sábado, 24 de maio de 2025

Manas: a irmandade como resistência

 

Longa-metragem de estreia da diretora Marianna Brennand, Manas é um filme que mergulha na complexidade da infância roubada e da resistência feminina em um cenário ao mesmo tempo belo e brutal: a Amazônia brasileira. A narrativa acompanha Marcielle (Jamilli Correa), uma jovem prestes a entrar na adolescência, criada em um ambiente marcado pelo abuso e pela opressão de um pai violento. Seu desejo de escapar desse ciclo de dor a leva a uma jornada de descobertas, onde a solidariedade entre mulheres – sua mãe submissa, uma irmã que fugiu e outras figuras de sua comunidade – se torna sua única âncora de esperança.

Brennand constrói um filme que evita o apelo fácil, optando por uma abordagem mais sugestiva do que explícita. O abuso nunca é mostrado de forma gráfica, mas sua presença é palpável em cada olhar assustado, em cada silêncio tenso, na arquitetura precária da casa sobre palafitas que parece aprisionar suas personagens. A diretora captura a ambiguidade das relações familiares: a mãe que falha em proteger; a irmã mais velha que escapou das amarras de um destino inevitável, e por fim, a própria Marcielle, cuja inocência aos poucos se transforma em uma consciência dolorosa de que a fuga talvez seja sua única salvação.

A performance de Jamilli Correa é o coração do filme. Com uma expressividade rara para sua idade, a atriz transmite a mistura de vulnerabilidade e resiliência de Marcielle, tornando sua jornada profundamente comovente. A câmera a observa de perto, quase como uma cúmplice, reforçando a intimidade da narrativa. A fotografia, por sua vez, contrasta a beleza crua da Amazônia – o rio lamacento, a vegetação densa – com a asfixia do ambiente doméstico, criando uma metáfora visual para a contradição entre liberdade e aprisionamento.

O título Manas (termo coloquial para "irmãs") não é casual. O filme é, acima de tudo, sobre os laços entre mulheres em um mundo dominado por violência masculina / parental. Cada personagem feminina representa uma resposta diferente à opressão: a submissão, a fuga, a rebeldia ou a sororidade discreta. Brennand não oferece respostas fáceis. A mãe, por exemplo, não é vilã nem heroína, mas vítima de um sistema que a esmaga. A força do filme está justamente em sua nuance, evitando maniqueísmos para mostrar como o abuso é perpetuado e, ao mesmo tempo, como pode (e deve) ser desafiado.

Manas é uma estreia promissora para Brennand, confirmando seu talento para retratar dramas sociais com sensibilidade e primoroso senso estético. A escolha de narrar uma história tão dura através dos olhos de uma criança adiciona uma camada de poesia à crueza do tema, enquanto a direção de arte e a fotografia elevam o filme a um patamar quase onírico. Por opção narrativa da realizadora o filme evita um olhar sensacionalista e manipulador. A ausência de confrontos mais diretos ou de um clímax definido pode, à primeira vista, sugerir que o filme recua – mas é justamente aí que reside sua força. Manas é rigoroso em sua narrativa minimalista, apoiada em silêncios que dilaceram e olhares que suplicam. Sua profundidade está justamente em sua capacidade de apresentar os conflitos com uma simplicidade acachapante.

O filme de Marianna Brennand é uma obra importante, especialmente no contexto do cinema brasileiro contemporâneo, que muitas vezes negligencia histórias do interior sob perspectivas femininas. Premiado no Festival de Veneza, Manas chama atenção não só pela qualidade técnica, mas por sua urgência temática. Não é um filme fácil, por doer no fundo da alma, mas é certamente um daqueles que permanecem na memória e na consciência.

Assista ao trailer: Manas


Jorge Ghiorzi

Membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)

Contato: janeladatela@gmail.com  /  jghiorzi@gmail.com

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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Missão: Impossível – O Acerto Final: o fim de uma era?

