sexta-feira, 23 de junho de 2017
segunda-feira, 19 de junho de 2017
“O Ano do Dragão”: violência em Chinatown
O recente (2016) falecimento de Michael Cimino,
além de lamentável em si, atraiu a atenção para a filmografia do realizador que
andava com prestígio em baixa na indústria. Ainda que tenha sido homenageado
pelo Festival de Veneza em 2012, a verdade é que Cimino rumava para uma forçada
aposentadoria por não conseguir desenvolver novos projetos pessoais. Agora, com
a filmografia definitivamente fechada, seus trabalhos voltam a ser reavaliados
e relançados, atestando o valor de uma obra que estava à espera de um novo
olhar.
Ao falar-se de Michael Cimino as primeiras
lembranças que vem à mente são justamente o seu ápice, o drama de guerra
vencedor do Oscar, O Franco Atirador
(1978), e o equivocadamente alegado maior fracasso (apenas comercial, a bem da
verdade), o portentoso western épico O
Portal do Paraíso (1980). As duas produções surgiram em sequência, fato que
apenas confirma a oscilação na carreira do realizador. Considerando este fato, é
perfeitamente compreensível a expectativa que rondava o filme seguinte, O Ano
do Dragão (Year of the Dragon, 1985), lançado após Cimino lamber por
cinco anos as feridas deixadas pela dolorosa experiência de O Portal do Paraíso.
Recontar, ainda que alegoricamente, a história da
formação da América, é uma ambição que perpassa alguns filmes do diretor. A
conquista de territórios, os primórdios do capitalismo e a integração dos
imigrantes europeus são pano de fundo em O
Portal do Paraíso. Os fantasmas do conflito do Vietnã que assombram a sociedade
norte-americana estão em O Franco
Atirador. O submundo e a corrupção das Máfias que construíram fortunas e
moldaram o poder dos EUA aparecem em O
Ano do Dragão, e também em O
Siciliano (1987), ainda que este transcorra na Itália.
Baseando em um livro de Robert Daley (que também
escreveu o livro que deu origem ao filme O
Príncipe de Cidade, de Sidney Lumet), O
Ano do Dragão tem roteiro do próprio Cimino em parceria com Oliver Stone. O
filme se passa na Chinatown de Nova Iorque, berço da máfia chinesa que opera
nos EUA comandando o tráfico de ópio, matéria prima da heroína. Para expandir
seus negócios os chineses entram em conflito com os italianos (carcamanos). A
disputa por territórios deflagra uma guerra, acaba com o equilíbrio de forças e
rompe o acordo de paz, coniventemente aceito pelas corruptas forças policiais
da região.
É neste cenário que entra em cena o capitão da
polícia Stanley White (Mickey Rourke) transferido do Brooklyn para Chinatown
com o encargo de cuidar da crescente violência no bairro. O policial avança o
sinal e vai fundo na missão. Não concordando com o faz de conta da polícia, que
prefere deixar tudo como está para ver como fica, White decide, contra o desejo
de seus superiores, fazer uma guerra pessoal assumindo o papel de justiceiro
incorruptível. Nesta obsessão o policial compra briga com o Sistema, destrói
seu casamento, acaba com suas poucas amizades e manipula a imprensa, através da
sedução de uma repórter de TV.
Impulsivo, arrogante e extremamente vaidoso, o
personagem Stanley White é de origem polonesa, o que o coloca também como um
imigrante na América, assim como os chineses e os italianos aos quais persegue
em sua saga punitiva. Há um forte componente de discriminação racial nas
atitudes do policial, um estigma, aliás, que sempre perseguiu o próprio diretor
Michael Cimino, particularmente após O
Franco Atirador, onde tratava os asiáticos de forma maniqueísta.
Os desempenhos em O Ano do Dragão são pontos fracos no resultado final. Mickey Rourke
está por demais caricato e constantemente beira ao overacting. John Lone não está particularmente bem com o líder da
máfia chinesa. Mas o desastre maior está no papel da repórter de TV Tracy Tzu,
fundamental para a narrativa. Ariene Koizumi, por vezes creditada apenas como
Ariane, atriz norte-americana de origem japonesa, não dá conta da complexidade
da personagem e coloca a perder todas as nuances da relação sadomasoquista que
desenvolve com Stanley White.
