quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

“O Destino de uma Nação”: V de Vitória


1940. A Segunda Guerra mundial se alastra pela Europa. O poder de Hitler invade e rende grandes nações. O próximo alvo da conquista nazista é o Reino Unido. A iminência de uma invasão força a troca de primeiro ministro na Inglaterra. A nação inglesa necessita de um político de pulso forte para conduzir os destinos da nação naquele momento de crise extrema. A escolha recai em Winston Churchill (Gary Oldman), que assume o posto de primeiro ministro com uma difícil missão: resistir aos avanços das tropas alemãs. Este é contexto histórico de O Destino de uma Nação (Darkest hour), dirigido por Joe Wright, um drama que retrata um dos episódios mais extraordinários da biografia de Winston Churchill, responsável por transformá-lo em mito.

Na primeira e assombrosa aparição de Winston Churchill em cena, tão admirados ficamos que somos tentados a ficar procurando traços da fisionomia real de Gary Oldman. Mas seu rosto está fantasticamente diluído e mimetizado na face enrugada do primeiro ministro inglês, graças a um soberbo trabalho de maquiagem. Passado o impacto inicial, resta apenas o deleite para um desempenho magistral.


Já dizia o mestre John Ford: Quando a lenda é mais interessante que a realidade, imprima-se a lenda”. Churchill, fazendo uso de sua notória sabedoria de raposa velha da política, utilizou ardilosamente deste princípio. Ao sustentar seus discursos ufanistas com uma versão fantasiosa sobre a realidade dos fatos (a Inglaterra na verdade estava prestes a cair diante do avanço das forças nazistas), o político criou uma narrativa idealizada, visando arrebatar o orgulho patriótico da população do Reino Unido. Manipulou corações e mentes por meio da palavra e aglutinou as forças do parlamento, da família real, da elite e do homem simples das classes proletárias.

Por narrar parcialmente o mesmo episódio – a retirada heroica das tropas inglesas sitiadas pelo exército alemão numa praia francesa - O Destino de uma Nação seria uma espécie de Lado B de Dunkirk, o drama de guerra dirigido por Christopher Nolan. O filme de Joe Wright fica restrito ao relato dos bastidores da desesperada operação de resgate utilizando barcos e navios civis, uma ideia suicida do próprio Churchill que exigiu um penoso processo de convencimento do governo e autoridades navais. Se o filme de Nolan fazia um permanente contraponto entre a grandiosidade épica do evento e pequenas ações de soldados e cidadãos anônimos, O Destino de uma Nação concentra todo seu foco na personalidade imponente de Winston Churchill, um herói inicialmente relutante que não se furta à vaidade de ser reconhecido como gênio estratégico. Nesta abordagem somos apresentados a um homem em conflito, sob o peso de uma nação que clamava por respostas e ações decisivas, ainda que exigissem sacrifícios de muitas vidas.


Com olhos de hoje podemos dizer que Winston Churchill era um personalidade midiática, com total entendimento do poder da comunicação para conquistar multidões. Seria ele um proto-youtuber? O fato é que o primeiro ministro sabia muito bem como utilizar sua imagem poderosa e o permanente otimismo para levantar o moral de um país à beira da rendição, fato este que reconfiguraria totalmente o desfecho da Segunda Guerra. A imagem de um Churchill fazendo o “V” de vitória e seu indefectível charuto nas capas dos jornais britânicos vendeu uma imagem de poder onde na verdade havia medo. Render-se, jamais. Lutar, sempre. Seu discurso motivador inflamou multidões e reverteu o destino tenebroso que assombrava a ilha britânica.

O estilo direção de Joe Wright privilegia mais uma vez a beleza estética dos enquadramentos, os planos-sequência elegantes, uma paleta de cores exuberante e tomadas aéreas de tirar o fôlego, elementos que configuram sua marca registrada em termos técnicos. Some-se a isto uma certa obsessão por máquinas de escrever e o som tão característico das teclas, mais uma vez presente. Como não lembrar da importância cênica da máquina de escrever em Desejo e Reparação, dirigido por ele em 2008.