 

O último capítulo da saga Missão: Impossível é superlativo em suas ambições, não apenas nos riscos físicos e na ação vertiginosa que consolidaram sua marca, mas na ousadia narrativa de fragmentar seu desfecho em duas partes. A confiança absoluta no conceito levou os produtores a uma aposta audaciosa: desdobrar a missão final de Ethan Hunt em dois filmes seriados, estratégia que, em 2023, revelou apenas a primeira metade de um quebra-cabeça repleto de espetáculo. Se Acerto de Contas – Parte 1 apostou em um tom introspectivo, explorando as consequências das escolhas passadas de Hunt, Missão: Impossível - O Acerto Final (Mission: Impossible - The Final Reckoning) redireciona o foco para o espetáculo puro, em detrimento da profundidade. As sequências de ação, meticulosamente coreografadas, reafirmam o compromisso da franquia com o cinema prático, mas a divisão em duas partes levanta uma questão crucial: haveria substância suficiente para justificar a extensão, ou o desfecho sucumbe ao peso de suas próprias expectativas?

O Acerto Final dá continuidade ao cliffhanger explosivo do filme anterior, que deixou Ethan Hunt e a IMF à deriva. Após falharem em interceptar a chave que controla a Entidade (a IA renegada), o mundo mergulha em um caos invisível. Governos não confiam em seus próprios dados, aliados se tornam suspeitos e a ameaça de uma guerra nuclear paira no ar. Gabriel (Esai Morales), operador da IA, surge como um profeta do colapso, enquanto a missão de Hunt se concentra em recuperar o código-fonte capaz de neutralizar a Entidade — escondido em um submarino nuclear russo desaparecido em águas geladas e território disputado.

Se confirmado como o último capítulo, O Acerto Final marca o fim de uma era para uma das franquias de ação mais resilientes — e consistentes — do cinema contemporâneo. A dupla Acerto de Contas (7º filme) e O Acerto Final (8º filme) funciona como um épico de despedida, elevando a escala da série a patamares quase operísticos. A sensação de conclusão é trabalhada com nostalgia deliberada: desde os créditos iniciais, que revisitam cenas icônicas como a invasão ao cofre da CIA em Missão: Impossível (1996) ou a queda livre em Efeito Fallout (2018), até o resgate de personagens-chave como Luther (Ving Rhames) e Benji (Simon Pegg), cuja química com Hunt evoca décadas de parceria. Até Ilsa Faust (Rebecca Ferguson), cujo destino ambíguo no filme anterior gerou polêmica, recebe um arco que encerra não apenas sua história, mas um ciclo de sacrifícios e redenção.

A direção de Christopher McQuarrie reforça esse tom de despedida com sequências que ecoam a mitologia da franquia: o trem em alta velocidade remete ao primeiro filme, enquanto os combates corpo a corpo revisitam a brutalidade de Efeito Fallout. Até o vilão Gabriel, com seu fatalismo filosófico, surge como antítese definitiva de Hunt, encapsulando o conflito entre dever e humanidade que sempre permeou a série. Em um momento especialmente simbólico, a sombra de Jim Phelps (Jon Voight) ressurge — um lembrete de que toda a jornada de Hunt começou com uma traição e talvez termine com uma última escolha entre missão e família.

O Acerto Final transcende o blockbuster convencional. Nas entrelinhas, o filme dispara um alerta sobre os perigos da inteligência artificial descontrolada — tema que ressoa com urgência em nossa era digital. A trama, envolta em conspirações high-tech, reflete as próprias inquietações de Tom Cruise, um crítico ferrenho da desumanização do cinema. Cada cena prática, cada façanha sem dublês, é um manifesto silencioso contra a substituição do real pelo virtual. Enquanto Hunt enfrenta uma IA para salvar o mundo, Cruise trava nos bastidores sua própria batalha pela preservação do cinema como experiência visceral. A franquia mantém sua tradição: sequências de ação espetaculares, com Cruise arriscando-se pessoalmente e um uso comedido de CGI. Em O Acerto Final, a perseguição aérea com aviões bimotores analógicos é um tributo ao cinema de raiz — onde criatividade superava limitações tecnológicas. É um espetáculo que homenageia o passado enquanto desafia os limites do presente.