Tenso e explosivo como outros trabalhos do
realizador, em O Ano do Dragão
Michael Cimino não se furta e até se regozija com a exposição explícita de
sangue e as consequências das balas em corpos e crânios. Uma destas explosões
de violência é a sequência do tiroteio na casa noturna, que revela uma ótima
decupagem e montagem dinâmica. Sequência, aliás, que nos remete a outra, muito
semelhante, em Scarface, dirigido por
Brian De Palma três anos antes. Coincidência? Plágio “involuntário”? Quem sabe.
Mas vale lembrar que o mesmo Oliver Stone foi roteirista dos dois filmes.
Assista o trailer: O
Ano do Dragão
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em novembro de 2016)
quinta-feira, 15 de junho de 2017
terça-feira, 13 de junho de 2017
"Daqui a Cem Anos": um futuro possível
Todo filme de ficção científica que se preze
invariavelmente apresenta altas doses de ambição. Explorar as possibilidades
infinitas de um futuro possível é um arriscado, nem por isto menos estimulante,
exercício de pretensão. É justamente a imponderabilidade do tempo futuro que
estimula a imaginação dos escritores do gênero. Dentre eles o nome de H. G.
Wells se destaca. Não só pela qualidade da obra, mas pelo fato de ser um dos
autores mais adaptados pelo cinema. Livros, contos e novelas de Wells são fonte
de inspiração de filmes desde 1919, com uma primeira versão de The First Men in the Moon, até hoje,
incluindo uma anunciada nova adaptação de O
Homem Invisível, a ser lançada em 2018, com Johnny Depp no elenco.
Umas das primeiras obras de H. G. Wells utilizadas
no cinema foi Daqui a Cem Anos (Things to Come, 1936), longa-metragem dirigido
por William Cameron Menzies (Os Invasores
de Marte), um reconhecido Diretor de Arte que eventualmente se arriscava na
direção de filmes. Neste trabalho Menzies contou com uma colaboração de luxo. O
próprio Wells foi autor do roteiro, uma experiência única na sua carreira. O
filme foi baseado no livro “The Shape of Things to Come”, publicado em 1933,
que faz uma crônica da civilização humana até o ano de 2106.
Daqui
a Cem Anos, apesar do que diz o título
brasileiro, não conta a história de um século. Mas apenas 96 anos (!).
Explica-se: a narrativa inicia em 1940 e encerra em 2036. Aqui, já temos uma
peculiaridade. A história do filme tem seu ponto de partida apenas quatro anos
à frente da época em que foi realizado (1936). No mundo real, a Guerra Mundial
era uma possibilidade real naquele momento histórico, que, infelizmente, acabou
por se confirmar em 1939. Este mesmo clima de ameaça à paz dá o tom inicial do
filme, que se passa na fictícia “Everytown”, claramente inspirada em Londres. A
cidade vive a iminência do início da Guerra, que já havia eclodido na Europa, mas
tenta esquecer temporariamente os problemas para viver os dias de alegria que
antecedem o Natal de 1940. Nesta sociedade organizada e próspera, a crença nos
valores da família e a fé inabalável nas possibilidades da ciência garantem a
prosperidade. Esta é a visão de mundo do personagem central, John Cabal
(Raymond Massey). Segundo seu entendimento, somente uma guerra seria capaz de
romper aquele equilíbrio social. E ela vem, com todo seu poder de destruição e
desagregação familiar. Vidas sucumbem, esperanças morrem e a cidade de
“Everytown” se transforma em ruínas após duas décadas de conflito.
Corte. Somos jogados no futuro, no ano de 1966. A
guerra acabou. Mas as cidades e suas populações foram duramente castigadas. Os
recursos e a prosperidade são coisas do passado. A nova realidade impõe um
cenário de miséria, fome e destruição. Quase uma volta ao tempo das cavernas.
Uma das mais nefastas consequências da guerra foi a temível “Doença dos
Errantes” que leva as pessoas a ficarem vagando sem rumo (zumbis?). Os
contaminados eram abatidos a tiro, sem compaixão. A peste extermina metade da
população.
Mais um pulo no tempo. Estamos em 1970. A “peste”
foi erradicada. A civilização começa a dar sinais de estar saindo da época das
trevas. No entanto, naquela nova sociedade rural que começa a se formar, ainda
não há a noção de Estado e Governo. No vácuo de poder logo o instinto de
dominação dos homens se manifesta com o surgimento de um pequeno tirano local que
domina com mão de ferro a região de “Everytown”, transformada num pequeno reino
particular. Porém tudo muda com o retorno de John Cabal à cidade, após lutar no
front de batalha da guerra. Ele vem com ideias progressistas, ainda com a fé
inabalável nos poderes transformadores da ciência e da tecnologia. Dá-se então
o inevitável embate entre a barbárie (o tirano) e a civilização (o
progressista), e o mundo mergulha na nova ordem mundial que promete tempos de
prosperidade.