Winston Churchill, obviamente, não era feito só de virtudes, seria idealismo ingênuo de nossa parte enxergá-lo desta forma. Ele era sim um velho ranzinza, matreiro, no mais das vezes com mais dúvidas do que certezas. Mas, somos obrigados a concordar, era um estadista maiúsculo, de uma grandeza que não se encontra mais. O Destino de uma Nação não é exatamente feliz ao retratar a figura mítica do primeiro ministro. Joe Wright sucumbe ao peso desta figura fundamental da história inglesa, cedendo espaço para uma narrativa que se equilibra entre a adoração do mito e o desnudamento, ainda que tímido, de sua personalidade avassaladora. Talvez Churchill não coubesse mesmo apenas num filme limitado a um episódio único da sua biografia.

Assista o trailer: O Destino de uma Nação

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

“Crimes de Paixão”: fantasias proibidas


Na resta dúvida que os anos 80 foram uma década de exageros e excessos. Tempos de testar os limites da sociedade, da cultura e dos comportamentos. Isto ficou manifestamente expresso em grande parte da produção cinematográfica daquele período, que rompeu barreiras e experimentou um novo tempo, com os erros e acertos de praxe. A liberação sexual e a afirmação do feminino, por exemplo, até então matérias do ativismo político de uma parcela da sociedade progressista (iniciado duas décadas antes), ganhou ares de espetáculo midiático quando foi espertamente apropriada pelos grandes estúdios de Hollywood em produções mais interessadas em explorar os temas pelo viés do sensacionalismo do que por suas questões de fundo.

Um dos exemplares mais notórios desta apropriação temática foi thriller erótico Crimes de Paixão (Crimes of Passion, 1984) dirigido pelo controverso realizador inglês Ken Russell. Diretor conhecido por vários filmes sobre compositores de música erudita, como Tchaikowsky, Mahler e Liszt, e pelo menos um musical de grande sucesso, a ópera-rock Tommy, Russell sempre manifestou especial interesse por temas com potencial para gerar polêmica. E quando o tema em questão não apresentava o potencial necessário para chocar as plateias, ele próprio tratava de elevar o tom da narrativa, com seu estilo barroco, onírico e lisérgico. Isto explica a presença constante de temas explosivos como Sexo e Religião em toda sua obra.


E como não poderia ser diferente, Crimes de Paixão traz também a dobradinha Sexo-Religião como argumentos fortes na narrativa que conta a história de China Blue (Kathleen Turner), uma das mais conhecidas e desejadas prostitutas do submundo de Los Angeles. Com sua peruca platinada ela realiza as mais loucas fantasias de seus clientes no quartinho imundo de um hotel decadente. Outro personagem da história é Bobby Grady (o inexpressivo John Laughlin), pequeno empresário à beira da falência que luta para manter um casamento fracassado. Ele acaba aceitando um trabalho extra a pedido de um grande empresário do ramo de confecções. Sua missão é seguir Joanna Crane, importante estilista da grife, suspeita de passar informações para os concorrentes. O que descobre não tem nada a ver com espionagem industrial: Joanna Crane vive uma vida dupla. À noite ela se transforma em China Blue, a famosa garota de programa que circula pela noite da cidade. Completando o triângulo de protagonistas aparece um reverendo psicopata (em interpretação alucinada de Anthony Perkins, sim, ele mesmo, o Norman Bates) que passa a perseguir China Blue. Entre sermões e shows eróticos, ele assume a missão divina de levar a palavra da Bíblia à China Blue para salvá-la do pecado.


Com os excessos típicos dos anos 80, a música estridente de Rick Wakeman e sua fotografia de cores quentes e muito efeito de luz neon, Crimes de Paixão, em termos estéticos, ficou um tanto defasado com o passar dos anos. Definitivamente o filme não envelheceu bem. Em termos de discussão dos papeis sociais do homem e da mulher e o poder da fantasia na sexualidade, o filme de Ken Russell pouco avança, não oferecendo um posicionamento mais objetivo. Na verdade, sejamos francos, não era exatamente este o objetivo do realizador. O roteiro irregular, cheio de problemas de resolução, frio e pouco envolvente, é dirigido com o habitual cinismo de Russell. O fato é que Crimes de Paixão é melhor nas partes do que no todo.

