Indicada em seis
categorias do Oscar de 1993 – filme, direção, ator, edição, ator coadjuvante e
roteiro original (pelo qual venceu) – Traídos pelo Desejo (The Crying
Game, 1992) foi o filme-sensação daquele ano. Dirigido por Neil Jordan (A Companhia dos Lobos, Entrevista com o Vampiro, Nó na Garganta) a produção inglesa inicialmente
não conquistou grande repercussão ao ser lançada na Grã-Bretanha. A situação
mudou radicalmente quando chegou aos EUA, graças a uma maciça campanha de
marketing que estimulou a curiosidade do público para o “segredo” do filme. Se Traídos pelo Desejo fosse lançado hoje,
25 anos depois, o tal “segredo” não resistiria mais do que poucos segundos após
a primeira aparição da emblemática personagem central.
Em sua época o
filme de Neil Jordan quebrou alguns paradigmas por tratar temas então polêmicos
de forma franca e aberta numa produção mainstream.
Traídos Pelo Desejo se apresenta
inicialmente como uma trama política envolvendo questões separatistas da
Irlanda, a bandeira de luta do IRA, o Exército Republicano Irlandês, grupo
paramilitar que promovia atentados terroristas contra o governo britânico. O
filme inicia justamente com uma destas ações. Um comando armado sequestra um
soldado do exército inglês. O objetivo é trocá-lo por um membro da organização
preso, caso contrário, ele seria executado no prazo de três dias. No cativeiro
o guerrilheiro Fergus (Stephen Rea) é destacado para tomar conta do soldado
sequestrado, Jody (Forrest Whitaker), até o desfecho das negociações. Durante a
convivência forçada os dois acabam se aproximando e desenvolvem uma
cumplicidade, quase uma amizade. Trocam confidências, contam histórias pessoais
e revelam segredos. Uma das revelações de Jody é sua paixão pela namorada, a
cabeleireira Dil (Jaye Davidson). Prestes a ser executado, Jody pede a Fergus
que procure Dil, após sua morte, para lhe dizer o quanto a amava.
No segundo ato de Traídos Pelo Desejo o clima muda
completamente e se transforma em um drama repleto de nuances psicológicas. Movido
pela culpa, Fergus cumpre o último desejo do soldado. Tempos depois se aproxima
de Dil, mas não conta toda a história. E por uma razão bem objetiva: ele também
cai de amores pela cabeleireira. Mas, há um segredo a ser superado (não daremos
spoiler aqui). Um segredo que vai
colocar em xeque seus valores e convicções.
Sabidamente o
contato íntimo e prolongado de um prisioneiro com seu algoz por vezes acaba por
desenvolver uma curiosa relação de temor/dependência, a chamada Síndrome de
Estocolmo, um estado psicológico que provoca sentimentos de amizade, e até
amor, da vítima por seu agressor. A convivência de Fergus com Jody no cativeiro
demonstra sinais desta patologia, que resultam numa espécie de dívida de
consciência do guerrilheiro, abalado pelo trágico destino do refém que tinha a
missão de cuidar e, por fim, executar, ainda que profundamente contrariado com
o ato final que foi obrigado a cumprir. Fergus, na condição de guerrilheiro,
não demonstrava um perfil agressivo que a atividade exigiria. Jody
habilidosamente manipulou a mente de Fergus ao perceber sua verdadeira
natureza. Fergus era o homem errado, na função errada. Em certa medida, o
desaparecimento de Jody representou a libertação de Fergus, rumo à descoberta
de seus verdadeiros sentimentos que são despertados quando conhece a sedutora
Dil.
Nesta trajetória
Fergus refaz um caminho semelhante ao do personagem de James Stewart em Um Corpo Que Cai: apaixona-se pelo
objeto da sua busca. Um desejo que se transforma em obsessão, que se concretiza
apenas quando aceita o objeto da sua paixão e a transforma na mulher
idealizada, subvertendo a realidade dos fatos e da verdadeira natureza de Dil.
Traídos Pelo Desejo (um feliz título
brasileiro) é um dos melhores exemplares do poderoso cinema inglês do início
dos anos 90, que vivia então um momento de muita inspiração. Aquele era um
tempo de produções de alta qualidade e grade visibilidade de uma geração de cineastas
como Mike Leigh, Jim Sheridan, Mike Newell, Nicholas Hytner e Allan Parker, nos
seus últimos momentos de brilho.
A discussão da
verdadeira natureza das pessoas – contra a qual são travadas lutas inglórias –
é a verdadeira essência do filme de Neil Jordan. Esta tese fica explicitamente
caracterizada pela fábula do sapo e do escorpião, que é contada duas vezes
durante o filme, por dois personagens diferentes. A historinha é mais ou menos
assim: um escorpião quer atravessar um rio e pede ajuda para que um sapo o leve
nas costas. Desconfiado o sapo se recusa, dizendo que será ferroado pelo
escorpião durante a travessia. O escorpião diz que isto não vai acontecer. Se
ele ferroar o sapo os dois morrerão afogados. O sapo então concorda em ajudar o
escorpião. No meio da travessia o escorpião dá uma ferroada no sapo, que muito
surpreso pergunta por que ele fez aquilo, afinal, os dois vão morrer agora. E o
escorpião responde: “Eu não pude evitar, é a minha natureza”.
Apesar de ser a
figura de destaque absoluto em Traídos
Pelo Desejo, Jaye Davidson não chegou a desenvolver uma carreira no cinema.
Seu único outro papel de destaque aconteceu dois anos após, na ficção
científica Stargate – A Chave para o
Futuro da Humanidade, dirigida por Roland Emmerich.
(Texto originalmente publicado na coluna “Cinefilia” do DVD
Magazine em outubro de 2017)
Jorge
Ghiorzi