Missão: Impossível – O Acerto Final é um epílogo digno, ainda que imperfeito. Se por um lado recorre excessivamente a flashbacks e referências nostálgicas, por outro eleva o espetáculo a níveis estratosféricos, equilibrando ação vertiginosa com um olhar melancólico sobre o fim da jornada. O filme encerra com um clima de festa que se despede, mas deixa a porta entreaberta — talvez para novas missões, talvez para um novo capítulo sem Cruise. Seja como for, Ethan Hunt entra para a história como o espião que tornou o impossível uma possibilidade, tanto na tela quanto nos bastidores.

Assista ao trailer: Missão: Impossível – O Acerto Final


Jorge Ghiorzi

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quinta-feira, 24 de abril de 2025

Until Dawn – Noite de Terror: jogo de vida ou morte

 

Um dilema comum enfrentado por adaptações cinematográficas de videogames é como cativar não apenas os fãs do jogo original, mas também o público leigo. Diferentemente das adaptações literárias, filmes baseados em jogos carregam um imaginário visual já consolidado — cenários, personagens e mecânicas de narrativa interativa que definem sua essência. O grande desafio, portanto, é reinventar esse universo sem trair suas raízes. A adaptação Until Dawn – Noite de Terror consegue escapar parcialmente dessa armadilha ao abraçar seu tom autoirônico, optando pela diversão em vez do rigor narrativo. O resultado é um filme que, embora não ofereça algo exatamente original, entrega exatamente o que o gênero promete: um massacre cheio de estilo.

Um ano após o desaparecimento misterioso de sua irmã mais velha, Melanie (Maia Mitchell), a jovem Clover (Ella Rubin) decide reunir seus amigos — o cético Derek (Ji-young Yoo), a impulsiva June (Odessa A’zion) e o inseguro Danny (Anthony Ramos) — para uma viagem até uma hospedagem nas montanhas. O local, cercado por florestas densas e lendas sobre assassinatos não resolvidos, guarda uma pista perturbadora: assinaturas repetidas de Melanie no livro de visitas, todas datadas após seu sumiço. O que começa como uma investigação descontraída logo se transforma em um pesadelo quando o grupo percebe que não está sozinho. Encurralados por forças sobrenaturais e um assassino mascarado, os amigos precisam enfrentar não apenas o perigo iminente, mas também segredos do próprio passado — onde cada decisão errada pode desencadear um destino pior que a morte.

Inspirado no aclamado videogame Until Dawn (2015), o longa-metragem se passa no mesmo ambiente isolado e sombrio do jogo, mas expande a mitologia em torno do chamado "efeito borboleta" — conceito que gira em torno da ideia de que pequenas ações no presente determinam desfechos radicalmente diferentes no futuro. Essa premissa, que no jogo se traduzia em escolhas do jogador, no filme se transforma em uma sequência de reviravoltas calculadas, nem sempre sutis, mas eficazes para manter o espectador envolvido.

Dirigido por David F. Sandberg (conhecido por Shazam!, 2019, e Annabelle 2, 2017), o filme acumula clichês do terror: vilões brutais, personagens descartáveis e uma narrativa que não se afasta muito do arquétipo de "garotas em perigo". Clover, como a típica final girl, carrega o peso emocional da trama, enquanto os coadjuvantes preenchem os estereótipos do gênero — desde o alívio cômico até a vítima sacrificada.

Como uma versão sanguinolenta de Feitiço do Tempo (aquele onde o personagem de Bill Murray fica preso em um eterno recomeço de um dia que se repete sem fim), o roteiro se diverte ao apresentar mortes criativas — e repetitivas — para o elenco. O filme não economiza em carnificina: facadas, explosões e espancamentos se sucedem com um ritmo quase lúdico, como se Sandberg estivesse brincando com os tipos do gênero. A violência excessiva, longe de ser gratuita, torna-se parte do charme, ainda que o humor negro nem sempre atinja o equilíbrio ideal entre horror e comédia.

