segunda-feira, 13 de março de 2017

Bruce Lee: o mito do dragão vive


No próximo dia 20 de julho se completam 44 anos da morte de Bruce Lee. Maior ícone global dos filmes de artes marciais, reverenciado igualmente no Ocidente e Oriente, o astro sino-americano (ele possui dupla nacionalidade, americana e chinesa) foi o grande responsável pela mudança de status da imensa produção de filmes de ação produzidos em Hong Kong na virada dos anos 60 para os 70, genericamente chamados à época no Brasil como “filmes de kung fu”. Figura de grande apelo popular, à Bruce Lee também pode ser atribuído o crédito de ter contribuído para mudar os clichês da representação dos asiáticos em geral no cinema, particularmente em Hollywood. Havia enfim surgido um protagonista capaz de atrair a atenção das plateias além-fronteiras da China / Hong Kong, com imenso potencial nas bilheterias.

A carreira de Bruce Lee foi curta. Foram apenas quatro longas-metragens e um quinto filme incompleto, posteriormente finalizado com sequências pré-filmadas e a inclusão de um ator substituto, levemente semelhante ao astro. Bruce Lee teve pouco tempo para saborear as glórias do estrelato. Seus primeiros três filmes foram realmente sucessos mundiais somente após sua morte em 1973.


Mas Lee não fez apenas cinema. Começou, na verdade, com pequenas participações na TV americana. Sim, é fato que apareceu antes em pequenas produções chinesas, ainda muito jovem, inclusive quando ainda era bebê. Seus pais, ligados ao teatro operístico cantonês, foram seu primeiro contato com o mundo das artes. Nascido em São Francisco (EUA), ainda criança voltou com a família para Hong Kong. Na adolescência retornou aos EUA para estudar e buscar uma chance com ator. Já praticante de kung fu, foi “descoberto” numa apresentação de artes marciais pelo produtor William Dozier (da série de TV Batman), que o contratou para o papel de Kato no seriado Besouro Verde, que durou apenas uma temporada (1966). Após outras pequenas aparições em diversas séries de TV da época, Bruce Lee desenvolveu o conceito de um novo seriado, apresentou o projeto, mas a ideia não foi adiante. Desiludido e insatisfeito com sua trajetória como ator nos EUA, Bruce Lee retorna para Hong Kong.

“Tranquilo e infalível como Bruce Lee”
Caetano Veloso (canção “Um Índio”)

Pouco tempo depois, a Warner Bros. lançaria o seriado Kung Fu, estrelado por David Carradine. Consta que este projeto foi uma adaptação, não creditada, da ideia anteriormente apresentada por Bruce Lee. Mas, nem tudo estava perdido. Em seu novo período em Hong Kong acabou descobrindo que o seriado Besouro Verde era um imenso sucesso nos Estados Unidos, onde seu nome ganhou destaque.


Este foi o momento de virada na carreira de Bruce Lee. Assinou contrato com o produtor Raymond Chow para estrelar dois longas-metragens em Hong Kong, produzidos pela Golden Harvest. Os filmes quebraram todos os recordes de bilheteria no mercado chinês. De olho na mina de ouro que surgia, a Golden Harvest propõe a produção de mais outros dois filmes, desta vez com Bruce Lee atuando no controle criativo das produções, incluindo a direção.

Em 1972, quando estava em plena filmagem de Jogo da Morte, a produção foi interrompida para que Bruce Lee pudesse atender uma oferta irresistível da Warner para estrelar um filme nos Estados Unidos, o famoso Operação Dragão. Esta foi a produção que cristalizou a imagem de Bruce Lee no imaginário coletivo, transformando-o em astro incontestável. O filme foi um marco e virou febre mundial.