A vida dupla de personagem de Kathleen Turner, com seus joguinhos simulados e fantasias com seus clientes, na realidade apenas desnuda a frustração de sua existência. No desapego à realidade, a fantasia sempre é uma fuga. Em certo momento Joanna explica as razões que justificam seu comportamento e nos dá a chave para o entendimento da zona livre onde o filme funciona: “Aquele hotel é o lugar mais seguro do mundo. Eu posso fazer, ser e sonhar o que quiser lá, porque não sou eu”.


Se levarmos em conta o perfil transgressor e um tanto maroto de Ken Russell, faz total sentido sua escolha de uma estrela hollywoodiana, no auge à época, para protagonizar o filme. Vinda de dois sucessos como Corpos Ardentes, onde já flertava abertamente com um erotismo mais contundente, e Tudo por Uma Esmeralda, uma comédia de aventuras ao lado de Michael Douglas, nada fazia supor que Kathleen Turner fosse estrelar uma produção tão ousada como Crimes de Paixão. Algo, convenhamos, absolutamente improvável para qualquer uma das estrelas atuais. Não há mais riscos envolvidos, apenas preservação da imagem e planejamento de carreira submetido às regras do bom marketing. Kathleen Turner ousou e mergulhou fundo. Sem entrarmos no mérito específico do seu desempenho (elogiável, aliás), apenas esta decisão, por si só, já seria louvável. Curiosamente criou-se, na mente do espectador, um efeito de paralelismo que confronta a ficção da vida dupla de Joanna Crane / China Blue e a vida real de Kathleen Turner, como se ela nos revelasse, num efeito de voyeurismo explícito, seu “lado B” como atriz.

Por fim, uma cereja no bolo. O desfecho do thriller faz uma ostensiva referência ao clássico Psicose de Alfred Hitchcock. Pensando bem, com Anthony Perkins no elenco, a “homenagem” era uma tentação impossível de ser recusada.

Assista o trailer: Crimes de Paixão

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

“A Baía dos Anjos”: vidas em jogo


A sabedoria de um conhecido provérbio decreta que quem é “feliz no jogo” necessariamente será “infeliz no amor”. E vice-versa. Ou seja, não podemos possuir todos nossos sonhos. Algo se perde pelo caminho. O destino, portanto, pode estar sendo decidido sobre o veludo verde de uma mesa de carteado, ou no giro de uma roleta. Ou não. A sorte está lançada.

Estas questões estão no centro da narrativa de A Baía dos Anjos (La Baie des Anges) dirigido pelo francês Jacques Demy em 1962. O universo dos cassinos e seus obstinados frequentadores faz pano de fundo para a história de duas almas desgarradas de seus vínculos familiares que encontram na adrenalina das apostas uma razão para viver. Até que o amor entra no jogo das emoções e as apostas ficam mais arriscadas. Ou quebram a banca, ou quebram o coração.

Jean (Claude Mann), funcionário de banco entediado com a rotina do trabalho, tem uma vida solitária e aborrecida com o pai, com quem tem uma relação conflitada. Por sugestão de um colega de trabalho, apostador costumaz, Jean é induzido a entrar no mundo dos jogos em busca de um pouco de emoção e dinheiro fácil. No cassino ele conhece Jackie (Jeanne Moreau), uma parisiense de meia idade que abandonou marido e filhos para se aventurar no vício das roletas em Nice, vizinha de Cannes, na Riviera francesa. Sem planos definidos para o futuro, os dois encontram interesses comuns e mergulham de cabeça na orgia do perde e ganha dos jogos, arriscando tudo como se não houvesse amanhã. Aos poucos, no entanto, cresce uma paixão que vai além das mesas dos jogos.


Filmes sobre o vício dos jogos costumam contar histórias de excessos, limites, riscos e superação. Mostram personagens em situações limite, beirando a autodestruição, cuja jornada de aprendizado acaba por representar um renascimento. Uma vida nova concebida a partir de uma expiação ética e/ou moral. O filme de Jacques Demy segue por esta trilha, introduzindo porém outro elemento catalisador com poder de transformação: a paixão amorosa.