Until Dawn – Noite de Terror funciona melhor quando joga com o desconhecido. A mitologia, ainda que pouco explorada, serve como pano de fundo para cenas de tensão eficazes — como um close-up em uma fotografia antiga que, aos poucos, revela uma figura onde antes só havia vulto. O filme não precisa de monstros totalmente expostos; basta a promessa de que eles estão lá, esperando. Esta adaptação não é uma obra-prima do terror, mas também não pretende ser. Sua força está justamente em reconhecer suas limitações e apostar no entretenimento puro, sem pretensões profundas. Embora recicle clichês e dependa de uma mitologia já conhecida dos jogadores, o filme compensa com um ritmo ágil e um elenco carismático o suficiente para tornar a jornada divertida. Para fãs do jogo, é uma homenagem digna; para os novatos, um filme slasher competente que sabe brincar com as expectativas. No fim, cumpre seu papel: fazer o público rir, gritar e, quem sabe, conferir o jogo depois.

Assista ao trailer: Until Dawn – Noite de Terror


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 16 de abril de 2025

Pecadores: quando o blues encontra o Inferno

 

Após cinco anos moldando o universo de Pantera Negra - que rendeu duas obras de prestígio do cinema de super-heróis (2018 e 2022) -, Ryan Coogler liberta-se das amarras dos blockbusters para assumir as rédeas de seu projeto mais pessoal e arriscado. Pecadores (Sinners, 2025) rompe com a tradição das adaptações, pois trata-se de uma criação original nascida da mente do diretor, produzida por sua produtora Proximity Media. Neste terreno livre de concessões comerciais, Coogler não apenas desafia gêneros como reafirma sua maturidade artística, trocando os trajes heroicos por uma narrativa visceral que beira o confessional.

No calor opressivo do Sul norte-americano em 1932, os irmãos gêmeos Elijah e Isaiah (dupla interpretação de Michael B. Jordan) travam uma batalha dupla: contra a segregação racial e pela realização do sonho de criar um bar/clube de blues. O que começa como um drama histórico de resistência cultural transforma-se radicalmente quando criaturas noturnas - vampiros que personificam, metaforicamente, a Ku Klux Klan em sua essência mais monstruosa - declaram guerra à comunidade negra. Neste universo, o blues transcende sua função musical sendo ao mesmo tempo maldição e redenção, ponte para o inferno e arma contra seus mensageiros.

Pecadores é um experimento de alquimia onde o diretor funde drama de época, filme de gangsters, horror vampiresco, ação pulsante e musical - uma combinação perigosa que em tese flertaria com a tragédia. Coogler, porém, tece essas influências com a uma precisão de mestre. A longa, sinuosa e espetacular sequência da evolução da música negra (encenada no ambiente do bar) é particularmente deslumbrante: um balé cinematográfico que conecta séculos de história através de movimentos coreografados com intensidade quase religiosa. As referências - desde o blues sobrenatural de Um Drink no Inferno até o horror social dos zumbis de Romero - são assimiladas, não meramente copiadas. Até elementos visuais (postes de energia elétrica que simbolizam cruzes e revoadas de corvos como arautos do destino) servem à narrativa com naturalidade.

A primeira metade do filme constrói meticulosamente seu mundo: um drama sócio-histórico que mescla a crueza dos filmes de gangster com a autenticidade do cinema realista. Na segunda metade, quando ocorre a virada para o sobrenatural - onde os vampiros (todos brancos, todos famintos) iniciam seu cerco - é tão abrupta quanto necessária. Coogler aqui reproduz a essência do blues: a ruptura e a dissonância transformada em arte.