Com a morte do astro no ano seguinte, as filmagens de Jogo da Morte ficaram incompletas. Então, entra em cena a primeira das inúmeras picaretagens que marcaram o legado de Bruce Lee. O diretor Robert Clouse e o produtor Raymond Chow decidem completar o projeto utilizando um ator para substituir o astro no restante das filmagens. Foram inclusive utilizadas cenas reais do funeral de Bruce Lee, inseridas marotamente no roteiro que foi reescrito para se ajustar às novas condições. O filme acabou virando uma farsa constrangedora. Porém, o nome de Bruce Lee era tão forte que o filme ainda assim acabou sendo sucesso. Sem dúvida por um misto de curiosidade mórbida e uma maciça campanha de marketing que certamente ludibriou alguns desatentos. O maior mérito da produção foi eternizar o icônico macacão amarelo utilizado por Bruce Lee, que depois seria homenageado por Quentin Tarantino em Kill Bill – Volume 1, que mostra Uma Thurmann trajando o célebre figurino.



“O Dragão Chinês” (The Big Boss, 1971) – Direção: Lo Wei
Primeiro papel de destaque de Bruce Lee no cinema. Ele interpreta um jovem que passa a morar com os primos e trabalha em uma fábrica de gelo. A fábrica é uma empresa de fachada, cuja verdadeira atuação é o tráfico de drogas. Com o sumiço de alguns familiares, o personagem de Bruce Lee confronta o poderoso chefão da máfia local.

Produção modesta, beirando o amadorismo, ganha destaque pelas eficientes sequências de lutas dirigidas com o habitual talento pelo especialista Lo Wei. Bruce Lee, ainda que seu personagem seja frágil e vacilante em grande parte da história, já revela a empatia que despertaria plenamente em trabalhos futuros.



“A Fúria do Dragão” (Fist of Fury, 1972) – Direção: Lo Wei
Filme de época, baseado em fatos reais, que reconstitui livremente os fatos da morte de um mestre de famosa escola chinesa de artes marciais. Bruce Lee faz o papel de um antigo aluno da escola que retorna para os funerais de seu professor. Logo surgem suspeitas de que ele foi assassinado pelos rivais da escola concorrente (de tradição japonesa). No roteiro há claramente um subtexto que discute a relação belicosa entre chineses e os invasores japoneses que submeteram a China aos seus domínios territoriais.

Aqui Bruce Lee já apresenta pleno domínio da arte cinematográfica. Coreografias elaboradas e sequências memoráveis fazem deste filme a primeira produção a revelar a ascensão irresistível do futuro astro.



“O Voo do Dragão” (The Way of the Dragon, 1972) – Direção: Bruce Lee
Primeiro filme dirigido e estrelado por Bruce Lee. Fortemente influenciado pelo cinema de gênero de Hollywood, o ator/diretor resolveu imprimir um tom de comédia. Não foi totalmente feliz. Jackie Chan faria bem melhor anos depois.

A história se passa em Roma, para onde o personagem de Bruce Lee viaja para ajudar o tio e a prima nos negócios do restaurante da família. O local é alvo do interesse de uma gangue mafiosa. Para enfrentar a ameaça Bruce Lee fará uso da sua mortal habilidade no Kung Fu.

Destaque memorável de O Voo do Dragão, a luta final acontece em pleno Colisseu de Roma, onde Bruce Lee enfrenta ninguém mais, ninguém menos do que Chuck Norris (sim, ele mesmo!).



“Operação Dragão” (Enter the Dragon, 1973) – Direção: Robert Clouse
Primeira e única participação de Bruce Lee em uma produção de Hollywood. Típico produto de uma época, reflete forte influência dos filmes de James Bond do início dos anos 70. Desta vez Bruce Lee incorpora a figura de um agente secreto, recrutado por organização governamental, que recebe missão de investigar um torneio de lutas marciais, organizado por um inescrupuloso assassino, líder de um rentável negócio de venda ilegal de ópio.

Por tratar-se de um torneio de lutas, não faltam razões para Bruce Lee exibir suas habilidades, mas o roteiro investe mais numa narrativa de suspense e ação, mais ao gosto das plateias ocidentais. Porém, mesmo fora de seu registro (e cenário chinês), Bruce Lee se sai muito bem no ambiente urbano ocidental e convence plenamente como herói da vez.