Uma última viagem no tempo. Vamos parar em 2036, no
admirável mundo novo, altamente tecnológico, onde todas as necessidades
materiais do homem estão supridas. Mas, nem tudo
é um mar de rosas. Em certo momento um dos personagens diz: “Progresso não é
viver. É a preparação para viver”. Não há mais desafios pessoais, a ciência
dá todas as respostas. A questão de fundo é: Será este o mundo que realmente
desejamos?
Daqui
a Cem Anos é uma típica alegoria
progressista que já foi tema de muitas histórias de H. G. Welles. Há, porém, um
componente adicional: o humanismo. Além do grande e ambicioso painel histórico
que a história retrata, não foram deixados de lado os pequenos dramas pessoais
que movem as grandes revoluções. A utopia das sociedades perfeitas e mundos
idealizados é tema de fundo das primeiras obras de ficção científica produzidas
nos anos iniciais do século 20. E Daqui a
Cem Anos é um inestimável exemplo do que de melhor já se fez no gênero.
Vale lembrar que ele surge apenas uma década após a obra-prima Metrópolis, de Fritz Lang, com a qual,
aliás, possui alguns pontos de contato pela abordagem do totalitarismo nas
sociedades altamente tecnológicas.
Em termos eminentemente artísticos o filme de William
Cameron Menzies é um espetáculo à parte por sua deslumbrante cenografia
(lembrando, o filme é de 1936, em preto-e-branco), elaborados sets e eficientes
trucagens de maquetes. Como exercício de especulação de possibilidades
científicas, Daqui a Cem Anos traz
muitos acertos em termos de imaginação de tecnologias que surgiriam no futuro.
O filme apresenta pioneiras TVs planas, telas de LED, tablet, celular de pulso,
projeção holográfica e uso regular de helicóptero como transporte civil (que
era apenas um projeto em desenvolvimento naquela época).
Daqui
a Cem Anos faz parte da coleção
“Clássicos Sci-Fi – Volume 3”, lançamento da Versátil Home Vídeo.
Assista o trailer: Daqui
a Cem Anos
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em outubro de 2016)
sexta-feira, 9 de junho de 2017
“A Múmia”: mal renascido
O cinema definitivamente não deixa as múmias em
paz. Figura recorrente na literatura fantástica, as múmias ressurgem nos filmes
com frequência, desde o clássico da Universal lançado em 1932, com Boris
Karloff, que estabeleceu as características finais do ícone do terror que faz
parte do nosso inconsciente coletivo. Uma leva recente com o tema aconteceu no
início dos anos 2000, com dois filmes estrelados pela “Múmia”, o primeiro deles
com Brendan Fraser e Rachel Weisz. Passados 17 anos, a mesma Universal decide
que era hora de ressuscitar o monstro para apavorar as novas gerações. Porém,
com a ajuda de um astro de primeira grandeza, Tom Cruise, para garantir as bilheterias.
Mas, algo deu muito errado. O retorno foi desastroso. Como uma maldição, a
produção sofreu as consequências malignas de invocar impunemente os mortos.
A Múmia
(The Mummy), primeira produção da Dark Universe, nova divisão da Universal
responsável pelos “filmes de monstro” que vem por aí, foi dirigido pelo
realizador novato Alex Kurtzman (este foi seu segundo longa), mais conhecido
pelos roteiros de sucessos como Missão
Impossível 3; Star Trek; Transformers e Cowboys & Aliens. Consta que ele está finalizando o roteiro do
remake de A Noiva de Frankenstein, a
ser lançado em 2019, com Javier Bardem no elenco.
Nesta releitura da Múmia, uma espécie de reboot, a
produção atualizou o mito e se adaptou aos gostos e expectativas das plateias mais
jovens, acostumadas aos filmes de ação e super-heróis. O filme é justamente
isto: uma tentativa de reciclar velhos ícones e apresentá-los como “novidade”.
A história de A
Múmia inicia séculos atrás, no Antigo Egito, quando a princesa Ahmanet
(Sofia Boutella) invoca o deus da morte, Set, para tomar o trono de seu pai.