O personagem Jean é um homem frágil, em busca de sentido para a vida. Um homem em reconstrução. Simbólica para esta compreensão é sua imagem refletida em uma série de espelhos, no corredor de entrada do cassino. Imagem de uma personalidade fragmentada aspirando sua integralidade.

Por sua vez, a personagem Jackie exala autoconfiança e controle. Ao menos na superfície de sua personalidade. Um sentido de autodefesa reprime a verdadeira Jackie, uma mulher em crise que rompe laços familiares em nome de uma libertação ilusória. Jackie é tão ou mais frágil que Jean, na medida em que não reconhece suas contradições. Esteticamente esta bipolaridade fica expressa no figurino da personagem, que alterna as cores branco (anjo?) e preto, conforme os estados da alma da personagem.


Filme de forte teor existencialista, seguindo uma certa tendência do cinema francês, A Baía dos Anjos apresenta personagens que parecem dialogar mais com seu próprio interior do que com os interlocutores. Falam e verbalizam mais para si do que para o outro. Isto inevitavelmente se reflete nas interações frias entre os personagens, ainda que imersas no fogo das paixões. As relações amorosas do casal são marcadas por uma quase total ausência de sentimentalismo, mas sempre elegantes. Um encontro desesperado de dependentes, quase uma fuga de vidas frustradas. Jackie carrega a culpa do abandono do marido e filhos, e Jean é assombrado pelo fantasma do pai repressor. O que falta em fogo e paixão no romance dos dois, sobra em reflexão e análise.

O final conciliador de A Baía dos Anjos revela o desconforto de Jacques Demy em abandonar seus personagens à própria sorte. A vida é um jogo. Às vezes perdemos. Às vezes ganhamos. Se na vida real não temos controle do destino, na vida da ficção podemos idealizar e conciliar nossos sonhos. E a roda da fortuna volta a girar, até a próxima aposta.


Ainda que o início da carreira de Jacques Demy tenha ocorrido no período de surgimento da Nouvelle Vague, o fato é que o cineasta passou relativamente ao largo do movimento. Cineasta de perfil mais acadêmico, Demy não tinha especial interesse em romper com a chamada narrativa clássica. Sua filmografia revela um realizador mais afeito a contar histórias com personagens interessantes do que contestar o status quo de um cinema tradicional.

La La Land, o neon-musical de Damien Chazelle, que vem encantando multidões, buscou um pouco de inspiração num dos maiores sucessos da carreira de Jacques Demy, quem diria. Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, o musical Os Guarda-Chuvas de Amor, com Catherine Deneuve, lançado em 1964, revolucionou o gênero tipicamente hollywoodiano. Nada mal para um cineasta clássico como Jacques Demy.

Assista o trailer: A Baía dos Anjos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

“Assassinato no Expresso do Oriente”: suspeitos a bordo


“Quem matou?”. A pergunta clássica da literatura policial está de volta aos cinemas com a refilmagem de uma das mais conhecidas histórias de crime e mistério de Agatha Christie. O livro “Assassinato no Expresso do Oriente” ganhou uma primeira versão cinematográfica em 1974, com direção de Sidney Lumet (Um Dia de Cão). Quarenta e três anos depois a história volta às telas com uma nova adaptação, desta vez sob o comando de Kenneth Branagh, que também atua interpretando o investigador belga (não francês!) Hercule Poirot, a mais célebre criação da escritora de livros policiais mais lida em todo o mundo.

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express) se passa nos anos 30, época de ouro do famoso serviço de trem de longa distância que ligava Istambul à Paris, unindo o Oriente ao Ocidente com viagens cheias de glamour e luxo. Numa destas viagens, que reunia passageiros da elite e da aristocracia auropeia, ocorre um assassinato na cabine de um dos vagões. Entre os passageiros está o famoso detetive Hercule Poirot que precisa utilizar todas suas habilidades dedutivas para desvendar o crime antes que o trem chegue a seu destino. Um elenco de estrelas de primeira grandeza está entre os suspeitos: Penélope Cruz, Willem Dafoe, Judi Dench, Daisy Ridley e Michelle Pfeiffer.