“Jogo da Morte” (Game of Death, 1978) – Direção: Robert Clouse (e Bruce Lee – não creditado)
Bem, chegamos ao não-filme de Bruce Lee.
Por razões óbvias, um roteiro tortuoso tenta dar sentido à história de um notório lutador de artes marciais que passa a ser assediado para se incorporar a uma organização criminosa. Vítima de um atentado criminoso, o lutador simula sua própria morte e retorna para fazer justiça.

Misturando cenas reais de Bruce Lee com outras filmadas com um “ator” substituto, o filme é uma tremenda colcha de retalhos que tenta fazer algum sentido. Vale apenas pela curiosidade. E pela cara de pau dos envolvidos.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em abril de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 2 de março de 2017

“Amy”: a fama que consome


Premiado em 2016 com Oscar da categoria, o documentário Amy refaz a trajetória do surgimento, ascensão, glória, decadência e prematuro desaparecimento da cantora e compositora britânica Amy Winehouse, falecida aos míticos 27 anos, em 2011.

Nesses tempos de elevada exposição midiática a qual estamos expostos, a disponibilidade do registro digital é uma realidade onipresente. Ainda assim, é surpreendente a existência de tantas gravações caseiras e semiprofissionais da trajetória de Amy, seja no âmbito privado, familiar, seja no registro histórico dos primeiros momentos da sua meteórica carreira.

Convencional em seu formato, mas envolvente pela personagem retratada, o documentário foi dirigido por Asif Kapadia, o mesmo realizador da cinebiografia Senna. Consta que a próxima empreitada de Kapadia será um filme sobre Maradona, reafirmando assim sua vocação para ser o documentarista oficial (!) dos famosos.


“Você sempre machuca quem você ama”

Celebridade involuntária e relutante, Amy Winehouse mostrou-se desde cedo afetada pela excessiva exposição da sua vida. Artista movida pela paixão, um talento espontâneo, Amy lutou a vida inteira contra a fama que a fragilizava e consumia.

Ao retratar de forma detalhista a recusa de Amy Winehouse ao culto às celebridades, o filme de Kapadia acaba por desenhar um cenário crítico sobre este universo que suga e vampiriza suas vítimas-alvo. As fraquezas emocionais de um artista podem facilmente ser potencializadas pelo assédio invasivo. E Amy Winehouse foi uma dessas vítimas, que se refugiou no álcool e drogas, até seu trágico fim.


“De certa forma o amor está me matando”

Documentários sobre celebridades já falecidas não trazem surpresas sobre o final. O interesse está, portanto, na trajetória, nos fatos, razões e motivações que determinaram o caminho. E Amy é suficientemente rico na construção de sua narrativa para atrair um olhar mais atento do espectador. Em destaque a comovente e sincera sequência com o cantor Tony Bennett (seu ídolo), com quem Amy chegou a gravar um histórico dueto, e também o momento emocionante do anuncio da melhor “Gravação do Ano” no Grammy de 2008, “Rehab”, da própria Amy.


Ao celebrar e resgatar a vida e a música de Amy Winehouse, o documentário, que está disponível na Netflix, é honesto, equilibrado e contundente, sem relativizar a conduta, por vezes no mínimo questionável, da própria artista que, voluntária ou involuntariamente, acabou por sabotar sua curta carreira. Amy agrada aos fãs e desperta o interesse nos curiosos.

(Publicado originalmente no portal “Movi+” em março de 2016)

Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

“Deadpool”: reinvenção das adaptações


Questões de ordem. É necessário conhecer/ler os quadrinhos antes de assistir um filme? O não conhecimento prévio do material original prejudica a apreciação da obra em outra mídia? As indagações não são meramente retóricas. Fazem total sentido frente a muito bem sucedida adaptação de Deadpool para os cinemas. Longe de integrar o primeiro time dos super-heróis, o debochado e desbocado personagem sempre teve um status cult. Agora, vai conhecer o céu e o inferno do mainstream.