Descoberta a trama, ela é mumificada, amaldiçoada e sepultada numa tumba na
Mesopotâmia (atual Iraque), a milhas de distância de sua terra natal, o Egito. Nos dias
atuais, no século XXI, a tumba é descoberta por acaso por uma dupla de soldados
das Forças Especiais do exército norte-americano, Nick Morton (Tom Cruise) e Chris Vail (Jake Johnson),
especializados em explorar tesouros e relíquias históricas. Na exploração da
tumba eles contam com a ajuda da pesquisadora Jenny Halsey (Annabelle Wallis).
Ao resgatarem o ataúde que contém a múmia de Ahmanet, o mal desperta e a
maldição milenar se cumpre.
A
Múmia parece sofrer de um defeito
de origem, sem conserto. A ambição do projeto foi fatal para sua plena
realização. O longa parece a todo o momento querer abraçar o mundo, incluindo o
conceito da convergência, que mistura influências, referências e reciclagem de
ideias alheias. Originalidade passou a léguas de distância. Bebendo na mesma
fonte de Indiana Jones, com alguns toques das aventuras do professor Robert
Langdon (da criação de Dan Brown, “O Código Da Vinci”), a aventura resulta
confusa e dispersiva. Dá-se inclusive ao luxo de desperdiçar a presença de um
astro do porte de Russell Crowe, completamente deslocado no papel de um
cientista / pesquisador chamado Dr. Henry Jekyll, que não disse a que veio.
Bem, ninguém se chama Jekyll impunemente, sem sugerir a existência de um certo
Sr. Hyde, referência direta da obra clássica de Robert Louis Stevenson.
Tom Cruise sendo mais Tom Cruise do que nunca, e correndo
em cena como sempre, não agrega elementos ao personagem que possam tirá-lo de
sua condição rasa de um mero tipo unidimensional, sem vida, sem nuances, sem
fragilidades. Mesmo um Indiana Jones, para ficarmos numa referência já citada,
se apresenta como um personagem crível, dotado de cinismo e zonas de sombra em
sua personalidade. Portanto, a desculpa de que se trata meramente de uma
aventura não justifica o desleixo da abordagem. Em A Múmia temos mais do mesmo, beirando ao esgotamento de uma fórmula
que já não tem mais nada a oferecer ao espectador. Por outro lado, a
companheira de Tom Cruise nas aventuras, Annabelle Wallis (do terror Annabelle e do recente Rei Arthur), traz algum sopro de
renovação que vislumbra uma perspectiva de futuro. Annabelle é uma atriz promissora,
à beira do estrelato.
Indeciso em sua proposta, A Múmia abandona o clima de terror, que insinuava em seus
movimentos iniciais, para se atirar no terreno fácil da aventura inconsequente.
Claramente a produção foi desenvolvida para sustentar mais uma franquia para
Tom Cruise, já “dono” das séries Missão
Impossível e Jack Reacher (e Top Gun que vem aí), mas os resultados
alcançados parecem ter sepultado o projeto para a eternidade sob toneladas de
areia do deserto. Mas, como todas as lendas ensinam, as múmias sempre
ressuscitam para assombrar.
terça-feira, 6 de junho de 2017
“Mulher-Maravilha”: heroína para os novos tempos
O primeiro filme solo da heroína dos quadrinhos
nasceu sob o signo da desconfiança. E razões não faltavam. A começar por ser
uma personagem da DC, que, convenhamos, não tem tido muita sorte (ou
competência) em suas adaptações cinematográficas. Outro fator de suspeição era o
histórico desfavorável das personagens femininas protagonistas no universo dos
super-heróis, quando chegam às telas. Quem não lembra dos fracassos monumentais
da Mulher-Gato e Elektra? Ou seja, havia muitos riscos envolvidos na primeira
aventura cinematográfica da Mulher-Maravilha. No entanto, apesar de todas as
adversidades potenciais que rondavam a produção, o filme se mostra um êxito
absoluto sob qualquer ângulo de análise, seja como entretenimento, seja pelas expressivas
bilheterias, seja pelas possibilidades de estabelecer, de maneira afirmativa, a
primeira franquia de real futuro da DC no cinema.