A antiga versão da história, aquela de Sidney Lumet, era um produto típico de seu tempo, que revisto hoje mostra que não resistiu bem ao teste do tempo. Recheada de grandes estrelas e por demais acadêmica, a produção é uma peça de museu da velha Hollywood, aposentada nos anos 70. Portanto, a nova versão chega com o compromisso de atualizar a abordagem e renovar o interesse na obra da “rainha do crime”. Um dos pontos críticos, fundamental para o êxito da empreitada, é a figura do investigador Hercule Poirot, encarnado com equilíbrio, charme e elegância pelo próprio Branagh que compõe uma interpretação bastante peculiar, completamente distinta do Poirot cômico e afetado de Albert Finney (em 1974), e também do Poirot bufão histriônico de Peter Ustinov, outro notório intérprete do investigador.

O enredo de Assassinato no Expresso do Oriente é um dos mais clássicos exemplos subgênero do “locked room”, que narram mistérios do “quarto fechado”, quando o crime ocorre em um espaço isolado e a suspeita da autoria recai sobre todos os presentes no local. O diretor Kenneth Branagh explora com habilidade a geometria espacial do trem, alternando a sensação de confinamento dos exíguos espaços e compartimentos dos vagões de passageiros com algumas poucas cenas externas na paisagem gelada da montanha coberta de neve. Neste aspecto duas sequências de destacam. A primeira delas é o longo travelling que acompanha toda a extensão do trem num belo e elegante plano-sequência que apresenta várias das personagens, perfeitamente integradas à ação narrativa que se desenrola no primeiro plano. Outro exercício de estilo de Branagh é a sequência de apresentação do cenário do crime, quando a câmera se posiciona no alto, acima do teto da cabine da vítima, exibindo a ação como se estivéssemos testemunhando a movimentação de ratinhos de laboratório percorrendo os meandros do espaço. Cineastas como Martin Scorsese (Taxi Driver), Steven Spielberg (Minority Report) e Brian De Palma (Olhos de Serpente) também já utilizaram este enquadramento de grande efeito cênico.


Egresso do meio teatral, o background artístico de Kenneth Branagh se mostra presente na sua direção de atores e na mise-en-scène de Assassinato no Expresso do Oriente, particularmente na sequência final, quando a autoria do assassinato é revelada. Montada como uma pequena peça teatral, a sequência é caracterizada pela rigidez das marcações – típicas dos palcos – onde se sobressai a essência da interpretação dos atores/atrizes, cada um deles com seu momento de brilhatura pessoal, com destaque absoluto para Michelle Pfeiffer, cada vez melhor na retomada da sua carreira cinematográfica. Na sequência somos inclusive brindados como uma representação simbólica da célebre imagem da Santa Ceia, quando todos ficam sentados à mesa, atentos às sábias palavras de Poirot que traz a verdade à luz.

Sabemos todos dos riscos envolvidos nos remakes. As comparações com as produções originais são inevitáveis, e de modo geral o histórico tem provado que os insucessos são maiores que os êxitos. Mas, aqui não é o caso. A nova versão de Assassinato no Expresso do Oriente faz frente e eventualmente se mostra até superior do que a original de 1974. Uma prova de que a produção deu certo é a dica que é dada num pequeno diálogo no final do filme, quando a presença de Hercule Poirot, “o melhor investigador do mundo”, é solicitada para solucionar um novo caso, desta vez no Egito. Seria uma sugestão que poderemos ter em breve uma nova versão para Morte Sobre o Nilo, produção dirigida por John Guillermin (King Kong) em 1978? As pistas foram dadas e não é preciso ser nenhum gênio investigativo para deduzir que Kenneth Branagh está construindo uma franquia para si próprio.


Jorge Ghiorzi

terça-feira, 21 de novembro de 2017

“Boneco de Neve”: o assassino que veio do frio


A crescente qualidade, criatividade e diversidade da produção de livros policiais vindos da Escandinávia (Suécia, Noruega, Finlândia e Dinamarca) revelou uma nova geração de escritores de suspense e crime que está dominando este que é um dos gêneros mais populares da literatura. Na última década os livros policiais escritos em países de língua inglesa (fundadores do gênero, diga-se) estão ganhando a forte concorrência de escritores escandinavos que estão conquistando a atenção dos leitores em todo o mundo. Ou seja, deixou de ser um fenômeno localizado. O reinado absoluto de nomes consagrados e seminais das histórias de mistério como Agatha Christie e Arthur Conan Doyle hoje sofre a ameaça de autores de sucesso como Stieg Larsson (da Trilogia Millenium), Henning Mankell (criador do inspetor Kurt Wallander), Lars Kepler (pseudônimo do casal de escritores Alexander Ahndoril e Alexandra Coelho Ahndoril), Arnaldur Indridason (“O Silêncio do Túmulo”) e Anne Holt (“1222”).