Voltando às questões iniciais, a resposta para ambas é “não”. Caso contrário, seria impossível assistir e apreciar na plenitude filmes como Guerra e Paz ou Laranja Mecânica, sem antes ler os livros de Leon Tolstoi e Anthony Burgess. Tipo estudar antes para ir bem na prova.

Resumo da ópera para esta introdução. Não, nunca li Deadpool nos quadrinhos. Mas sim, curti o filme. Meu julgamento é apenas sobre o que objetivamente assisti na tela, e não sobre o que supostamente possa estar achando que vi ou gostaria de ter visto.


Com Deadpool, o filme, as adaptações dos quadrinhos para o cinema definitivamente chegaram à pós-modernidade, aquele momento quando as narrativas entram em crise e passam para a autorreflexão. Repensar-se a si próprio. Houve um tempo em que as adaptações precisavam ser literais, no máximo com algumas poucas alterações na mitologia original das personagens, (tipo o Superman do Richard Donner em 1978, e o Homem Aranha de Sam Raimi do início dos anos 2000). Depois veio a fase dos universos expandidos e das revisões/reinterpretações da formação da mitologia, da qual o Batman de Christopher Nolan é o expoente máximo. Agora, passadas as necessárias fases de maturação, e prestes a esgotar a fórmula, chegou à fase três. A hora da diversão, de não levar-se a sério demais. O sucesso recente dos Guardiões da Galáxia apontou o caminho dessa reinvenção, no qual “Deadpool” se jogou de cabeça.

Quadrinho no original inglês é “comics”. Comédia, diversão, entretenimento. E Deadpool cumpre a missão. É divertido, sarcástico, autorreferente ao universo das HQs, crítico ao mundo pop e muito bem humorado. Talvez até um pouco demais em algumas sequências, chegando, por vezes, a um nível de irreverência que beira ao exagero gratuito. Mas tudo bem, está valendo o ingresso. É diversão para gente grande, sem esquecer os elementos de apelo ao público teen.


Com sacadas inspiradas, diálogos espertos e cinismo em doses generosas, o filme de Tim Miller não livra a cara de ninguém. Nem do próprio astro protagonista Ryan Reynolds, que leva na filmografia a fracassada (parar dizer o mínimo) adaptação Lanterna Verde. Agora, em sua nova incursão no gênero, Reynolds finalmente tem um super-herói para chamar de seu.

Vale chamar a atenção para a ótima presença da atriz brasileira Morena Baccarin no elenco. Com cartaz em alta na TV, onde já participou de séries como Firefly; V; Homeland e Gotham, Morena Baccarin dá seus primeiros passos no cinema. E tirou sorte grande com Deadpool.

A adaptação apostou na anarquia e quebrou a banca. As fenomenais bilheterias em todo o mundo estão aí para comprovar isso. Então, preparem-se. Vem aí Deadpool 2 com mais um estoque de piadinhas.

PS.: Não perca o encerramento dos créditos de Deadpool, OK?

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em fevereiro de 2016)


Jorge Ghiorzi

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

David Bowie: o homem que caiu na Terra


O clichê consagrado é chamá-lo de camaleão. Faz sentido. Sua capacidade de se transmutar foi única no meio artístico. Mais do que diversificada e múltipla, sua trajetória foi consistente por vencer o desafio do tempo. Não foi uma explosão passageira, com prazo de validade.

O cantor, compositor, produtor musical e também ator inglês David Robert Jones, que o mundo conhece como David Bowie construiu uma carreira de mais de quatro décadas, encerrada no início de janeiro de 2016, dois dias após completar 69 anos de idade. Não sem antes nos deixar sua última obra “Blackstar”, recentemente lançada. Mas aqui não vamos tratar do Bowie músico. Vamos relembrar um pouco da trajetória do Bowie ator.

A figura estética de David Bowie sempre atraiu a atenção. Ícone fashion, andrógino, artista performático, mestre da arte de seduzir plateias, ele não fazia apenas música. Entregava um pacote completo: som, imagens, luzes e imaginação. Era quase inevitável, senão desejável, que Bowie se aproximasse do cinema, ou vice-versa.