A exemplo do Capitão América (da Marvel), a Mulher-Maravilha
também é uma personagem fora de seu tempo. No caso da heroína, fora de seu
espaço também, pois abandona seu idílico mundo feminino na oculta ilha de Themyscira
para ingressar no mundo dos Homens (no sentido mais amplo da palavra) em plena
Guerra Mundial. Este é o primeiro conflito apresentado em Mulher-Maravilha (Wonder
Woman), o filme. A princesa amazona Diana Prince (Gal Gadot) é uma personagem idealista,
deslocada numa terra que desconhece, regida por regras e ambições
individualistas que custa a entender. A pureza de sentimentos e convicções
morais que cultua em sua civilização entra em choque com as fraquezas éticas e morais
de um mundo movido pelo ódio, ganância e luta pelo poder. A Mulher-Maravilha é
uma heroína do passado que resgata valores básicos de justiça, paz e harmonia,
muito bem-vindos nos dias que correm.
A ambientação no período da Grande Guerra oferece
um cenário perfeito para estabelecer o choque de realidade da Mulher-Maravilha,
que percorre sua jornada a partir de um idealismo quase inocente para uma
personagem que transita e sobrevive se adaptando ao meio ambiente hostil. Para
tanto enfrenta vilões bem humanos (incluindo uma vilã) e também adversários
mitológicos dotados de super poderes. Por tratar-se de um filme de origem, Mulher-Maravilha oferece o esperado
pacote completo, onde o arco da evolução da personagem é um tanto acelerado no
primeiro ato para dar conta de entregar uma super-heroína “pronta” para os atos
dois e três da aventura. Mas nada que comprometa significativamente o interesse.
Pelo contrário, aliás. A história é envolvente e cativa em poucos minutos. Afinal,
estamos diante de uma HQ transformada em filme, com todas as liberdades e
licenças artísticas que uma adaptação se permite fazer.
A direção de Patty Jenkins, a mesma de Monster – Desejo Assassino (com Charlize
Theron), é competente nas sequências de ação e sensível nos momentos mais
intimistas, recorrendo a pequenas piadinhas sexistas disparadas contra o
universo dos homens. Equilibradas e provocativas na medida, sem exagero,
diga-se, e totalmente afirmativas no terreno minado dos super-heróis, dominado
pelas figuras masculinas. Neste ponto, Mulher-Maravilha
ganha pontos preciosos e conquista merecido espaço para futuros projetos no
gênero.
Parte significativa dos acertos de Mulher-Maravilha deve ser creditada à
atriz Gal Gadot, que já havia estreado na pele da heroína no irregular Batman vs Superman: A Origem da Justica
em 2016. Ex-Miss Israel de 2004, e ex-integrante do exército israelense, Gal
Gadot encarna com paixão, garra e convicção a princesa amazona. Sua formação
militar fica evidente nas sequências de ação, quando sua figura cresce em cena ganhando
vigor e força nas coreografias. No entanto, fica um tanto a dever nos momentos onde
a personagem exige um pouco mais de talento dramático. Ainda assim, o saldo
final é positivo. Gal Gadot se apropriou definitivamente da personagem, e o que
vem daqui para a frente deverá fazer a alegria dos fãs.
quinta-feira, 1 de junho de 2017
"A Tortura do Medo": um homem, uma câmera
O cineasta britânico Michael Powell sempre foi
reconhecido como um eficiente narrador, cujo elaborado estilo visual se
ajustava à perfeição ao tom levemente (ou totalmente) fantasioso de seus
melhores filmes. Powell era dotado de uma prodigiosa visão estética vocacionada
ao espetáculo visual. Exemplo clássico de seu estilo foi Os Sapatinhos Vermelhos (1948) que capturou a imaginação das
plateias com seu clima de sonho e magia. Um dos mais notórios entusiastas deste
filme é Martin Scorsese, fã confesso do realizador.
Com uma extensa filmografia de prestígio, nada
faria supor que Michael Powell provocasse uma inesperada virada na fase final
da carreira. Em 1960 lança o surpreendente A Tortura do Medo (Peeping Tom).
Ousado e insanamente incompreendido em seu tempo, o filme foi destruído pela
crítica e decretou o assassinato da carreira de Michael Powell, que a partir de
então mergulhou em declínio, rumando definitivamente para um precoce
ostracismo.
