdade é que Cimino rumava para uma forçada
aposentadoria por não conseguir desenvolver novos projetos pessoais. Agora, com
a filmografia definitivamente fechada, seus trabalhos voltam a ser reavaliados
e relançados, atestando o valor de uma obra que estava à espera de um novo
olhar.
Ao falar-se de Michael Cimino as primeiras
lembranças que vem à mente são justamente o seu ápice, o drama de guerra
vencedor do Oscar, O Franco Atirador
(1978), e o equivocadamente alegado maior fracasso (apenas comercial, a bem da
verdade), o portentoso western épico O
Portal do Paraíso (1980). As duas produções surgiram em sequência, fato que
apenas confirma a oscilação na carreira do realizador. Considerando este fato, é
perfeitamente compreensível a expectativa que rondava o filme seguinte, O Ano
do Dragão (Year of the Dragon, 1985), lançado após Cimino lamber por
cinco anos as feridas deixadas pela dolorosa experiência de O Portal do Paraíso.
Recontar, ainda que alegoricamente, a história da
formação da América, é uma ambição que perpassa alguns filmes do diretor. A
conquista de territórios, os primórdios do capitalismo e a integração dos
imigrantes europeus são pano de fundo em O
Portal do Paraíso. Os fantasmas do conflito do Vietnã que assombram a sociedade
norte-americana estão em O Franco
Atirador. O submundo e a corrupção das Máfias que construíram fortunas e
moldaram o poder dos EUA aparecem em O
Ano do Dragão, e também em O
Siciliano (1987), ainda que este transcorra na Itália.
Baseando em um livro de Robert Daley (que também
escreveu o livro que deu origem ao filme O
Príncipe de Cidade, de Sidney Lumet), O
Ano do Dragão tem roteiro do próprio Cimino em parceria com Oliver Stone. O
filme se passa na Chinatown de Nova Iorque, berço da máfia chinesa que opera
nos EUA comandando o tráfico de ópio, matéria prima da heroína. Para expandir
seus negócios os chineses entram em conflito com os italianos (carcamanos). A
disputa por territórios deflagra uma guerra, acaba com o equilíbrio de forças e
rompe o acordo de paz, coniventemente aceito pelas corruptas forças policiais
da região.
É neste cenário que entra em cena o capitão da
polícia Stanley White (Mickey Rourke) transferido do Brooklyn para Chinatown
com o encargo de cuidar da crescente violência no bairro. O policial avança o
sinal e vai fundo na missão. Não concordando com o faz de conta da polícia, que
prefere deixar tudo como está para ver como fica, White decide, contra o desejo
de seus superiores, fazer uma guerra pessoal assumindo o papel de justiceiro
incorruptível. Nesta obsessão o policial compra briga com o Sistema, destrói
seu casamento, acaba com suas poucas amizades e manipula a imprensa, através da
sedução de uma repórter de TV.
Impulsivo, arrogante e extremamente vaidoso, o
personagem Stanley White é de origem polonesa, o que o coloca também como um
imigrante na América, assim como os chineses e os italianos aos quais persegue
em sua saga punitiva. Há um forte componente de discriminação racial nas
atitudes do policial, um estigma, aliás, que sempre perseguiu o próprio diretor
Michael Cimino, particularmente após O
Franco Atirador, onde tratava os asiáticos de forma maniqueísta.
Os desempenhos em O Ano do Dragão são pontos fracos no resultado final. Mickey Rourke
está por demais caricato e constantemente beira ao overacting. John Lone não está particularmente bem com o líder da
máfia chinesa. Mas o desastre maior está no papel da repórter de TV Tracy Tzu,
fundamental para a narrativa. Ariene Koizumi, por vezes creditada apenas como
Ariane, atriz norte-americana de origem japonesa, não dá conta da complexidade
da personagem e coloca a perder todas as nuances da relação sadomasoquista que
desenvolve com Stanley White.
Tenso e explosivo como outros trabalhos do
realizador, em O Ano do Dragão
Michael Cimino não se furta e até se regozija com a exposição explícita de
sangue e as consequências das balas em corpos e crânios. Uma destas explosões
de violência é a sequência do tiroteio na casa noturna, que revela uma ótima
decupagem e montagem dinâmica. Sequência, aliás, que nos remete a outra, muito
semelhante, em Scarface, dirigido por
Brian De Palma três anos antes. Coincidência? Plágio “involuntário”? Quem sabe.
Mas vale lembrar que o mesmo Oliver Stone foi roteirista dos dois filmes.
Assista o trailer: O
Ano do Dragão
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em novembro de 2016)