O que pouca gente sabe é que antes de ser músico Bowie foi ator. Estudou teatro e participou de peças e filmes de TV na Inglaterra. Então, em 1969 tudo muda com o estouro de “Space Oddity”, e o ator iniciante dá lugar ao rockstar em ascensão. A reaproximação com o cinema só ocorreu em 1976 com o filme O Homem que Caiu na Terra, dirigido por Nicolas Roeg. Apropriadamente David Bowie interpretou um alienígena que vem à Terra em busca de salvação para seu planeta. A figura andrógina e misteriosa que o artista encarnava nos palcos naquele período foi muito bem aproveitada pelo filme que se mostrou um excelente veículo para potencializar a imagem que por muitos anos ficou associada ao artista.


No início dos anos 80 David Bowie atinge o ápice de sua carreira como artista pop. Com o lançamento do disco “Let’s Dance”, recheado de hits, Bowie vendeu como nunca e rivalizava nas paradas de sucesso com Michael Jackson. Muito requisitado pela mídia, e também pelo cinema, Bowie participou de diversos filmes neste intenso período. Em 1983 estrelou Furyo, Em Nome da Honra, dirigido por Nagisa Oshima (de Império dos Sentidos). Sua interpretação de um prisioneiro inglês preso num campo de concentração na ilha de Java, em plena Segunda Guerra Mundial, foi amplamente elogiada pela crítica, e Bowie definitivamente atingia o status de ator. Na sequência Bowie viveu, ao lado de Catherine Deneuve, um vampiro moderno em crise no clássico Cult Fome de Viver, de Tony Scott.

Cineasta em alta na metade dos anos 80, John Landis chama Bowie para uma participação na comédia de ação Um Romance Muito Perigoso (1985), estrelada por Jeff Goldblum e Michelle Pfeiffer.


O tipo exótico que Bowie sempre inspirou, foi mais uma vez muito bem utilizado na produção de 1986, Labirinto – A Magia do Tempo. Ao lado de uma jovem e bela Jennifer Connelly, David Bowie faz um convincente e maligno Rei dos Duendes nesta fantasia infanto-juvenil dirigida por Jim Henson.

Ainda em 1986 David Bowie participa do musical Absolute Beginners, de Julien Temple, que revive em tom nostálgico e dinâmico os anos 50 quando o rock domina o mundo e vira a cabeça da juventude. A trilha sonora, recheada de sucessos, inclui o próprio David Bowie.


Grande sonho de Martin Scorsese, o polêmico A Última Tentação de Cristo foi lançado sob protestos da comunidade religiosa em 1988. Para o papel de Pôncio Pilatos o diretor Scorsese escalou David Bowie, que aceitou o papel, abrindo mão de interpretar um vilão na série 007.

Nos anos 90 Bowie se limitou a fazer participações em filmes de pouca repercussão como Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer; Romance por Interesse e Basquiat – Traços de uma Vida, entre outros menores.


Na primeira década dos anos 2000 Davis Bowie ainda permanecia ativo no cinema. Estrelou o drama familiar Mr. Rice’s Secret (2000); deu um charme extra à comédia Zoolander (2001), de Ben Stiller; interpretou o cientista e inventor Nikola Tesla em O Grande Truque (2006), dirigido por Christopher Nolan; colocou a voz em um personagem da animação Arthur e os Minimoys (2006), de Luc Besson; dublou um personagem do desenho animado Bob Esponja (2007, na TV); participou do drama Reação Colateral (2008) e, por fim, sua última participação creditada no cinema como ator em ficção, foi em High School Band (2009) interpretando… David Bowie!