O caminho natural e inevitável dos grandes best sellers é o cinema. A estrela da vez é o escritor norueguês Jo Nesbo, criador do detetive Harry Hole que já protagonizou dez livros e chega agora às telas com uma grande produção internacional. Baseado no sétimo livro da série, Boneco de Neve (The Snowman), dirigido pelo sueco Tomas Alfredson (de Deixa Ela Entrar e O Espião Que Sabia Demais) apresenta o repertório que é marca registrada das histórias policiais quem vem da Escandinávia: paisagens geladas, personagens sombrios, crimes violentos e muito sangue sobre a neve.


Durante a primeira nevasca do inverno norueguês uma mulher, casada e mãe, desaparece sem explicação. A única pista identificada é um boneco de neve construído em frente à sua casa. O investigador policial Harry Hole (Michael Fassbender) entra no caso e, com a ajuda da também investigadora Katrine Bratt (Rebecca Ferguson, de Missão Impossível – Nação Secreta), descobre que o desaparecimento tem ligações com um antigo caso de assassinato e pode indicar uma nova série de crimes de um serial killer.

Ambientes desolados, gelados, descoloridos costumam abrigar pessoas frias, distantes, à beira da depressão. Parte clichê, parte realidade, o fato é que ambientes extremos interferem de fato na personalidade dos seus habitantes, que em muitos casos recorrem à bebida para suportar a realidade depressiva. Histórias policiais sombrias como Boneco de Neve refletem com clareza este contexto. O protagonista Harry Hole é o protótipo do policial sem muitas perspectivas, de baixa estima, separado da família e amigo íntimo do álcool que aquece o corpo e anestesia a mente. O caso do assassino do boneco de neve traz um pouco de vida e ânimo à vida do policial, interpretado por um correto e contido Michael Fassbender.


A direção elegante de Tomas Alfredson conduz a história com algum interesse até a metade do filme. Daí pra frente as coisas deixam de ter sentido e a narrativa perde o rumo e põe tudo a perder num thriller que prometia melhores resultados. A sensação mais evidente é que Boneco de Neve, o filme, não deu conta da complexidade da trama que o livro apresenta. Respostas, razões e motivações. Isto é tudo que se deseja de uma boa história policial. Mas o filme de Alfredson ficou devendo, e o resultado é decepcionante. As explicações para o crime, bem como a resolução do mistério, são confusas e estão longe de ser impactantes – como faziam supor – e tudo acaba num clímax que deixa por demais a desejar. Isto sem falar em personagens que parecem ter uma forte razão para sua inclusão na trama, mas, no entanto, somem sem dizer a que vieram. O personagem de J.K. Simmons, um poderoso empresário, é um exemplo deste desperdício de talento.

Consta que o realizador andou reclamando que não conseguiu filmar todas as cenas do roteiro. Isto, de fato, fica bem evidente quando se constata que algumas cenas presentes no trailer não estão incluídas na edição final do filme. Parece que nem a habilidade da montadora Thelma Schoonmaker (habitual colaboradora de Martin Scorsese, que assina como um dos produtores executivos) conseguiu resolver os problemas do roteiro, ou do material disponível, vai saber.

Assista o trailer: Boneco de Neve

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

“Os Assassinos”: o passado condena


“Tudo o que você precisa para fazer um filme é uma arma e uma garota”, já dizia Jean-Luc Godard. Esta definição síntese contém os elementos chaves que fizeram o sucesso de uma série de filmes que, conscientemente ou não, levaram este conceito ao pé da letra. Uma arma em cena significa conflito, disputa, ação. Uma mulher simboliza desejo, paixão, sacrifício. Este tipo de pensamento misógino marcou a fase de ouro do chamado “cinema noir”, que exibia na prática a receita formulada posteriormente por Godard nos anos 60. Mais do que um gênero em si, o Noir era um estado de espírito do cinema. Um modo de ser e ver o mundo, caracterizado pela dubiedade, dissimulação, caráter discutível e ética flexível.