Pecadores poderia ter sido apenas mais um manifesto panfletário. Em vez disso, Coogler opta pela sofisticação. Sua crítica ao racismo estrutural é construída através de imagens e símbolos, nunca através de discursos. Os monstros não são meras metáforas, mas extensões lógicas de um mal histórico que nunca foi embora. A trilha sonora - personagem central da trama - não apenas ambienta, mas comenta a ação, criando camadas de significado que se revelam em cada revisitação.

O que Coogler entrega absolutamente não é uma reinvenção do cinema, mas um exercício muito bem-sucedido em elevar o entretenimento de gênero ao status de arte. Cada elemento - da direção, da fotografia, da trilha, da direção de arte - converge para criar uma experiência única. Pecadores é simultaneamente um soco no estômago e um poema visual, um filme que consegue ser intelectual sem perder seu poder de entreter. O diretor celebra a cultura negra não através da idealização, mas da confrontação honesta com seus fantasmas. A mistura de mitologia afroamericana, religiosidade e folclore resulta em um terror gótico sulista. Um alento criativo em um mar de fórmulas preguiçosas.

A experiência de Pecadores só se completa com a sequência pós-créditos - não um mero extra estilo Marvel, mas um epílogo que ressignifica toda a jornada e permanece na memória como o acorde final de um grande blues.

Assista ao trailer: Pecadores


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 2 de abril de 2025

Presença: espírito voyeur

 

O diretor Steven Soderbergh surgiu no cinema com o explosivo e polêmico (à época) Sexo, Mentiras e Videotape (1989), um marco do cinema independente que lhe rendeu aclamação precoce. Desde então, construiu uma carreira errática, alternando entre projetos autorais e obras de entretenimento — sempre com traços de inteligência acima da média, mas sem consolidar uma assinatura autoral definitiva. Sua marca, se é que existe alguma a ser destacada, é a versatilidade: um cineasta prolífico que transita entre muitos gêneros, do thriller ao drama, do experimental à comédia, da ficção científica ao policial. Em pouco mais de 40 anos de carreira, Soderbergh já dirigiu mais de 50 filmes, dividindo sua produção entre cinema e TV Neste ano de 2025 já estreou no Brasil seu drama de espionagem Código Preto. Agora, poucas semanas depois, Steven Soderbergh, volta aos cinemas com mais um lançamento: o thriller de horror Presença. (Presence, 2024). Nestes dois trabalhos o diretor repete um de seus vícios mais frequentes: o excesso de estilo em detrimento da substância narrativa.

Com roteiro de David Koepp (também autor de Jurassic Park, O Pagamento Final, Missão: Impossível I e O Quarto do Pânico) o filme apresenta o casal Rebekah (Lucy Liu) e Chris (Chris Sullivan) que se muda para uma nova casa com seus dois filhos Chloe (Callina Liang) e Tyler (Eddy Maday). Uma perda chocante no passado afeta Chloe, que juntamente com os demais membros da família busca restabelecer a normalidade. Aos poucos, porém, começa a perceber que naquela casa há uma “presença” invisível que observa todos os movimentos da família. Na sequência, eventos perturbadores assustam e ameaçam todos moradores da casa.


O filme se apoia em uma história em primeira pessoa, onde a câmera assume o papel de um espírito aprisionado em uma casa vazia. A movimentação peculiar do equipamento não é mero exibicionismo técnico, mas um recurso narrativo que busca fluidez e a ilusão de tempo real — artifício para expressar a percepção da verdadeira protagonista (uma entidade sobrenatural). Diferente de filmes que simulam a ausência do invisível, Presença o torna explícito, quase tangível, guiando a ação como um voyeur ativo. O clima remete a Poltergeist, mas com o adendo de oscilar entre o físico e o metafísico, sem, no entanto, mergulhar profundamente em nenhum dos lados. O que resulta em uma tremenda deficiência do filme de Steven Soderbergh.


A trama também esboça uma crítica ao descompasso entre pais e filhos em um mundo hiperdigitalizado, tema relevante, porém tratado de forma superficial. Como em grande parte da filmografia do diretor, há ideias interessantes, mas executadas com frieza emocional. Os planos-sequência — embora eficazes para imersão — tornam-se repetitivos, e a narrativa perde força por conta de uma trama que não consegue sustentar a curiosidade inicial.