2016. Ano em que o homem que caiu na Terra partiu, nos deixando o legado de sua arte na música e no cinema.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em janeiro de 2016)

Jorge Ghiorzi

sábado, 4 de fevereiro de 2017

“Expresso do Amanhã”: viagem sem fim e sem volta


Não é nenhuma novidade a vocação de Hollywood para “importar” cineastas de outras nacionalidades. Além de revitalizar o ambiente criativo doméstico, a estratégia também serve para dar uma face mais internacional para o cinema que está cada vez mais globalizado, quase uma “commodity”. No período do pós-guerra o interesse estava nos cineastas europeus. Mais recentemente foi a vez dos realizadores latino americanos, particularmente os mexicanos. Agora, a bola da vez vem da Ásia. Mais claramente da Coréia do Sul.

Após o sucesso mundial de O Hospedeiro, lançado em 2006, o sul-coreano Joon-ho Bong entrou no radar dos grandes estúdios. Seu trabalho seguinte, Expresso do Amanhã (Snowpiercer, 2013) já ganhou ares de produção internacional, pois é falada em inglês, conta com elenco predominantemente americano e inglês, e foi financiada parcialmente com capital europeu e norte-americano.


Baseado em uma graphic novel francesa chamada “Le Transperceneige”, de Jean-Marc Rochette e Jacques Loeb, “Expresso do Amanhã” é uma ficção científica que segue a trilha das distopias ao retratar uma Terra em perigo de extinção, tomada por uma nova era glacial que ameaça a vida no planeta. Neste cenário apocalíptico os poucos sobreviventes estão confinados a bordo de um trem (maravilha da tecnologia de ponta) que segue ininterruptamente em viagem, sem parar já por 17 anos. Esta é a única forma de assegurar a sobrevivência num meio ambiente que passou a ser hostil aos serem humanos.

No interior do trem os “passageiros” são apartados de acordo com seu status social. Os pobres vivem em condições miseráveis, nos últimos vagões da composição férrea. A classe dominante privilegiada vive uma boa vida de conforto e luxo nos vagões da dianteira. Até que chega o dia da revolta dos oprimidos que decidem entrar em combate contra a injustiça social que se reproduz no interior daquele trem. O líder dos revoltados, Curtis (interpretado por Chris Evans, o “Capitão América” em pessoa), é a figura mítica que vai alterar a ordem estabelecida naquele microcosmo


Todos os elementos de um típico filme de ação hollywoodiano estão identificáveis em Expresso do Amanhã. O herói, o antagonista, o conflito, a missão e a adrenalina, o combustível que move o enredo. Porém, por tratar-se de uma produção dirigida por um coreano, tudo isto se apresenta sob uma ótica diversa do modelo hegemônico, com uma abordagem que denuncia um novo olhar para filmes de gênero. A ênfase ao movimento, à energia cinética, cadenciada na edição clipada, marca registrada do cinema de ação produzido em Hollywood, está presente na tela. Mas há algo mais em cena. Uma sensibilidade incomum no gênero. Isto fica muito evidente no tratamento dado às personagens. Sim, às personagens, no plural. O foco da narrativa não está concentrado apenas no protagonista. Os personagens secundários também são relevantes e capturam o interesse do espectador.

A cenografia também merece registro, ao propor um modelo de ação 100% confinada no espaço estrito de um trem, por si só uma premissa estimulante. O extrato social da pirâmide de classes (castas) é engenhosamente bem resolvido na concepção estilizada de cada um dos vagões que compõem  o comboio. São relíquias arqueológicas de um mundo que sucumbiu ao apocalipse, preservadas no espaço-tempo do universo em movimento do trem que não pode interromper sua viagem eterna, como um tubarão que jamais pode parar de nadar.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em setembro de 2015)

Jorge Ghiorzi

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

“Hacker”: Michael Mann, um renegado de Hollywood


Não é novidade para ninguém que o cinema comercial norte-americano é uma máquina avassaladora que premia sucessos de bilheteria na mesma medida em que condena qualquer manifestação de autonomia criativa que não siga a cartilha. Cineastas do mainstream que eventualmente flertam com um cinema um pouco mais autoral são jogados ao limbo na medida em que os fracassos de público se sucedem. Nunca é demais lembrar que sucessos de bilheteria não necessariamente são êxitos de crítica. A bem da verdade, essa lógica, no mais das vezes, é reversa.