Cronologicamente produzido de forma mais regular na metade do século XX (anos 40 e 50), o filme Noir, de fato, sempre existiu, não se limitando, portanto, a um período específico. Regularmente, até hoje, o cinema nos oferece obras que carregam fortemente o espírito estético e moral daqueles filmes. Drive (2011), de Nicolas Winding Refn, é um exemplo bem recente. Um mais antigo a ser citado é Os Assassinos (The Killers), realizado por Donald (Don) Siegel em 1964. Inspirado em um pequeno conto de Ernest Hemingway, esta produção é o que se poderia chamar de “noir de raiz”, que substitui a magia do preto e branco pelas cores vibrantes do Technicolor.


Em síntese o conto de Hemingway conta a história de um homem, envolvido num assalto, que sabe que vai ser morto por assassinos de aluguel, mas não tenta fugir. Nesta adaptação para o cinema, que é uma refilmagem (em 1946 Robert Siodmark dirigiu uma primeira versão), o diretor Don Siegel optou, acertadamente, em contar a história do ponto de vista dos assassinos. Esta opção narrativa necessariamente desloca a ação e acrescenta elementos de mistério e suspense, na medida em que os matadores (e nós também) não sabem as razões do crime e não entendem a resignação passiva da vítima. A descoberta da verdadeira história por trás de um crime comum passa a ser uma obsessão dos assassinos, que vislumbram a possibilidade de ficar com o dinheiro do assalto.


Tudo começa quando a dupla de matadores de aluguel, interpretados por Lee Marvin e Clu Gulager (ambos excelentes em seus papéis), invade uma escola para cegos com o objetivo de executar um professor (John Cassavetes). Cumprem a missão com facilidade, pois o alvo não esboça qualquer intenção de escapar. Isto intriga os matadores que decidem investigar a fundo a história, que envolve um passado secreto do executado e seu algoz, o contratante dos assassinos (Ronald Reagan, sim, o futuro presidente dos EUA). Esta busca pelo passado mostra uma série de flashbacks que vão desvendando as razões daquela morte. Personagens e histórias vão surgindo em cena, esclarecendo pequenas partes de um intrincado quebra cabeças. E, como todo noir que se preze, temos também uma femme fatale, interpretada por uma sedutora Angie Dickinson. Tudo não passava de um assalto a um caminhão de transporte de valores que acabou em traição no grupo. A morte encomendada era portanto apenas um acerto de contas. Mas, nada é tão simples como parece. Há uma complexidade nas relações do trio John Cassavetes - Ronald Reagan - Angie Dickinson, que remete para um desfecho inesperado.


Em Os Assassinos já encontramos traços do estilo de Don Siegel  que seriam uma constante nos filmes que dirigiu ao longo dos anos (Meu Nome é Coogan; Os Abutres também tem Fome; O Estranho que Nós Amamos; Perseguidor Implacável; O Homem que Enganou a Máfia; O Telefone; Alcatraz, Fuga Impossível): economia de planos, precisão do corte, diálogos curtos. Nada em excesso. Tudo funcional e preciso. O pupilo e herdeiro Clint Eastwood, que muito filmou com Siegel, em sua carreira como diretor segue a mesma cartilha do velho mestre, e costuma se dar muito bem.

A dupla de assassinos (Lee Marvin e Clu Gulager), antes e depois do crime, conversam bastante, são irônicos, durões, dizem banalidades, fazem coisas triviais do dia a dia. Enfim, até parecem gente bem bacana. Isso por acaso lembra outra dupla famosa de assassinos? Que tal John Travolta e Samuel L. Jackson em Pulp Fiction? E mais, não seria nenhuma surpresa se a estrutura de flashback / presente do mesmo Pulp Fiction fosse uma inspiração de Quentin Tarantino a partir dos retrocessos e avanços da narrativa de Os Assassinos.

Assista o trailer: Os Assassinos

(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD Magazine em fevereiro de 2017)

Jorge Ghiorzi