Presença é um filme mediano que não oferece uma efetiva experiência significativa, seja como horror ou seja como suspense. A premissa, que empolga nos primeiros momentos, logo se torna redundante, repetitiva e perde seu apelo. Falta consistência na trama e envolvimento emocional para sustentar o interesse. Apesar da técnica precisa e da proposta conceitual válida, a experiência não empolga: falta tensão genuína, desenvolvimento de personagens e um clímax satisfatório. Soderbergh mais uma vez demonstra habilidade como artesão, mas falha em entregar algo além de um exercício estilístico vazio. O espectador fica com a sensação de ter assistido a um experimento formal interessante, porém esquecível.

Assista ao trailer: Presença


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 12 de março de 2025

Better Man – A História de Robbie Williams: o lado B do sucesso

 

Os anos 90 foram marcados pela proliferação das boy bands, fenômeno que conquistou o mundo da música e deixou um legado nostálgico. Algumas dessas bandas alcançaram o topo das paradas musicais e lotaram estádios ao redor do globo, tornando-se ícones de uma geração. Hoje, são lembradas com carinho por fãs que, em muitos casos, já são adultos e até pais de família. Grupos como Backstreet Boys, *NSYNC, New Kids on the Block e One Direction viveram o auge do sucesso, mas também enfrentaram o inevitável declínio que acompanha a fama meteórica.

As meninas também tiveram seu espaço nesse cenário. No Reino Unido, as Spice Girls surgiram como um furacão cultural, redefinindo o conceito de girl power e rivalizando em popularidade com outro fenômeno britânico que conquistou o mundo: o Take That. Foi nesse contexto de ascensão e queda, de glória e desafios, que histórias como a retratada no filme Better Man ganham vida, oferecendo um olhar sobre os bastidores da fama e os sacrifícios que ela exige.

Artista mais destacado do Take That em sua formação original, Robbie Williams ganhou uma projeção que inevitavelmente incomodou a vaidade dos demais participantes do grupo. Então, o inevitável aconteceu: Robbie foi gentilmente convidado a sair. Foi nesse momento que começou a fase de maior sucesso de sua carreira, quando ele se lançou como cantor e compositor solo. Rapidamente, tornou-se o maior astro da música britânica e um dos maiores nomes da cena pop mundial. A cinebiografia Better Man – A História de Robbie Williams (Better Man, 2024) conta essa trajetória de uma maneira que você nunca viu, recriando o artista como um macaco, e não como um ser humano.

À primeira vista, a história de Robbie Williams parece seguir um arquétipo familiar no universo das cinebiografias de superastros da música: a ascensão meteórica, os excessos do estrelato, as batalhas contra os vícios e a busca por redenção. Em outras mãos, essa narrativa poderia resultar em um filme trivial e previsível, mais um retrato convencional de fama e decadência. No entanto, Better Man escapa dessa armadilha ao introduzir uma inovação audaciosa: a substituição do artista de carne e osso por um macaco gerado por CGI. Essa escolha surreal e simbólica não apenas desafia as expectativas do público, mas também liberta a narrativa dos limites convencionais do gênero.

Consta que a ideia de utilizar a figura de um macaco surgiu nos momentos iniciais do projeto, quando o realizador questionou Robbie Williams sobre qual animal melhor o representava ou com qual ele mais se identificava. O resultado dessa pergunta está na tela. O macaco, como uma figura fantástica e quase onírica, permite explorar a psique de Williams de maneira mais livre e metafórica, transformando a cinebiografia em uma experiência visual e emocional que transcende a mera reconstituição de fatos. É como se o filme dissesse que, para entender a complexidade de um ícone pop, é necessário ir além da realidade — adentrar o reino da fantasia, onde os conflitos internos e as verdades mais profundas podem ser revelados de forma mais vívida e impactante.