Não faltam nomes para incluir na relação de cineastas malditos para a indústria, conhecidos como “venenos de bilheteria”. Apenas para ficar nos tempos mais contemporâneos, nesta lista negra estão nomes como Brian De Palma; William Friedkin; Paul Schrader; Paul Verhoeven e Michael Cimino, entre outros, que após grandes sucessos buscaram reafirmar uma carreira mais personalista, e fracassaram (ao menos no mercado norte-americano).


Faz parte deste time de cineastas renegados de Hollywood o diretor Michael Mann, conhecido por filmes como O Último dos Moicanos; Fogo Contra Fogo; Colateral e Miami Vice, versão cinematográfica da célebre e cult série de TV dos anos 80, da qual Mann foi um dos criadores e produtor executivo. Seu mais recente filme, Hacker (Blackhat, 2015), após um lançamento fracassado nos cinemas dos Estados Unidos, onde frustrou as expectativas nas bilheterias, caiu em desgraça nas distribuidoras internacionais que optaram por lançar o longa-metragem diretamente para o mercado de home video (DVD e Blu-Ray), inclusive no Brasil, onde acaba de ser disponibilizado.

Cineasta de gênero, especialistas em narrativas policiais de suspense, Michael Mann costuma alcançar resultados acima da média em suas produções. Habilidoso no trato das cenas de ação, fortemente marcadas por um estilo elegante, Mann costuma jogar todas as fichas de seus filmes enfocando mais em personagens do que nas tramas propriamente ditas. Embora não seja de seus trabalhos mais inspirados, Hacker possui qualidades que justificariam uma maior circulação, e merece sim uma conferida com mais atenção.

O filme aborda questões tecnológicas que, apesar de abstratas e intangíveis, estão aí na ordem do dia afetando a todos nós. O universo interligado e as conexões da internet são o tema de fundo da produção. A abordagem deste assunto por um cineasta de mais de 70 anos é reveladoramente respeitosa e um tanto distante. E logo fica flagrante que Michael Mann demonstra pouca adesão ao tema, preferindo tratar do mundo real ao invés do universo virtual, que ao final das contas não passará apenas de um pretexto para acionar a ação da narrativa.


O filme tem como protagonista um especialista em invadir sistemas e redes de computador, preso por cometer crimes virtuais, interpretado por Chris Hemsworth (revelado pelo papel em Thor). Porém, seus préstimos serão solicitados pelos serviços de inteligência dos governos da China e dos EUA, após uma série de atentados virtuais em usinas atômicas e na bolsa de valores. Acompanhado de um agente chinês, o hacker americano precisa identificar, localizar e impedir novos golpes do gênio cibernético, com o qual acaba por rivalizar em termos habilidade, capacidade e conhecimento.

Dos cineastas americanos do primeiro time, Michael Mann tem o mérito de ser um dos primeiros a adotar as filmagens em vídeo digital, o que hoje é quase uma unanimidade. No entanto, apesar deste caráter, digamos, moderno e antenado com os novos tempos, em termos narrativos e estéticos Mann é um cineasta que poderíamos chamar de “old school”. A agilidade que o equipamento digital permite é muito bem utilizada pelo diretor que sabe carregar com dinamismo as sequências de ação. Inclusive nas cenas noturnas (uma marca de Mann) que privilegiam enquadramentos fechados e closes que ganham uma textura peculiar e granulada, também vistas com destaque em Miami Vice, o filme.

Hacker não é o melhor de Michael Mann, mas reafirma as características do realizador que constrói um cinema onde a imagem se impõe sobre a narrativa, sem perder a mão (e o interesse) para a trajetória pessoal de seus (anti)heróis.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em julho de 2015)

Jorge Ghiorzi

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O renascimento da cinefilia


As inovações tecnológicas alteraram profundamente a forma e as condições com que assistimos filmes. Do suporte físico do celuloide, vivemos hoje tempos onde os acervos estão nas nuvens, esse espaço intangível onde cabem todos nossos sonhos.