Considerando a perspectiva histórica, parece
compreensível a polêmica e o choque que o filme provocou. Claramente a obra de
Powell estava à frente de seu tempo nas questões estéticas, narrativas e
temáticas. Era um filme insólito que chocou as plateias britânicas bem
comportadas da época. Curiosamente, no mesmo período foi lançado outro filme de
impacto, com resultado totalmente diverso, embora também inesperado levando-se
em conta a carreira do realizador. A
Tortura do Medo foi lançado em abril de 1960, e apenas dois meses após, em
junho, Psicose de Alfred Hitchcock
chegava às telas. Ambos os filmes ousaram no roteiro, avançaram na abordagem da
violência, apresentaram protagonistas assassinos (que provocam reações de
empatia / rejeição na audiência) e envolviam o espectador num universo de
morbidez psicológica. No entanto, os filmes percorreram caminhos distintos.
Enquanto um se tornava clássico instantâneo, o outro era esquecido, colocado no
limbo da história. Então, surge o catador de pérolas, Martin Scorsese, que
vinte anos depois resgata o filme de Michael Powell, exibe em festivais e
oportuniza a redescoberta de uma obra-prima, elevada hoje à categoria de “cult
movie”.
“Peeping
Tom” é uma expressão inglesa que significa algo como “espiar”, “observar
secretamente”, cuja origem remonta a uma lenda anglo-saxã relacionada à Lady
Godiva, que cavalgou nua pelas ruas da sua cidade. Ao fazer este passeio (fruto
de uma promessa) ela teria instruído ao povo para se fechar em suas casas, para
não vê-la sem roupas. Mas, um tal de Tom não resistiu e acabou espiando pela
janela. Como punição divina ele teria ficado imediatamente cego.
“Tudo
que eu filmo, eu sempre perco”
O personagem protagonista de A Tortura do Medo é Mark Lewis (Karlheinz
Böhm, bastante conhecido na época por ter interpretado o imperador
Francisco José nos três filmes da série Sissi),
um cinegrafista que trabalha como auxiliar do diretor de fotografia de um
estúdio de cinema. Nas horas vagas trabalha como fotógrafo de “nus eróticos” em
um estúdio clandestino. Seu grande projeto de vida é realizar um documentário,
cujo conteúdo desconhecido é eventualmente sugerido ao espectador ao longo da
história. No decorrer das filmagens amadoras a verdadeira compulsão deste
personagem sexualmente reprimido se revela: assassinar mulheres para captar com
a câmera o preciso momento de horror que precede a morte (um precursor dos
míticos “snuff movies”).
A origem deste comportamento estaria no passado do
protagonista Mark Lewis. Quando criança, seu pai, um psicólogo, o submetia a
experiências para explorar os efeitos do medo no sistema nervoso. Estas
experiências eram filmadas para posterior análise psicológica das reações da
mente de uma criança em formação. Posteriormente, Mark Lewis, já adulto, com
uma câmera na mão e uma obsessão na cabeça, segue seu comportamento compulsivo
de registrar a verdadeira emoção humana em filme.
Com um roteiro original, de forte caráter
freudiano, A Tortura do Medo discute
o tema do voyeurismo, que expressa subliminarmente uma carga de perversão.
Tímido e recluso, Mark Lewis é frio em suas interações sociais. Manifesta-se
apenas pelo olhar da câmera, a cujas imagens captadas atribui significados
distorcidos, desconectados da realidade.
No “grand finale” finalmente o cineasta frustrado
consegue finalizar sua grande obra documental, uma espécie de acerto de contas
definitivo com a figura do pai repressor. Uma libertação registrada em película.
Constantemente tenso e mórbido, o filme de Michael
Powell trabalha no registro psicológico de uma mente pervertida. A obsessão do
protagonista em registrar a “verdadeira” emoção humana, analogamente pode ser
entendida, com todas as ressalvas, ao ato de fazer cinema. Neste sentido, A Tortura do Medo é também um filme de e
sobre o cinema, a exemplo de Blow Up,
de Michelangelo Antonioni; Oito e Meio,
de Federico Fellini; O Desprezo, de
Jean-Luc Godard; Um Tiro na Noite, de
Brian de Palma e Janela Indiscreta,
de Alfred Hitchcock.
Uma aproximação entre Michael Powell e Alfred
Hitchcock se dá também pela presença da atriz Anna Massey, que 12 anos depois
atuaria na última obra-prima do mestre do suspense, Frenesi, com o qual, aliás, A
Tortura do Medo compartilha algumas semelhanças de estilo narrativo.
(Texto originalmente
publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em outubro de 2016)
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