O conceito que sustenta Better Man é, ao mesmo tempo, inovador, desafiador e disruptivo. Em um gênero frequentemente marcado por narrativas que glorificam o ego e a mitologia pessoal de artistas famosos, este filme opta por um caminho inverso e surpreendente. Em vez de mergulhar na exposição convencional da imagem pública de Williams, o filme suprime a estética e o simbolismo tradicionalmente associados ao artista. A ausência de sua figura reconhecida — seja por meio de imagens de arquivo ou reconstituições — é uma escolha audaciosa que convida o espectador a refletir sobre a persona versus a pessoa, o mito versus a realidade. Essa abordagem não apenas desafia as expectativas do público, mas também expande os limites do que uma cinebiografia costuma ser, priorizando a introspecção e a humanidade em detrimento de uma simples celebração do estrelato.

Os números musicais e a exploração do universo interior de Robbie Williams proporcionam os momentos mais memoráveis e visualmente espetaculares de Better Man. Aqui, o adjetivo "espetacular" se justifica plenamente: trata-se de uma experiência que encanta o olhar, com um sedutor espetáculo de cores, luzes, movimento e encenação. Essas sequências, repletas de energia e inventividade, ecoam as origens britânicas do artista, remetendo em certa medida ao cinema lisérgico e psicodélico do “malucão” conterrâneo Ken Russell, um dos cineastas mais ousados e visionários da Inglaterra. Não é difícil traçar uma conexão entre a estética exuberante de Russell — conhecido por suas narrativas alucinadas e visuais extravagantes em filmes como Tommy e Os Demônios — e a abordagem do diretor australiano Michael Gracey, que parece ter bebido dessa fonte para criar cenas que transcendem a simples biografia e mergulham no universo sensorial e emocional de Williams.

O mergulho de Robbie Williams em sua biografia, apesar de sua condição de produtor executivo e colaborador do roteiro, está longe de ser um mero exercício de ego trip ou uma celebração autocomplacente de sua carreira. Seu propósito transcende a simples glorificação pessoal, revelando-se mais profundo e introspectivo. Williams parece genuinamente disposto a se expor diante das câmeras com uma honestidade rara, na plenitude de sua humanidade e vulnerabilidade. Ele não hesita em revelar suas falhas de caráter, suas fraquezas e os momentos de derrocada causados pelos vícios que quase destruíram sua vida e carreira. Better Man funciona, assim, como uma espécie de sessão de terapia coletiva, na qual o artista se submete a uma autoanálise pública, sem censura ou medo de julgamentos. Essa abordagem corajosa não apenas humaniza Williams, mas também convida o público a refletir sobre suas próprias lutas e imperfeições, transformando o filme em um espelho tanto para o artista quanto para quem o assiste.

Apesar de Better Man ser uma cinebiografia não convencional, estrelada por um personagem ‘macaco’, esse fato não exige demasiada suspensão de descrença por parte da plateia. Tudo flui com naturalidade e incrível verossimilhança. Não há estranhamento, e o conceito é rapidamente aceito, integrando-se naturalmente à narrativa. A essência do filme está em outro local: na análise fria e humana dos desafios que uma vida de fama e sucesso exigem de um artista. Original e ousado, Better Man é um espetáculo. E isso é tudo que poderíamos querer.

Assista ao trailer: Better Man – A História de Robbie Williams


Jorge Ghiorzi

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quarta-feira, 5 de março de 2025

O Macaco: brinquedo assassino

 

Adaptado de um conto de Stephen King, O Macaco (The Monkey), com direção de Osgood Perkins (do recente Longlegs), é uma experiência cinematográfica que mergulha o espectador em uma narrativa que oscila entre o horror visceral, o humor negro e uma reflexão sobre a morte e o trauma herdado. Perkins constrói uma montanha-russa emocional, capaz de provocar risos, choques e sim, uma diversão insana.