Desde o surgimento do cinema, há mais de 120 anos, até o final dos anos 70, exercer a cinefilia exigia, além de dedicação, uma disponibilidade de tempo e recursos. O resgate e a revisão das grandes obras do cinema só era possível através do acesso às cinematecas. Mas então, o milagre se fez. Nos anos 80 surge o VHS. E tudo mudou. Pela primeira vez uma geração de cinéfilos sentiu o gostinho de “levar o cinema para casa”. Com aquelas fitas magnéticas, seladas ou piratas, os usuários se sentiam um pouquinho donos dos filmes. E a cinefilia viveu seu primeiro apogeu. Podia-se ver e rever filmes no conforto dos lares. A opção de escolha se tornou possível. Depois, era só rebobinar a fita e devolver na locadora antes de virar mais uma diária.


Quando o mundo do audiovisual já parecida dominado, eis que surge mais uma novidade tecnológica, que acabou por revigorar o prazer de consumir cinema em casa. Os antigos VHS foram substituídos pelos então inovadores DVDs. E lá se foi uma geração de cinéfilos se desfazendo dos acervos de fitas emboloradas em troca das elegantes cópias em DVD. A qualidade de som e imagem eram “Infinitamente” superiores. Sem falar que ocupavam menos espaço na estante.

Ah, bendita tecnologia! Sempre nos aprontando das suas. E não é que lá veio outra inovação? O futuro chegou. E com ele vieram os insuperáveis Blu-rays. Som THX, 5.1 canais, stereo surrounded e imagem cristalina em full HD. Com essas qualidades era quase uma obrigação substituirmos nossos queridos DVDs. Por que não? Os novos disquinhos azuis ocupavam ainda menos espaço.


A revolução seguinte acabou por se dar não no suporte no qual os filmes eram apresentados. Mas sim na diversificação dos canais de disponibilização. Chegou a era dos filmes “on demand”. A filosofia é simples: assistir o que quiser, na hora que desejar, da forma mais conveniente. A diversificação dos dispositivos e a evolução da velocidade do streaming propicia nosso consumo de filmes no computador, no tablet, no smartphone e na smart TV. Sem suporte físico. E sem ocupar espaço nas prateleiras. O inovador serviço da Netflix passou a ser o sonho de consumo dos novos (e antigos) cinéfilos.


Então, quando tudo parecia ajustado, eis que surge um novo prazer para exercermos a boa e velha cinefilia. O superado e decadente DVD vive um momento de renascimento. E a responsável por este movimento é a Versátil Home Vídeo que descobriu um nicho de mercado que dá novo fôlego aos disquinhos prateados. A vocação do colecionismo, típica dos cinéfilos de carteirinha, voltou a dar sinais de vida graças aos imperdíveis lançamentos dos boxes de DVDs dos mais diversos temas. E tem para todos os gostos: terror; western, ficção científica, filme noir, e tantos outros. Além de lançar filmes inéditos no mercado brasileiro, as edições da Versátil respeitam o consumidor aos privilegiar as versões restauradas, nas melhores condições disponíveis, recheados de extras que fazem a alegria de qualquer espectador. Hoje, com a Versátil, voltar a consumir e colecionar DVDs é vintage.

Curiosa essa evolução nas formas de assistirmos filmes. No início, nos primitivos “nickelodeons’, a exibição era privada. Apenas um espectador de cada vez. Depois, com o surgimento das gigantescas salas de cinema, as sessões passaram a ser um ritual coletivo. Centenas de pessoas, no mesmo ambiente, compartilhavam o mesmo momento. Na medida em que a tecnologia avançou o ato da cinefilia recuou para o ambiente doméstico, com poucos espectadores. E por fim, fechando um ciclo, a experiência de assistir filmes praticamente voltou a ser solitária com o uso dos dispositivos móveis, como o celular e o tablet. No entanto, apesar de tudo e todos, a cinefilia continua muito viva. E nunca foi tão fácil praticá-la.

(Texto originalmente publicado no portal “Movi+” em agosto de 2015)

Jorge Ghiorzi