A cena de abertura já é um exemplo da forma como o filme pretende estabelecer sua atmosfera. Um piloto de avião sério e confiável, introduz a ameaça do macaco com uma tensão genuína. A sequência é eletrizante: alguém é morto e o piloto se envolve em uma batalha feroz com o brinquedo amaldiçoado, gritando na noite enquanto o macaco revela sua natureza maligna. Essa introdução, repleta de energia bizarra, prepara o terreno para o que está por vir, deixando o espectador com o queixo no chão antes mesmo do título aparecer na tela.

Quando a história avança para a Nova Inglaterra dos anos 1990, o macaco ressurge, desta vez para assombrar os filhos gêmeos do piloto, Hal e Bill Shelburn, interpretados por Theo James em um duplo papel. Aqui, o filme explora o fino véu entre a vida e a morte, usando o brinquedo como uma metáfora para o trauma familiar. Hal e Bill representam duas formas distintas de lidar com a perda e o medo: Hal, mais introspectivo e fechado, luta para se conectar com seu filho Petey (Colin O'Brien), enquanto Bill é o irmão mais extravagante e caótico, cuja paranoia e desenvolvimento interrompido são retratados com uma dose de humor negro. A escolha de figurino de Bill, inspirada no Superman, é um toque genial que adiciona camadas ao personagem, ao mesmo tempo que provoca risos e reforça a fragilidade humana diante da morte.

No entanto, o filme não é imune a tropeços. A transição para o foco nos irmãos Shelburn é um pouco abrupta, e nenhum dos dois personagens é apropriadamente desenvolvido. Eles funcionam mais como arquétipos — Hal como a representação da luta interna e Bill como o caos externo —, o que pode deixar o espectador desejando uma exploração mais rica de suas motivações. Ainda assim, Theo James entrega performances sólidas, trazendo vulnerabilidade e charme aos papéis, o que mantém o público investido na jornada dos irmãos para deter o macaco.

Um dos aspectos mais interessantes de O Macaco é sua abordagem ao tema do trauma herdado. O filme vai além das cicatrizes emocionais, transformando o trauma em uma força sobrenatural tangível, personificada pelo macaco. O brinquedo não é apenas um objeto amaldiçoado, mas um símbolo do legado sombrio deixado pelo pai de Hal e Bill, que abandonou a família e, de certa forma, passou adiante o fardo do medo e da morte. Essa conexão entre gerações é reforçada pela relação de Hal com seu filho Petey, criando uma cadeia traumática de custódia que questiona como o mal se perpetua através das famílias.

O diretor Osgood Perkins demonstra habilidade ao equilibrar os elementos de terror com uma narrativa emocionalmente carregada. Ele entende as necessidades centrais da história e extrai seus temas de maneira eficaz, sem perder de vista o entretenimento. O macaco, como antagonista, é ao mesmo tempo assustador e fascinante, um instrumento de destruição que desafia os personagens a confrontarem seus medos mais profundos. A trilha sonora e a fotografia sombria complementam a atmosfera opressiva, enquanto as cenas de violência são coreografadas com um impacto visceral que não deixa espaço para indiferença.

O Macaco pode ser considerada uma boa adaptação do conto de Stephen King, que não costuma ser muito feliz nas adaptações de suas obras. O filme se destaca pela atmosfera claustrofóbica e sombria, que amplificam a tensão. A direção consegue criar cenas perturbadoras, embora se renda a algumas convenções e clichês do gênero. O elenco entrega performances sólidas, mas o roteiro peca por desenvolvimentos previsíveis e explicações excessivas, que diminuem o impacto do mistério, problemas que Osgood Perkins já havia apresentado no seu filme anterior, o já citado Longlegs. A trilha sonora, no entanto, é um ponto alto, elevando os momentos de suspense. No geral, O Macaco é uma experiência prazerosa para os fãs de terror, mas que poderia ter encontrado maior relevância caso houvesse explorado com mais profundidade sua premissa original.

Assista ao trailer: O Macaco


Jorge Ghiorzi

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